A Luneta Mágica/II/XXVII
Na manhã seguinte eu tinha os olhos inchados, a cabeça atordoada, e o rosto inflamado; senti-me doente; mas não quis anunciar o meu estado.
Às dez horas introduziram no meu quarto o Sr. A..., o dono da casa, donde eu fora expelido na noite antecedente.
Recebi-o sem ressentimento.
— Está doente ? perguntou-me.
— Um pouco; sofri muito esta noite.
— Eu o previ, meu amigo, e por isso me apressei a vir dar-lhe explicações, que reputo indispensáveis até para o bem do seu futuro.
— Agradeço a sua bondade; eu porém sei tudo e sei demais.
— Que sabe, pois?
— Que um miserável, o muito conhecido velho Nunes, fez espalhar a notícia de que eu possuo uma luneta magica, pela qual chego à visão do mal, e descubro todos os segredos e todas as maldades e vícios que se escondem e se dissimulam; e que o medo que causa n minha luneta faz com que se levantem contra mim todos os homens, porque com efeito todos são perversos e temem que sejam conhecidas suas perversidades.
— E então...
— Então desde que se espalhou tal noticia eu tenho sido apupado, insultado, repelido por toda parte, onde apareço. Não é isto?
— Não é tudo, como lhe parece.
— Explique-se.
— Não se ofenderá se eu lhe disser toda a verdade?
— Não: diga tudo.
— Meu amigo; a população da nossa capital 6 muito civilizada, e não acredita no poder da sua luneta mágica.
— Neste caso por que me fogem?... Por que me apupam?... Por que me temem?
— Aqueles que o têm perseguido com apupadas e os que fogem tremendo da sua luneta dividem-se em duas classes, uma a que pertencem todos os crédulos e pobres de espírito que ainda prestam fé a feiticeiros e artes mágicas: há dessa gente em todas as capitais; a outra é a dos garotos que ousam rir e zombar de infortúnios e males a que todos estamos sujeitos.
— Que quer dizer?
— Quanto aos mais eu vou dizer-lhe o que há, e arme-se de coragem para ouvir-me.
— Nada mais me pode admirar, e menos assustar neste mundo.
— O velho Nunes, que se proclama seu amigo e intimo confi dente, foi com efeito o propalador das notícias que correm; e sabe o que se pensa? O que todos acreditam?
— Diga.
— Que o senhor, tendo imaginação ardentíssima e fraquíssima razão, foi arrastado por um pérfido e malvado armênio até deixar-se dominar pela mais inacreditável mania; que por isso o senhor imagina ver o que não vê, o que não é real; supõe, julga infalível a visão extraordinária da sua luneta, e nas confidências de alguns amigos, que aliás abusam da sua credulidade enferma, descreve os corpos, e expõe íntimos das consciências de quantas senhoras, e de quantos homens fita com a sua luneta.
— Mentira e verdade! corpos não, é falso; minha luneta 6 honestíssima; almas sim, minha luneta as patenteia plenamente, e eu tenho visto em todos hediondas maldades.
— Não discutamos agora esse pretendido poder da sua luneta. O que 6 certo é que o simples receio de que o senhor, acreditando que vê realmente o que apenas molestamente imagina, e que descreve em confidências de amigos quadros físicos, defeitos e virtudes, em que ninguém crê; mas que em todo caso ridiculizam não pouca as vítimas da sua luneta, faz com que todos o evitem, todos o queiram longe, todos temam somente o ridículo que provém do que chamam sua manta.
— Mania!!! que o seja embora; mas eu juro que não tenho um só amigo, que não tenho confidentes: isso é calunia.
— Cumpria-me dar-lhe estas explicações, meu amigo. Fique certo de que não há homem, nem senhora de juízo que dê importância e que tema a sua luneta mágica; mas das suas falsas apreciações, e dos sonhos extravagantes mas não recatados, não ocultos da sua imaginação resultam o ridículo de que todos querem escapar.
— Entendo-o perfeitamente.
O Sr. A... disse-me ainda algumas palavras consoladoras; convidou-me a tratar da minha saúde alterada pelo excesso de imaginação, e fraqueza do espírito e deixou-me enfim.