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A Luneta Mágica/III/VII

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Vi diante de mim e logo sentado a meu lado um vulto de homem, de quem não pude distinguir as feições e nem ao menos a moda e a cor dos vestidos.

— Quem é? perguntei.

— Pois a tal ponto se esqueceu de mim?...

— Se me conhecer, deve saber que sou quase cego.

— Sou o Reis.

Reconheci imediatamente a voz do Reis, mal pude abafar um grito que me rompia da alma e creio que teria caído de joelhos, se esse excelente homem não me tivesse contido.

— Perdão! balbuciei; eu fui um ingrato, perdão!

— Seja prudente, disse-me ele; conversemos em voz baixa; não convém que o reconheçam.

Apertei com ardor as mãos do meu bom amigo Reis, e ainda assim tive um pensamento suspeitoso, maligno; pois perguntei a mim mesmo, se a visão do mal não desmentiria as aparências tão eloqüentes e persuasivas da bondade, e do generoso caráter deste homem.

Era a dúvida, era o ceticismo que a visão do mal tinha inoculado no meu espírito

Guardei silêncio inexplicável pela desconfiança que me inspirava a humanidade; mas o meu egoísmo os cálculos do meu interesse pessoal fizeram com que eu mantivesse apertadas entre as minhas as mãos daquele, em que de novo eu depositava todas as esperanças, de remédio, de recurso, de socorro para a minha miopia.

— Então inutilizou a sua luneta? perguntou-me o Reis.

— É verdade: em um acesso de desespero pelo horror que tive de mim próprio, ousei praticar esse ato de loucura.

E referi miudamente toda a história dos prodígios da luneta mágica, e todos os desgostos que eu sofrera por ela.

— Também eu por minha parte não sofri pouco; porque perseguiram-me e há quem me persiga ainda por lunetas mágicas; mas com efeito é extraordinário, e incompreensível!...

— A luneta?

— Não; continuo a não acreditar no poder da cabala; é porém incompreensível a ilusão pasmosa dos seus sentidos.

— Não houve ilusão; eu juro...

— Juram do mesmo modo e com a mesma convicção quantos têm sido vitimas de igual ou semelhante exaltação enferma do espírito.

— Oh! eu era, como sou, tão míope que posso considerar-me cego, e mercê daquela admirável luneta vi distintamente, perfeitamente. . .

— Até ai creio, é possível; mas na famosa visão do mal não acredito.

— E todavia era real e incontestável.

— Eu só tenho fé em Deus, e creio somente na verdadeira ciência; se a magia fosse uma realidade, e eu quisesse explorá-la, ganharia milhões em poucos meses.

— Como?

— A mania do nosso armênio se agrava cada vez mais: ofendido pela incredulidade, e, diz ele, dedicado a minha pessoa pela influencia irresistível de não sei que fluido misterioso e inescrutável de que ele me fala, oferece-se para operar maravilhas, que tornariam o meu armazém em oficina encantada.

— Que maravilhas?+

— Entre cem outras por exemplo as seguintes: óculos que façam ver o que se passa a mil léguas de distancia; pequenos espelhos polidos pela magia que reproduzam a imagem do rosto de uma velha com todas as graças da sua mocidade passada, binóculos, por um de cujos vidros, se veja todo o passado e pelo outro todo o presente da vida intima da pessoa que se observa; instrumentos de precisão ótica que patenteiem o ouro, as pedras preciosas, as riquezas e os segredos dos monstros oceânicos que se escondem por baixo das camadas da terra, no leito dos rios, e no fundo dos mares; lunetas e pince-nez que emprestam à mulher morena da Arábia e a mameluca do Brasil a palidez romanesca das filhas melancólicas da poesia dos sonhos, e aos olhos negros da caucasiana, e aos negros cabelos da espanhola os olhos cor do céu azul da inglesa, e os cabelos de ouro das princesas dos cantos de Ossian.

— É extraordinário!

— O armênio com efeito o é; quer saber? no dia e na hora, em que o senhor quebrou a sua luneta, ele veio ter comigo e disse-me: "a salamandra libertou-se: o seu míope quebrou a luneta magica".

— É possível?!!!

— Dois dias depois as folhas diárias da capital deram conta do caso.

— E onde esta o armênio?

— Sempre encerrado em seu gabinete prestigioso no fundo do nosso armazém.

— Adivinhou então o meu infortúnio?

— E espera-o.

— Espera-me?

— Assegurou-me que o senhor nos procuraria amanhã: marcou-me o dia.

— Ainda esta!. era a minha idéia; confesso-o. E não o espanta essa previdência do futuro? Essa vidência do pensamento alheio?

— Espanta-me por certo; mas sei também que a ciência está longe de ter pronunciado sua última palavra sobre os assombrosos fenômenos do magnetismo..

— E o armênio

— Conta com a sua visita.

— Eu hesitava e temia...

— E ele assegura que dará novo e infalível recurso para vencer a sua miopia, novo e infalível porém não o mesmo.

— E se eu bater à sua porta?...

— A porta da nossa casa abre-se a todos os homens, que vão bater a ela, e para os honestos, para os honrados nunca houve hora em que não se abrisse.

— Irei amanhã.

— É o dia marcado pelo armênio.

— Marcou ele também a hora?

— Disse que do dia e da hora a escolha lhe pertence e que do dia e da hora depende a condição benigna ou maléfica do socorro que lhe poderá dar.

— E qual a hora mais propícia?

— Não quis dizer.

— Em todo caso terei luz para os meus olhos?

— Terá, conforme ele assevera.

— Depois da meia-noite começa o dia de amanhã: irei depois da meia-noite... estou ansioso... irei, se a sua bondade chega a tolerar a minha visita em horas, em que o descanso e o sono é um direito de todos.

— Hei de velar esta noite; não creio na magia; quero, porém, desejo e peço uma segunda experiência do poder desse armênio que se presume mágico, e se julga capaz de realizar impossíveis.

— Espere-me, pois que eu irei.

— Quer que previna o armênio?...

— Como lhe parecer melhor.

— Em tal caso prefiro experimentar, se espera e adivinha a sua visita. Não o prevenirei.

— Conte pois comigo; mas... depois da meia-noite.

— Por que tão tarde?...

— Não sei: instintivamente desejo falar ao armênio em hora mais próxima do dia...

— Achar-me-á velando.

O Reis levantou-se e, depois de me apertar a mão, retirou-se.