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A Pulseira de Ferro/III

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Passaram-se doze ou quinze dias, e o dono da criança não apareceu. Padre Guilherme indagou, matutou, rastreou indícios e nada adiantou.

A única testemunha conhecida era o Chicão, que fora quem falara, na igreja, com os portadores da criança: mas o Chicão, era um semidemente (dizia o padre), não sabia senão repetir as duas ou três coisas vagas que dissera no primeiro dia. O Vito ignorava tudo: declarava que, na hora em que "os tais" estavam a falar com o sacristão na frente da igreja, ele andava a varrer a "sancristia" e de lá não saíra até que o padre chegasse. A opinião da Rosa concordava com o depoimento do sacrista: aquilo foi arte de gente que queria enjeitar o. "provezinho" e, isso feito, raspou-se por esses mundos de Deus. O que tudo somado, ficou o padre, de pedra e cal, na intenção de adotar o pequeno por filho. Levou-o à pia nos braços da Rosa, todo embonecado no seu comprido vestido branco, a touca ataviada de fitinhas azuis, fechando-lhe, como a casca de uma semente grossa, a cabecita redonda e cor de cuia.

A escolha dos padrinhos, e com ela todas as minúcias do ato, foram amorosamente pesadas e repesadas pelo padre. Antes de tudo, a fixação do nome. Na véspera, padre Guilherme chamou a Rosa à sala de jantar e, comunicando-lhe que no dia seguinte se batizaria o menino, consultou-a, numa doce complacência:

- Diga-me uma coisa: que nome você lhe poria?

A Rosa sorriu enleada e lisonjeada pela atenção, e, afinal:

- Não sei, não, senhor.

- Ora, diga lá, vamos a ver.

- Tubia! ejaculou a mulata muito depressa.

- Tobias? Sim, não é mau nome... Mas não se lembra de outro?

- Migué!

E o padre repetia o nome, olhos no ar, como se lhe estivesse a tomar o gosto:

- Miguel... Miguel.

- Venanço! Purfiro! Benedito!

- Espere, espere. Porque não lhe havemos de pôr o nome de Chicão, coitado! Além do mais é uma homenagem que presto a esse bom amigo de tantos anos, tão fiel, tão bonachão...

- Ih! "seu" padre, Chicão é muito feio.

- Chicão não é nome, mulher, Chicão é Francisco, Franciscão.

- Eu sei, mas pensava.

- E você nem sabe que o nome do Chicão não é Francisco! Chicão era o pai, e a alcunha passou ao filho. Foi a única herança, além daquela cabeçorra de moganga, que o Chicão velho lhe deixou. Seu nome de batismo é Matias.

- Matias é bonito.

- Pois prepare o nosso Matiazinho para amanhã, às nove horas.

Padre Guilherme deu umas passadas pela sala, preocupado, o beiço superior entalado entre os dentes, as mãos enclavinhadas uma na outra, a estalar os dedos. De repente, parando:

- Rosa, você que acha?

- "Seu" padre...

- Eu tinha pensado em escolher S. Benedito para padrinho do rapaz. Acontece, porém, que eu também tenho vontade de o ser... Não lhe parece que o santo pode ficar zangado?

- Acho que não. Santo não se zanga à-toa. Por isso mesmo é que é santo.

- Você fala como uma teóloga, Rosa.

- Bem, o padrinho sou eu. E a madrinha, Rosa?

- Não pensa que deve ser Nossa Senhora das Candeias?

- Não hai madrinha mió, seu padre.

- Sob o ponto de vista mundano, haveria, talvez...

A cozinheira não compreendeu, mas o padre não insistiu.

- E as roupinhas, Rosa? Estão prontas as roupinhas?

- Nhá Maruca prometeu entregar hoje de tarde o vestidinho e os sapatos. Depois da "janta" vou lá. A touca já está aí. O senhor já viu, não já?

À tarde, a Rosa "foi lá" e voltou sem o vestidinho e sem os sapatos: faltava pôr uns laços ao primeiro e rematar os segundos: juraram mandá-los no dia seguinte bem cedo. Padre Guilherme irritou-se:

- O diabo, queira lidar com costureiras! Essa droga devia estar aqui há três dias! Espere, que eu vou ver isso.

Envergou a batina, pegou o chapéu, pô-lo meio atravessado, enfiou o guarda-chuva embaixo do braço, e ia saindo em chinelos.

Advertido pela cozinheira, consertou o esquecimento, meio envergonhado, e partiu ardendo de ânsia, mas fingindo perfeita calma.

- Eu vou lá... Preciso mesmo falar ali com o Evaristo da loja... não custa.

E saiu, com as mãos nas costas, e devagar, como quem não tinha pressa.

No dia seguinte, o batizado fazia-se à hora designada e, de volta, padre Guilherme não pôde conter-se que não pegasse numa das mãozinhas do pequenito, e não a levasse aos lábios espichados em bico, num beijo sonoro.

- Você sabem? - disse ele à Rosa e ao Chicão, na sala de jantar, a descalçar os sapatos. - Eu só não gostei de uma coisa: o pequeno não chorou ao levar a água fria no coco... Dizem que é mau. Vocês que acham?

- Qual, "seu" vigário! eu não acredito nessas histórias, - disse a Rosa, muito firme, num muxoxo.

E o Chicão sentenciou, com a mesma superioridade serena:

- Tem muito tempo "pra chorá", "seu" padre!