A Esperança Vol. I/Clotilde/V

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Capitulo V

Paulino

Mais d'um mez dinha decorrido desde a partida do marquez de Santa Eulalia, e sua filha. Expressivas cartas escriptas de parte a parte, tinham vindo por vezes metigar as saudades das duas amigas. Bastava ver um d'esses pequenos manuscriptos, para comprehender a pura e singella amisade que unia as duas meninas.

No dia 9 de junho, pelas seis horas da manhã, estava Clotilde almoçando com o seu thio em uma elegante sala, que abria duas sacadas sobre um largo terreiro rodeado de acacias, que, agora cobertas de flores, com seu arôma, perfumavam a sala.

― Que agradavel e fresco ar aqui se respira ― dizia a menina offerecendo a seu tio uma chavina de chá.

― Com certeza; está uma bella manhã, e se tu queres, vamos dar um passeio depois do almoço.

― Iremos meu tio.

― Alguem chegou ― continuou o snr. Cunha, indo a uma das sacadas ― E' um criado do marquez: alli tens tu as desejadas noticias da tua amiga.

N'este tempo entrava Roza trazendo uma carta que apresentou a sua ama; esta com anciedade rasgou o fecho da carta, e leu o seguinte:

«Minha Clotilde, quando peguei na penna, era com tenção de descrever as saudades que tenho soffrido, mas dezisti da empreza como impossivel! Todas as expressões são sem força quando se quer descrever o estado d'alma de quem vive separado das pessoas que lhe sãi caras!! E tambem para que essa pintura para ti, que tens outro quadro irmão no desenho e carregado das côres?

«Olha minha amiga, hontem recebi carta de Paulino, em que me diz que no dia 26 chegará aqui. Elle não deixa de ahi se apiar, mas eu peço-te que o não demores muito, porque seriam momentos preciosos que me roubavas, e eu n'essa parte sou muito igoista.

«Meu pai tenciona dar um baile por occasião da sua chegada; encarrega me de convidar para elle, bem com o teu tio: eu fiada na tua amisade, espero que não faltes.

«A respeito do baile não digas nada a Paulino, porque o queremos surprehender. Tua amiga invariavel ― Josephina de Souza

― Veja o que me diz Josephina, meu tio ― dizia Clotilde, apresentando a carta ao seu tutor. Este depois de a ler, disse-lhe: ― Acceito o convite, iremos descrever a alegria de Clotilde, seria impossivel! Desde este momento não pensou em mais nada do que no dia 26 de junho! Com anciedade esperava o dia em que havia de ver Paulino; mas era um prazer misturado de receios o que ella sentia. Parecia-lhe felicidade superior ás suas forças.

Apoz dias, que lentamente se arrastavam, no entender de Clotilde, chegou a noite do dia 25. A menina não lhe foi possivel conciliar o somno em toda ella. A ideia de no dia seguinte vêr o mancebo, enchia-lhe todo o coração, occupava-lhe os sentidos.

― Oh! ― dizia ella sentando-se sobre o leito ― que será o que eu sinto, meu Deus? d'antes ao vêr Paulino só experimentava felicidade; só via n'elle o meu companheiro de infancia, e agora só a pensar n'elle, faz reverberar em minhas faces a chamma que me encendeia o coração. Não ouço pronunciar o seu nome querido, porque supponho denunciar no tumor da voz o segredo que esconde.

― Eu que tanto confiava na minha firmeza e coragem, ellas abandonam-me de todo!

― Quanto eu receio que elle adivinhe os meus sentimentos! Isso seria terrivel, meu Deus, para a minha altivez, porque eu amo um homem que não sei se me corresponde! Quantas vezes eu me envergonho de mim propria? ― As ardentes lagrimas lhe escaldavam as faces.

― Não poder combater esta paixão, que tem subido a tal ponto que não ha nada que lhe sirva de estorvo!

― Comtudo, no momento em que eu me persuadisse que era indifferente a Paulino, e que elle tinha percebido o meu amor, esse momento seria o ultimo da minha vida! então haveria em mim um sentimento que fallasse mais alto do que a religião, e eu me suicidaria !.. ― O rosto de Clotilde tinha assumido uma expressão de tanta firmeza que deixava adivinhar que a donzella tinha coragem bastante para levar a effeito o seu temerario projecto.

De repente essa fronte que o desespéro tornára aliva e radiante, curvou-se, e a menina cahiu soluçando aos pés da Cruz. Era o triumpho da virtude, e da reli- gião.

― Vós me perdoareis, meu Deus ― murmurava ella ― eu não sabia o que disse; sou uma louca bem digna de compaixão! Havia-me esquecido dos vossos beneficios, ó meu Deus, e que vós como pai benigno não vos esqueceis de vossas filhas.

Dai-me força para ámanhã o vêr sem me perturbar; eis a minha supplica d'hoje.

Os primeiros raios de sol, entrando pela janella, vieram allumiar esta scena. Como Clotilde estava bella! como lhe ficavam bem aquellas lagrimas de arrependimento! O cabello todo solto, cobrindo-lhe as costas e hombros, parecia um manto de azeviche,

Levantou-se, lavou os lagrimozos olhos, e fez taes diligencias para serenar o rosto, que passados alguns instantes ninguem diria, vendo-a, a noite que ella aca- bava de passar! Foi para o toucador, e em pouco tempo se adornou depois desceu para o jardim, aonde estava seu tio.

― Como hoje te levantaste tarde, Clotilde, ― disse o snr. Cunha ― passas-te mal a noite?

― Alguma coisa, meu tio, mas agora estou boa.

― Será bom esperarmos com o almoço até vir Paulino, porque elle ha-de aproveitar o fresco da manhã.

― Sou da sua opinião, meu querido tio.

― Eu vou dar um passeio à quinta da esperança, se elle vier manda-me chamar.

O snr. Cunha sahiu, e Clotilde encarregou Leopoldo de varrer e arranjar o jardim, ella subio para o seu quarto, dizendo pelo caminho:

— Não quero que elle me encontre no jardim, podia conhecer a anciedade com que o espero. Irei para a janella do meu quarto, que dista sobre a entrada, e d'alli o verei.

Apenas a menina tinha chegado ao seu aposento, um grito d'alegria se escapou do peito do velho Leopoldo.

Era Paulino que entrava no jardim, quando elle o acabava de arranjar. O velho abraçava o mancebo com a maior ternura, e elle correspondia-lhe com vivas mostras d'amisade.

Esta scena era presenciada por Clotilde. O primeiro movimento da moça foi correr ao encontro do filho do marquez, mas as pernas tremiam-lhe como delgados vimes, e o coração pulava-lhe dentro do peito, como o desgraçado que se debate contra os muros da sua prisão que tenta derrubar! elle queria vôar para Paulino, e a menina encerrava-o dentro do peito, e com mão convulsa, apertava-o contra elle. Era a luta do amor, e do dever.

Rosa subio a annunciar-lhe a chegada do mancebo.

— Eu vou já — respondeu a joven com voz alterada — Manda chamar meu tio.

A criada sahiu, e Clotilde murmurou:

— Não posso!... Meu Deus, dai-me firmesa. Deixarei vir meu tio, e só então lhe apparecerei.

— Mas que ha-de pensar Paulino? tornou a moça depois d'um momento de reflexão — d'antes era recebido como um irmão, e agora esta ceremonia! Irei, sim; irei já.

Chegou á porta da sala de vizitas, e hesitou ainda, mas envergonhada da sua fraqueza, empurrou a porta, e entrou.

― Como está o senhor convalescente? ― disse ella com voz alterada, offerecendo a mão ao filho do marquez.

― Perfeitamente restabelecido, minha senhora ― respondeu o mancebo apertando-lhe a mão respeitosamente.

Essa mão tremia, e Clotilde apressou-se a retiral-a.

Os olhos da menina estavam cravados no chão, e o seio arfava-lhe com força.

Paulino contemplava-a em silencio; silencio que durou entre ambos alguns momentos. Foi a moça quem o quebrou, dizendo:

― Que bella manhã trouxe, senhor Paulino.

― Eu tenho sempre anjos a pedirem por mim, minha senhora ― respondeu o mancebo, sorrindo. Já as suas orações me roubaram do poder da morte, que etaa prestes a ceifar-me d'entre os vivos.

― E não tinha pena de morrer, snr. Paulino?

― Se estivesse em uso de rasão, teria muita, minha senhora; mas no estado em que estava não sentia nada, era indifferente a tudo!

Ambos tornaram a ficar calados; o que um e outro sentiam, não era possivel narral-o. Se Clotilde levantasse os olhos, veria a ternura com que o mancebo a fitava, e já não duvidaria do seu amôr; mas ella evitava com todo o cuidado que as suas vistas se encontrassem com as d'esse mancebo, a quem ella tanto amava, porque então os olhos diriam esse segredo que ella tanto queria occultar.

Deixemos pois permanecer os dois jovens no seu amoroso silencio, e nós vamos, ainda que fraco pintor, retratar o filho do marquez:

Era um moço de vinte a vinte e dois annos; de mediana estatura, mas de gigantesca intelligencia. Não era tão formoso como sua irmã, mas parecia-se bastante com ella; tinha tambem o cabello e os olhos castanhos, e as suas vistas eram tão meigas como as d'ella. Os labios delgados eram sombriados por um pequeno buço, que dava muito realce á pallidez do seu rosto. Dotado d'um genio arrebatado, qualquer rasão applicada com brandura o fazia conter, e convencer. Era generoso, sem ser predulario; compassivo, sem d'isso se vangloriar. Odiava o orgulho mal fundado, e respeitava a pobreza virtuosa.

Nas conversações serias, mostrava uma sisudez, conhecimentos tão profundos que não pareciam d'um moço de tão verdes annos! Junto dos seus companheiros era o mais alegre e folgazão.

― Ainda não tinha saudades dos nossos sitios? ― procurou a menina, tentando atar o fio á conversa.

― Muitas, minha senhora. Era impossivel não as ter.

― Mas não quiz acompanhar o snr. marquez! ― tornou a menina.

― Eu não me sentia em estado de fazer a jornada: mostrava mais forças do que tinha para socegar meu pai: e dei por pretexto para não vir, o querer fazer acto.

― E fel-o?

― Não, minha senhora.

O snr. Cunha entrou na sala.

― Como está nutrido! ― dizia elle abraçando o mancebo, ― a enfermidade não o abateu nada!

Clotilde mais socegada com a presença de seu tio, olhou então fixamente para Paulino, e fez a mesma observação que o seu tutor; o moço estava realmente muito nutrido.

Quando fazia este exame, seus olhos encontraram o olhar terno do joven, e tornou-se vermelha como uma cereja. Envergonhada por elle a surprehender: observando-o, saiu á pressa da sala.

O almoço correu silencioso, só o snr. Cunha interrompeu aquella mudez com alguma banalidade. Finda que foi a refeição, Paulino despediu-se; e, Clotilde, fiel ao que tinha promettido á sua amiga, não o instou para que ficasse mais tempo.