A Pulseira de Ferro/XIII
Os ternos cuidados de Veloso nada adiantaram. Padre Guilherme, cada vez mais amofinado e sorumbático, - a vida mortiça de Candeias facilitava a hipertrofia da idéia fixa, - tomou, de repente, a resolução de se ir embora. Embalde Veloso tentou desconvence-lo, embalde lhe representou em vários modos e tons a sem-razão e os inconvenientes de tal passo. Ir-se-ia em breve para a capital, onde contava descansar uns tempos com velhos companheiros de estudos, até ver que destino dava à sua vida.
- Pois vá, e depois volte.
- Nunca.
- E o pequeno?
- O pequeno aí fica com a Rosa. Deixo-lhes a casa e os trastes, com a condição única de ela continuar a cuidar do menino. De longe, como puder, ainda velarei por ele. Talvez um dia possa mandá-lo buscar para fazer desse pobrezinho alguma coisa... Imagine a minha saudade, Veloso! Deixo-o com um ano quase completo... Mais que o tempo de uma gestação. É, legitimamente, um filho adorado das minhas entranhas espirituais, gerado pelo meu coração... filho pelo qual eu tenho um amor de pai e de mãe...
Aqui, por um momento, padre Guilherme recobrou o gosto antigo do tom ligeiramente oratório, e concluiu com a mão no ombro de Veloso, a sorrir contrafeito:
- A mim me são vedadas as boas e doces afeições humanas... Tenho de ser um fantasma sem músculo, uma doutrina encarnada, um feixe de sínteses e abstrações, um respeitável comediante da bondade e da perfeição...
- Que não existe! atalhou Veloso.
No primeiro domingo, em breve prática, feita com acompanhamento de lágrimas pelo Chicão, padre Guilherme comunicou aos paroquianos que se retirava de Candeias, apenas chegasse o substituto que solicitara. O povo escutou-o com ar de surpresa e mágoa. O professor Camacho, muito direito na sua sobrecasaca rapada, as mãos juntas a segurarem sobre o baixo ventre o lenço vermelho de ramagens, tinha um ar solene e compungido. Quando o vigário terminou, correu por todo o templo um murmúrio abafado, entre cujas ôndulas espipocavam gemidos de beatas lacrimosas.
No domingo seguinte foram as últimas despedidas. AGazeta de Candeias,generosamente reconciliada com o padre, mercê da intervenção de Veloso, dera um artigo sobre a pessoa ilustre do virtuoso vigário e suas obras de religião e de caridade em Candeias - o novo sino, a imagem de Nossa Senhora restaurada, os reparos no coro e no batistério, a aula de catecismo instituída havia quatro anos com tantos frutos espirituais e as esmolas, as infinitas esmolas feitas em silêncio... O artigo, já se vê, era de Camacho, que se esmerou no estilo - aquele estilo floreado do artigo sobre a Paixão, de que o padre gostara "imensamente" segundo lhe disse Albino Gomes, que o ouvira ao doutor Veloso... Com esse artigo, com a presença das irmandades incorporadas e com a criançada do catecismo a encher de flores a escada do altar, tudo estava preparado para um grande exercício geral de prantos. E houve muitos prantos, discretos, porém.
Depois, Veloso dizia ao padre:
- Afinal, você é quem tem razão. A sem-razão é muitas vezes mais razoável do que a sabedoria. A sem-razão é a vida. Você, reagindo, vive. É um erro a sua saída de Candeias. Bendito erro! Boa maneira de fazer um gesto largo e salutar de desprezo e de cólera... Não adianta, nem a você, nem a ninguém... "Eles" não fizeram por mal - foi porque tinha de ser... Ninguém é mau, o que é mau é a burrice de uns, a leviandade ou a fraqueza de outros, a rasteirice e estreiteza em que tem fatalmente de viver o rebanho humano... Você compreende isso, mas não se conforma. Bendito disparate. Você vive... Para as dores da vida, as consolações da vida. Morderam-no? Você dá um pontapé, e retira-se. Isto lhe aquece a alma melhor do que quanta reflexão sabichona... Ao passo que eu, ai! meu caro... Como é triste, meu amigo, como é imensamente triste compreender tudo, e tudo perdoar!