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A Luneta Mágica/IV/XXIX

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Tive um pensamento que estava naturalmente em relação com a negra tristeza do meu espírito.

Desejei estudar o cadáver, que se ia sepultar.

Fixei a minha luneta mágica no féretro.

Eis o que vi:

Primeiro um caixão de madeira coberto de ricos estofos pretos e de galões de ouro, dentro um cadáver já em corrupção, fétido, repugnante... Iodo e pó da terra e nada mais.

Logo depois a memória das singulares virtudes do finado e... oh!... a felicidade, a incomparável felicidade da morte!...

Eu vi, senti, compreendi a morte, que se patenteou tal qual é, a visão do bem!

Eu vi a morte— mal julgada, caluniada pelos homens — sono plácido, suavíssimo que começa à última dor, ao extremo transe da vida, e que acaba ao despertar nas delicias da eternidade; paz sem cuidados, sossego sem a mais leve perturbação— véspera instantânea da verdadeira vida— porta do fim que é luz celeste. — Oh! que gozos na morte! a podridão e o fétido do cadáver em sublime contraste muito de longe dariam idéia da pureza e do angélico aroma da alma que se desprende do pó! Que gozos na morte! O mais vaidoso dos reis sente-se pela primeira vez verdadeiramente grande e exaltado elevando-se à esfera onde se encontra igual ao mais humilde e rude dos vassalos ou escravos que tivera!... Não há dor, nem ânsias, nem moléstias, nem privações, nem miopia na imensa e refulgente região da morte! Aquela frieza enregelada do cadáver significa esquecimento absoluto das penas da vida efêmera e mundana.

Pela morte o escravo é livre, a criança e a virgem são anjos, a esposa jovem, a matrona e a velha santas, a mundanaria é Madalena purificada, o malvado, o celerado são arrependidos que se regeneram, o desgraçado é feliz, o mudo tem voz, o paralítico voa, o surdo ouve segredos, o cego vê nas trevas, o desgraçado é perfeitamente feliz!...

A morte é Jordão que lava as culpas...

A morte é glória...

A morte é luz...

Só a morte é que dá principio à vida.

Eis um pouco do muito que a visão do bem me fez descobrir e apreciar na morte.

O préstito já tinha passado.

Deixei cair a luneta mágica.

Abismei-me em profunda introversão, no estado da minha intima consciência, no estado novo e extraordinário do meu espírito...

Achei-me consolado, forte, invencível, contente, feliz...

Eu desejava, almejava morrer...

Morrer era começar a viver... e a viver que vida de delícias!...

Eu acabava de conceber a idéia, e de abraçar-me com a idéia do suicídio.