A Princesa dos Cajueiros/I
Praia. Ao fundo, o mar. À esquerda, uma cabana. À direita uma grande árvore, cujas ramagens, prolongando-se, formam as bambolinas.
Cena I
[editar]Marcos, pescadores, depois criadas.
(Ao erguer-se o pano, a cena está vazia.)
Introdução
Coro (Ao longe.) - Do mar ao remanso
Lá vou,
Que a vez do descanso
Chegou!
(Chegam à praia duas canoas tripuladas por Marcos e pescadores, que saltam para terra, trazendo cestos de peixe.)
Coro - Que viver folgado,
Pesar de arriscado,
Viver a pescar!
Não há quem se queixe
De haver pouco peixe
No fundo do mar.
Marcos - Tocai as buzinas,
E venham, meninas,
O peixe comprar!
(Toque de buzina pelos pescadores.)
Todos - Ao som das buzinas
Vão vir meninas
O peixe comprar!
(Entra um grupo de criadas, munidas de cabazes.)
Criadas - A noite começa,
Começa a cair,
Por isso, depressa
Nos devem servir.
Pescadores - A noite começa,
Começa a cair,
Por isso, é depressa
Que as vamos servir.
(Durante este Coro as criadas enchem os seus cabazes de peixe que compram e pagam aos pescadores.)
As Criadas - Adeus! Adeus!
Marcos - Um momento!
Que minha voz vou soar ao vento!
Barcarola
I
- Minha barquinha ligeira,
Feiticeira,
Leva-me longe daqui!
Singra esse mar docemente,
Suavemente...
Eu todo me entrego a ti!
Ai, ló, lé!
Ai, ló, lé!
Ao largo, que enche a maré!
Todos - Ai, ló, lé!
Ai, ló, lé!
Ao largo, que enche a maré!
Marcos - A lua triste e formosa
Surge airosa,
Surge airosa lá nos céus!
E a brisa que ajuda o leme
Chora e geme
Passando nos mastaréus
Ai, ló, lé!
Ai, ló, lé!
Ao largo, que enche a maré!
(Às criadas.) - Estou satisfeito. Podem ir embora.
As Criadas - Adeus, adeus! (Saem por diversos lados, como entraram.)
Marcos - Bem. Desta vez os cestos ficaram vazios. - Rapazes, a noite parece que é boa... Vão tratar da vida, que a morte é certa.
Os Pescadores - Até amanhã, Marcos! (Entram para as canoas.)
Marcos - Até amanhã.
Coro de Pescadores - Do mar ao remanso
Lá vou
Que a vez do descanso
Chegou!
(As canoas afastam-se e as vozes perdem-se ao longe.)
Cena II
[editar]Marcos, só
[Marcos] - A ocasião é excelente. A tia Teresa esta sozinha em casa e Paulo erra nos mares, a pescar sardinhas e a entoar barcarolas. Vamos lá deixar a mesada. (Tirando uma bolsa e vai deitá-la por baixo da porta de Teresa.) Pronto! E dizer que faço isso há vinte anos! Toca a safar! (Vai saindo. Teresa abre sua porta.)
Cena III
[editar]Marcos, Teresa
Teresa (Vendo-o.) - Adeus, ó Marcos! (Dando com a bolsa.) Ah! cá está... cá está...
Marcos (Voltando.) - Olá Tia Teresa!... (À parte.) Se me viu...
Teresa - Que novas me dá de Paulo? Viste-o por aí?
Marcos - Vi-o a pescar.
Teresa - Sai de casa pela madrugada... vai cair a noite, e nem sinal! É incorrigível! Só a minha paciência!
Marcos (Que tem deitado fumo no cachimbo.) - Na verdade, dão muito que falar os modos misteriosos de seu filho.
Teresa - Meu filho... Antes o fosse!
Marcos - Mas é como se o fosse: vive em sua companhia desde a tenra idade.
Teresa - Quando veio para minha companhia, há vinte anos, poderia ter poucas horas de nascido. Foi uma época terrível para mim... Meu marido e meu único filho haviam morrido... e eu estava reduzida à mais negra miséria...
Marcos - Mas Paulo foi seu anjo bom; não é assim?
Teresa - Dizes bem: foi o meu bom anjo. Enjeitaram-no à minha porta, é verdade; mas, ao mesmo passo que me sobrecarregavam com a pensão de educá-lo, substituíram meu filho e garantiram-me a subsistência honrada.
Marcos (À parte.) - A quem ela o diz...
Teresa - Entre os panos que o envolveram, achei uma bolsa recheada e uma carta que assim dizia: (Recita a carta escrita pelo Doutor no Prólogo. A mesma música na orquestra.)
Marcos - E a tia Teresa, justiça se lhe faça, cumpriu religiosamente a misteriosa incumbência.
Teresa - Cumpri. Dei ao menino o nome de Paulo, que, dos três apóstolos, foi o que melhor me pareceu. Recebeu uma educação de príncipe.
Marcos - De príncipe?
Teresa - Isto é um modo de falar.
Marcos - E Todos os meses é infalível o dinheiro?
Teresa (Mostrando-lhe a bolsa.) - Vês? Agora mesmo acabo de encontrar, metida por baixo da porta, a mesada correspondente ao mês que hoje principiou. Graças a esse dinheiro a nossa existência tem sido descansada e feliz. O que me dá a pensar é a negação absoluta que Paulo, desde os mais verdes anos, revelou pelo trabalho. Quando soube do mistério em que se acha envolvido o seu nascimento, e da mesada certa que eu percebia, disse: - Bem! esse dinheiro chega-nos: não é preciso trabalhar.
Marcos - Nasceu para fidalgo...
Teresa - Nasceu fidalgo, deves dizer. O seu prazer é andar pelos bosques ou pelo mar: quem lhe tirar a caça ou a pesca, tira-lhe tudo.
Marcos - E, segundo me consta, é outro esquisitão a respeito de mulheres...
Teresa - Não fazes idéia, Marcos! Nunca ninguém lhe conheceu namorada! A Petronilha...sabes?
Marcos - Sei, tia Teresa...
Teresa - Pois bem: a Petronilha gosta dele... Estou mesmo convencida que o ama deveras... e...não há meio!
Marcos - Deixe lá, tia Teresa. Paulo não é nenhum santo; aquilo é que as faz pela calada. - Olhe, se não me engano, é ele que ali passa ao largo.
Teresa - É ele... é...
Marcos - Deixa-se levar pela correnteza...
(Paulo passa pelo fundo, sentado à proa de uma canoa, que desliza suavemente nas águas, e canta o seguinte.)
Barcarola
[Paulo] - O mar que ruge raivoso
Medo nunca me causou!
As minhas velas às brisas!
Às brisas soltar vou.
Meu Deus, como se parecem,
Quando a noite é de luar,
Os pirilampos da terra
Co’as ardentias do mar.
(Desaparece no lado oposto.)
Marcos - Bom. Vai longo o palanfrório. Adeus, tia Teresa.
Teresa - Vou contigo. Tenho que dar uma voltas. Deixa-me dar uma à chave.
Marcos - Uma! o quê?
Teresa - Uma volta. (Tira a chave e mete-a por baixo da porta.) Cá fica por baixo da porta. Paulo já sabe onde a deve encontrar.
Marcos - Vamos, tia Teresa. (Saem.)
Cena IV
[editar]Petronilha, só
(Entra arrebatadamente pelo lado oposto àquele por onde saíram Marcos e Teresa.)
Coplas
I
[Petronilha] - Eu sou Petronilha,
Moça original.
Que não tem rival
Em toda esta ilha;
Ninguém pelos campos
Me apanha a saltar;
E lá recuar
Nem chuva, relampos
Coriscos
E riscos
Que sempre formigam,
Me obrigam!
- Eu sou Petronilha,
Moça original.
Que não tem rival
Em toda esta ilha;
II
- Como eu quem maneja
Qualquer varapau?
De faca e calhau
Não sei quem mais seja!
‘Stou doida de amores:
Meu fraco aqui está;
Mas olhem que lá
Cabelos e flores,
E cousas,
E lousas
Que as outras empregam,
Não pegam!
- Eu sou Petronilha,
Moça original.
Que não tem rival
Em toda esta ilha;
- Paulo já deve estar de volta. (Batendo à porta.) Paulo! Paulo! Dar-se-á caso que não voltasse ainda?... (Bate.) A tia Teresa, essa não está que a vi ir daquele lado em companhia de Marcos. (Batendo.) Paulo! Paulo! Aposto que não quer abrir, porque já me reconheceu a voz! E não é outra coisa! Pirracento! (Bate.) Qual! (Desce à cena.) E dizer que me entrou este amor, no coração como uma praga! Amo-o, adoro-o, e ele despreza-me, como se eu não fosse digna de seus cuidados! - Ah! mas agora resolvi mudar de tática, e exigir o seu amor, como os salteadores exigem a bolsa ou a vida dos viandantes na estrada. A mulher está no seu direito, deixando de corresponder a este ou àquele afeto, mas o homem... Faça-me o favor! Nada! há de ir por aqui, se por aqui o mandarmos. Era o que faltava: estar eu agora à mercê dos caprichos do Senhor Paulo! Ou ele ama-me, ou deito-me a perder! (Vai bater à porta.) Paulo! Paulo! Abre, ou deito ombros à porta! Ah! não ouves? não queres abrir? Lá vai! (Tenta arrombar a porta. Durante a última parte deste monólogo, Paulo tem entrado pelo fundo e observado.)
Cena V
[editar]Petronilha, Paulo
Paulo (Do fundo.) - Ó mulher, não me escangalhes a porta!
Petronilha (Puxando-o pelo braço, à boca de cena.) - Há duas horas que estou a bater!
Paulo - E que culpa tenho eu disso?
Petronilha - Não podias ter dito que não estavas em casa?
Paulo - Vamos saber: o que deseja a senhora? Se ainda vem oferecer o seu amor, o melhor é calar-se, porque a esse respeito, resolvi pôr em prática o adágio: orelhas moucas a palavras ocas!
Petronilha - Sim, senhor: trata-se de amor, mas note bem: não lho venho oferecer: venho impor-lho; entende? Arrebatá-lo, arrancá-lo à força desse coração de pedra.
Paulo - Ora ouve, e deixa-te e desatinos!
Petronilha - Vamos lá!
Coplas
I
Paulo - Mal empregas esse afeto:
Vê se o empregas melhor;
Vai procurar outro objeto
Para o teu férvido amor.
Se te causo algum desgosto,
Bem mereço o teu perdão,
Pois amor não é imposto,
Lançado no coração
Petronilha - Se eu fosse de faniquitos,
Tremiliques, tremilaques,
Dava agora quatro gritos,
Tinha agora três ataques!...
II
Paulo - A correnteza de um rio
Se alguma pedra topar,
Há de tomar um desvio,
Há de outro rumo tomar;
Faze tu como o regato,
Essa pedra, ei-la aqui está...
Tão bom conselho e sensato
Ninguém te deu nem te dá.
Petronilha - Se eu fosse de faniquitos,
Tremiliques, tremilaques,
Dava agora quatro gritos,
Tinha agora três ataques!...
Paulo - Que queres que eu te faça? Reconheço que és uma excelente rapariga, que nada deixa a desejar: bonita, virtuosa, trabalhadeira...
Petronilha - E apatacada.
Paulo - Isso é o menos; mas enfim... és uma mulher como se quer. Feliz do homem que se fizer teu marido!
Petronilha - Então? O que mais queres tu? Amo-te, porque te distingui de Todos os pintalegretes da ilha, e tu desprezas tão generoso afeto!
Paulo - O meu coração não foi feito para o amor. Adeus, minha amiga, não me queiras mal; ofereço-te uma amizade de irmão, como nos romances. Aceitas? Se aceitas, muito bem; se não, viva!
Petronilha - Nada! não quero assim! Desejo que me ames para casar.
Paulo - Isto é o que se chama a faca aos peitos!
Petronilha - Vamos: faze-me a vontade.
Paulo - Não está em minhas mãos.
Petronilha - Mas está em teu coração; procura bem, que acharás.
Paulo - Não tenho coração.
Petronilha - Anda, dá cá um beijo, e eu te mostro se tens ou não tens coração...
Paulo - Estás doida! Eu dou lá beijos no meio da rua! (A cena vai ficando escura pouco a pouco.)
Petronilha - Então entremos... Onde está a chave?
Paulo - Tu enlouqueceste, mulher!
Petronilha - Vai, pedaço d’asno! A culpada sou eu, que me não devia apaixonar por um enjeitado!
Paulo - Se sou o enjeitado da família, tu és a enjeitada do amor. Ela por ela!
Petronilha - Olha que te esmurro!
Paulo - Pois esmurra! (Procurando a chave.) Nem assim conseguirás que eu te ame! (Abre a porta, entra e fecha-se.)
Petronilha - Paulo! Paulo!
Paulo - Adeus! Adeus!
Cena VI
[editar]Petronilha, só
[Petronilha] - Aqui anda coisa... Quem não come é porque já comeu, dizia meu avô. Mas digo eu: quem não come está para comer. deixa estar, que não te perco de vista. (Olhando para dentro.) Quem vem ali?! Uma mulher com o rosto inteiramente encoberto por um véu! Quem sabe se... Escondendo-se atrás da árvore.) Observemos.
Cena VII
[editar]Petronilha, escondida, a Princesa, ao fundo, Paulo, que sai da cabana cautelosamente.
Paulo - São horas de chegar a minha misteriosa amante. Custei a ver-me livre daquela maldita Petronilha!
Petronilha (À parte.) - Obrigada.
Paulo (Vendo a Princesa.) - Ah! Era tempo! Ei-la! (Corre para a Princesa, e trá-la à boca de cena.)
Petronilha (À parte.) - Então? Sempre há palpites...
Dueto
Princesa - Paulo
Paulo - Meu anjo!
Princesa - Aqui me tens!
a tremer venho...
Paulo - A tremer vens...
Princesa - Será saudade ou ciúme
O abalo que sinto aqui?
A pobre rolinha implume,
Ao verde ninho arrancada,
Não fica tão magoada
Como eu, se longe de ti!
Paulo - Será ciúme ou saudade
A causa desta emoção?
Tristeza cruel me invade,
Pungente dor me quebranta,
Se tardas, ó minha santa,
Se tardas, meu coração!
Juntos - Ó meu/minha amante,
Caro penhor,
Que doce instante
Do nosso amor!
Amo-te muito:
Ama-me assim!
Amo-te muito,
Meu querubim!
Paulo - Mas quero enfim saber quem és, ó doce amada!
Petronilha (À parte.) - Ah! se ela o diz, estou vingada!
Princesa - Saber não desejes,
Meu Paulo, quem sou!
Paulo - Amor, não gracejes,
Que sôfrego estou...
Princesa - Saber tu não deves
Quem sou, donde vim.
Paulo - Por que não te atreves
A dizer-mo a mim?
Princesa - Segredos eu tenho...
Paulo - Convenho, convenho;
Mas diz-mos!
Petronilha (À parte.) - Enfim!
Princesa (Com mistério.) - Eu a Princesa sou dos Cajueiros!
Paulo - A Princesa!... Tu?!
Petronilha (À parte.) - Tur lu tu tu
Tur lu tu tu
A filha! ó céus! d’El-Rei Caju!...
(Saindo, com gestos ameaçadores.)
Vou me vingar destes brejeiros!
Paulo - És a Princesa!
Princesa - E no entanto,
Amo-te tanto, amo-te tanto...
Juntos - Ó meu/minha amante,
Caro penhor,
Que doce instante
Do nosso amor!
Amo-te muito:
Ama-me assim!
Amo-te muito,
Meu querubim!
Cena VIII
[editar]Paulo, Princesa
Paulo - Mas tu... Vossa Alteza...
Princesa - Qual Vossa Alteza! Trata-me por tu... Ora aí está! Por essas e outras e que eu queria guardar o incógnito.
Paulo - Princesa! Filha do Rei! É impossível então que nos unamos! Nada pode haver de comum ente nós, senão o esquecimento mútuo.
Princesa - Por quê?
Paulo - Sou um pobre enjeitado...
Princesa - Que importa! Fugiremos!
Paulo - Fugir! pois há de Vossa Alteza...
Princesa - Trata-me por tu, sim?
Paulo - Desprezarás as honras que te cercam, o cetro de ouro que te aguarda, para seguir um miserável, sem passado, sem presente e sem futuro?!
Princesa - Deixa dizer-te, e acredita: o viver da corte me enfastia, faz-me mal aos nervos. Depois que morreu minha mãe, e já lá vão tantos anos, apoderou-se de mim um desapego tal pela corte... O que deu motivo a tanto azedume? Não sei... Não sei... O que é certo é que não me sinto Princesa... Os meus instintos são Todos burgueses e triviais. Quisera viver tranqüila, ao lado de uma maridinho como tu... a pontear meias, marcar lenços...
Paulo - Eu, o inverso, senhora! Por isso mesmo que nasci sem pai nem mãe; por isso mesmo que sou o ínfimo dos homens, sinto-me talhado para as regiões supremas do poder! Ah! que se eu pudesse mandar cortar uma cabeça... ou duas... ou todas, como Caligula! Por ser o menor, desejava tornar-me o maior... Para quê? Para vingar-me talvez! Para ter ocasião de desprezar os que me desprezam!
Princesa - Admiras-te de me ver aqui! O amor tinha para mim irresistível encanto. Eu não o conhecera nunca, mas adivinhava-o.
Paulo - Não o conhecias?
Princesa - Não ligava o nome... Quem se atreve na corte a levantar os olhos para a infanta? O amor é-lhe interdito. Um dia, mandam o meu retrato a um príncipe de outro reino, e dizem-lhe, ao príncipe: - Aí vai a amostra, vêde se vos agrada. Se assim for, mandai buscá-la. É sacrificando as Princesas que se apertam os laços entre as nações. Não nos casamos por amor: casamo-nos por diplomacia. Ah! política! política!
Paulo - Meu anjo!
Princesa - Anteontem, descobri no meu aposento uma porta secreta que dá para o jardim. Descobri no jardim outra porta secreta que dá para a rua. É hoje! disse eu comigo. E saí! Vi-te, e amei-te. Daí é que principiei a ligar o nome...
Paulo - Mas... se dão pela tua ausência?
Princesa - Não dão. Tenho por costume fechar-me por dentro. O único que poderia interromper minha solidão é meu pai; mas esse anda todo entretido com a Duquesa da Guarda Velha!
Paulo - A Duquesa da Guarda Velha?
Princesa - Uma fidalga estrangeira, que foi há dias apresentada à corte... Uma excelente senhora. Ama-me como se me conhecesse de velha data. Diz-se no paço que meu pai casa com ela. É uma felicidade! Eu não escolheria outra madrasta. (Música. Aparece no mar uma suntuosa gôndola, distinguem-se a Duquesa da Guarda Velha e o Barão do Bonsucesso.) Oh! É ela!...
Paulo - Ela quem?
Princesa - A Duquesa da Guarda Velha! O que virá fazer aqui? Ai! O Barão vem com ela! Não há mais tempo! Viram-me! Estou perdida! Condenam-me à morte!
Paulo - Cala-te. (Leva-a para a cabana.)
Princesa - Ah! (Entram ambos na cabana.)
Cena IX
[editar]Barão, Duquesa, gondoleiros e damas de companhia. Noite completa. Luar.
Canto
Coro Geral - Dá Guarda Velha eis a Duquesa!
Cá ‘stá! Cá ‘stá!
Melhor senhora com certeza
Não há! Não há!
Barão (Saindo da gôndola e oferecendo a mão à Duquesa para sair também.) - Eis-vos, enfim, chegada
À praia desejada.
(À parte.) Não sei por quê,
Nem para quê.
Duquesa - Muito obrigada.
Barão - Não há de quê.
Duquesa (A uma dama.) - Manda embora os gondoleiros:
Volto a pé.
Todos - Volta a pé!
As Damas - Ide embora, gondoleiros,
Ide ligeiros,
Que a Duquesa volta a pé!
Um de seus caprichos é.
Gondoleiros - Dá Guarda Velha eis a Duquesa!
Cá ‘stá! Cá ‘stá!
Melhor senhora com certeza
Não há! Não há!
(As gôndolas desaparecem com os gondoleiros, e as damas ficam ao fundo.)
Coplas
I
Duquesa - Não me foi a sorte avara,
Eu não me devo queixa.
Barão (Sempre à parte.)
- Não me é estranha aquela cara,
Mas não me posso lembrar.
Duquesa - A ventura bem se esconde;
Mas, no entanto, a descobri.
Barão - Não sei quando, nem onde
Aqueles olhos já vi.
As Damas - Com é bela esta paragem!
Fresca aragem
Corre aqui!
II
Duquesa - Da pobreza que vitória!
Pois Duquesa hoje sou!
Barão - Dou mil tratos à memória,
E contudo, em branco estou...
Duquesa - ‘Spero em breve ser rainha,
Pois El-Rei morre por mim!
Barão - Ai, que cabeça esta minha!
Nunca vi cabeça assim!
As Damas (Descendo à cena.)
- Que lugar! que formosura!
Que frescura!
Que jardim!
Duquesa (Às damas.) - Afastai-vos! Ide admirar os prodígios desta natureza privilegiada. Preciso conversar a sós com sua Senhoria, o Senhor Barão do Bonsucesso. (À parte.) A casinha deve ser esta.
(As damas afastam-se para o fundo, onde se dividem em grupos.)
Repetição
As Damas (Descendo à cena.)
- Que lugar! que formosura!
Que frescura!
Que jardim!
Duquesa - Afinal! Chegou enfim o momento! (Dirigindo-se ao Barão e fitando-o.) Olhe bem para mim! Não me conheces?
Barão - Duquesa!
Duquesa - Desconhece-me! Não assombra! Há vinte anos que não nos vemos... as fisionomias transformam-se...
Barão - Ah! Virgínia!!
Duquesa - Mas ouve: eu reconheci-te à primeira vista. Assim deveria ser: conservava de ti a mais dolorosa impressão. Era impossível que se me varressem da memória estes olhos, que me mentiram... esses lábios, que me mentiram... esse nariz...
Barão - Nada! o nariz é que não te mentiu... E folgo de ver que ainda não deste de mão ao teu romantismo.
Duquesa (Em outro tom.) - Dê-me Excelência, Barão.
Barão - Dê-me Senhoria, Duquesa... e expliquem-nos. Desde que Vossa Excelência chegou, que tenho buscado a adivinhar em suas feições a fisionomia de outra pessoa. Vossa Excelência é a Virgínia, minha pobre Virgínia, emendada e consideravelmente aumentada. Vossa Excelência dignar-se-á, se tanto mereço, explicar-me o modo pelo qual se operou tão estranha metamorfose.
Duquesa - Muito simplesmente, Barão: Vossa Senhoria lembra-se de que, logo depois de casada com primo Bernardino, fomos, eu e ele, a correr o mundo? Depois de andarmos por seca e meca, resolvemos firmar a nossa residência na Ilha da Guarda Velha.
Barão - O quê? Pois foram a seca e meca e não deram um pulo até a olivais de Santarém, que é tão perto?...
Duquesa - Oito anos depois, meu marido morreu, deixando-me uma avultada riqueza. Dois anos depois da morte do meu marido, comecei a ser requestada pelo fidalgo mais poderoso da ilha, o Duque da Guarda Velha, senhor feudal em dez léguas de terreno e homem de senso prático. Casei com o Duque da Guarda Velha. Seis anos depois, enviuvei pela segunda vez. Há quatro anos que me sucedeu esta catástrofe.
Barão - Vejam de que escapei! Se me tivesse casado com Vossa Senhoria, estava a estas horas no outro mundo!
Duquesa - Deixei passar no feudo a minha lua de mel....
Barão - Outra?
Duquesa - A lua de mel da viuvez. E aqui estou. Vamos ajustar contas, Senhor Barão: Vossa Senhoria sabe onde quero bater?
Barão - Perfeitamente. Vossa Excelência quer bater àquela porta... Agora percebo por que a Duquesa me pediu que a acompanhasse a este sítio...
Duquesa - Ainda bem que o percebe. Sem querer, fui informada que é ali que vive aquele cujos direitos extorquimos por amor da cabeça de Vossa Senhoria e por amor de minha filha.
Barão - Da nossa filha, Duquesa.
Duquesa - De nossa filha, Barão. - Pedi então a Vossa Senhoria que me acompanhasse a esta praia, para, de viva voz e em sua presença, informar-me se foram cumpridas as suas obrigações. Se assim não sucedeu, trema: Vossa Senhoria não deve ignorar que foi hoje tratado o meu casamento com El-Rei Caju.
Barão - Não, Senhora Duquesa, e esse casamento é uma grande honra para mim... porque, enfim, eu... mas lembre-se Vossa Excelência de que mesmo porque eu... in illi tempore... compreende? não pode lançar-me no abismo, sem ser arrastada na queda pelo meu corpo...
Duquesa - Enfim, viveremos como anjos, se o Barão cumpriu o que prometeu há vinte anos. Serei feliz ao lado da minha filha...
Barão - De nossa filha, Barão. - Hei de habituá-la a dar-me o tratamento de mãe.
Duquesa - Eu é que não posso obrigá-la a chamar-me de pai... e no entanto, amo-a...
Duquesa - Sei que a ama, e agradeço-lhe... Mas... vamos...
Barão - Não é preciso: aí vem a mulher a cujos cuidados está entregue o príncipe. Ela nos dirá...
Duquesa - Silêncio...
Cena X
[editar]Os mesmos, Teresa, que vai atravessando a cena para entrar em casa, depois El-Rei
Barão (Embargando-lhe a passagem.) - Senhora Teresa...
Teresa - Quem é?
Barão - Um momento de atenção. Conhece-nos?
Teresa - Ah! o médico do paço!
Barão - Então já vê que não somos para aí quaisquer notívagos. - Esta senhora deseja tomar certas informações...
Teresa - Estou às suas ordens, minha senhora. Não quer entrar?
Duquesa - Por ora não. Diga-me cá... (Toma-a de parte, e fala-lhe baixo. El-Rei entra, embuçado dos pés à cabeça, sem ser pressentido pela Duquesa, e bate levemente no ombro do Barão.)
Barão - El-Rei!
El-Rei - O que vieste fazer aqui em companhia da Duquesa?
Barão - Sua Excelência quis admirar esta praia... Faz um luar esplêndido... Pediu-me que a acompanhasse...
El-Rei - É singular! No momento em que firmamos nosso contrato de matrimônio, abandona-me, para vir admirar uma praia! Ah! Barão! quem me viu e quem me vê! Quem diria que aquele El-Rei Caju, o enérgico, havia de tornar-se um babão por esta mulher! Julguei que não devia contrair segundas núpcias; mas o amor, Barão, o amor...
Coplas
I
- Para ser livre, tinha resolvido
Não mais casar-me. Que dirás, ó povo?
Mas, ai! de amores, ó Barão, perdido,
Caio na asneira de casar de novo.
O amor de nós dá cabo!
É o diabo!
Ambos - É o diabo!
II
El-Rei - A ninguém poupa de Cupido a seta;
Ninguém se isenta de ser alvo dela:
Se o mais altivo coração espeta,
O mais altivo coração debela!
O amor de nós dá cabo!
É o diabo!
Ambos - É o diabo!
El-Rei - E sabes o que aqui me trouxe. Barão? O ciúme... Ora aqui tens tu: teu rei tem ciúmes! - Quem é aquela mulher com quem conversa a Duquesa?
Barão - Uma pobre criatura... A Duquesa, sempre que lhe apresenta ensejo, da expansão ao sentimento da caridade, que é o apanágio de seu boníssimo caráter.
El-Rei - Ah!
Duquesa - Muito bem. Aprecio suas virtudes, e hei de premiá-las. (Voltando-se.) Estou satisfeita, Barão. (Vendo o Rei.) Quem é?
El-Rei (Desembuçando-se.) - Eu, Duquesa!
Teresa (À parte.) - El-Rei! Que quer isto dizer?! (Entra em casa.)
Duquesa (Perturbada.) - Vossa Majestade! Que agradável surpresa!
El-Rei - Por que não me ordenou que a acompanhasse?
Duquesa - Oh! senhor... não me atrevia...
El-Rei - Nada de cerimônias... Não sei estar um instante longe da Duquesa... Estou caído, estou derreado... Oh! como a amo!
Barão (Que tem olhado para os bastidores.) - O que é aquilo? Um grupo.
El-Rei - Vamos para ali. Não convém que nos reconheçam. (Reúnem-se os três às damas, que se conservaram ao fundo.)I
Cena XI
[editar]Os mesmos, os Ministros, Nheco, Petrolina
(Os Ministros e Nheco trazem cada um a sua lanterna furta fogo na mão. Petronilha condu-los.)
Final
Petronilha - Já cá não estão!
(Apontando para a cabana.)
Entrem; ali os acharão!
Nheco - Isto parece estranho!
Há já vinte anos que não tomo banho!
Petronilha - Não há tempo a perder!
Os melros podem as asas bater!
(Dirigem-se Todos com muito mistério para a cabana.)
Nheco - Vamos lá! vamos lá!
Nheco e Ministros - Cautela!
Cautela!
Baixai a voz!
Que a bela,
Que a bela,
Não dê por nós..
Os Outros - O que quer dizer aquilo?
Que quer aquilo dizer?
Barão - Eu não estou nada tranqüilo!
Duquesa - ‘Stou a tremer!
Damas - ‘Stou a tremer!
Nheco (Batendo à porta.) - Em nome d’El-Rei Caju!
El-Rei - D’El-Rei Caju!
Todos - Em nome d’El-Rei Caju!...
(Abre-se a porta e entram na cabana Petronilha, Nheco e o Ministros, repetindo o Coro
- Cautela!
Cautela!
Baixai a voz!
Que a bela,
Que a bela,
Não dê por nós..
Cena XII
[editar]El-Rei, Barão, Duquesa, damas, Cortesãos, depois Nheco, Petronilha, Paulo, Princesa, Ministros
Coro de Cortesãos (Entrando em confusão.)
- Será possível!
Não pode ser
Que suceder
Possa este fato;
Mas, se assim for,
Que espalhafato!
Que horror! Que horror!
Os que estão ao fundo - O que será?
O que haverá?
Do paço a gente toda aqui está!..
(Saem da cabana os Ministros e Nheco, segurando em Paulo e na Princesa. Acompanha-os Teresa e Petronilha. Assombro geral. Perturbação do Barão e da Duquesa.)
Nheco e os Ministros - Cá ‘stão!
Precisam de uma boa lição!
El-Rei - Exijo disto explicação!
Nheco - Quem és tu?
El-Rei- (Deixando cair a capa.)- El-Rei Caju!...
Todos - El-Rei caju!...
Nheco - Somente vos direi
Que Vossa filha está perdida. ó Senhor Rei!
El-Rei - Perdida!
Duquesa - Perdida!
Barão - Perdida!
Todos - Perdida!
El-Rei - Por minha vida!
Vais-me explicar no mesmo instante!
Princesa - Pois não! Pois não! Eis meu amante!
Paulo - Sou seu amante!
Paulo e Princesa - Estamos perdidos!
Fatal situação!
E em breve metidos
Em negra prisão!...
Concertantes
Barão e Duquesa - Não posso salvar-me!
Fatal situação!
Vai prejudicar-me
Tal complicação!
El-Rei - Eu caio!
Desmaio!
Tombar vou no chão!
Foi como que um raio!
Foi um furacão!
Todos - Imóveis de pasmo
Todos aqui estão!
Que enorme sarcasmo!
Que insulto à nação!
Paulo e Princesa - Que desgraça infinda!
Que negro sofrer!
Tão novos ainda,
Nós vamos morrer!
Repetição do concertante
El-Rei - Tudo esqueceste, tudo, Princesa!...
Princesa - Meu pais, atenda!
El-Rei - Não sou teu pai!
E tremam Todos! A Vossa Alteza
Castigo horrendo ser dado vai!
Todos - Ser dado vai!
I
El-Rei - Quer como pai, quer como rei,
Abuso tal castigarei!
Mas conheço,
Reconheço
Que o amor de nós dá cabo...
É o diabo!...
Todos - É o diabo!
II
El-Rei (A Paulo.) - E a ti, plebeu, vilão ruim,
Mandarei dar na forca fim!
Mas, no entanto,
Não é santo!
E o amor de nós dá cabo...
É o diabo!...
Todos - É o diabo!...
El-Rei - Senhores meus Ministros,
Tomai ares sinistros,
E os dois heróis levai!
(Encarando Paulo.) - Mas agora reparo!
Caso realmente raro!
Este insensato
Da minha mulher é o retrato!...
Todos - Justiça! Justiça!
Justiça fatal!
Não haja preguiça
Para um caso tal!
Paulo e a Princesa - Cruel castigo
Não nos importe!
É doce a morte
Ao lado teu!
Viver na terra
Não nos é dado!
Vem ao meu lado
Viver no céu!
Coro Geral - Mas na verdade
Na realidade,
O amor de nós dá cabo...
É o diabo!...
É o diabo!...
[Cai o pano]