A alma do outro mundo/VI
Adriano Carvalhal amava a filha de José Paz.
Era amor profundo o que ele sentia? Amor capaz de todos os sacrifícios, de todos os martírios e de todas as lágrimas de sua vida?
Adriano percorria nessa época a encantada floresta dos 25 anos, de cujas árvores transparentes rolam os pomos de ouro, e em cujos bosques sombrios e suaves a brisa desperta as notas da esplêndida sinfonia do amor.
A mulher começa a fruir os primeiros delírios da existência aos 15 anos; o homem aos 25. Balzac, que entendia catedraticamente dessas coisas, deu ao homem até a idade de Cristo os sabores da primeira mocidade, simples esboço do quadro futuro que representa a vida, e que não é mais do que o sintoma de uma vida posterior, denominada a experiência!
Adriano estava, portanto, na primeira mocidade: respirava a plenos pulmões o ar doidejante das quimeras e das ilusões robustas, em cujos braços fascinadores o espírito embala-se contente, e o coração adormece feliz como as gaivotas no selo esmeraldino das ondas.
Oh! Doce quartel da vida! Oh! Como tu passas ligeiro, ligeiro, deixando-nos apenas por lembrança as rolhas inúteis de alguma ilusão desfolhada! Com pouco satisfaz-se a alma aos 20 anos! Um olhar, um sorriso, uma promessa, e eis repleta a bagagem do coração viajante! A ventura nesse tempo cifra-se em se receber um perfume em troca de um desejo! Um juramento por uma lágrima! Uma lágrima por um sorriso! Um beijo, rápido e misterioso, por 20 horas de perigos, de tentações e de loucuras! Oh! Doce quartel da vida! Como tu passas!
Quando Adriano sentiu espelhar-se a princípio a imagem de Rosinha em sua alma, cuidou que aquilo era unicamente a recordação da formosura, leve e sutil como o reflexo dos astros e a facha do relâmpago! Meteu-se no turbilhão elegante e procurou desvanecer as torturas da sua memória, atordoando-se com o rumor das danças e a provocação das belezas.
Por toda a parte, porém, seguia-o, fiel como uma sombra, a deslumbrante imagem da menina, e dentro do seu coração turbado os olhos negros de Rosinha fulguravam como duas estrelas fatais!
Pediu uma vez à tia noticias da afilhada.
— Interessa-te muito, pelo que vejo! — disse a milionária deixando cintilar no sorriso a cauda serpentina da malícia.
Adriano perturbou-se um pouco.
— Interessa-me decerto. É uma menina graciosa na extensão da palavra.
— Sim! Só por isso?
— Ora, minha tia! Que pergunta!
— Nada mais natural, meu caro. Vocês são poetas, e os poetas não perdem o tempo em explorações...
— Termine a frase!
— Científicas. Tu ainda és poeta, parece-me! Li ontem no Diário uns versos assinados por teu nome. E diga-se logo: — que de uma paixão!...
Adriano sacrificou-se ao gracejo, manejando entre os dedos impacientes o castão de sua flexível bengala.
A milionária não dava tréguas nem quartel ao inimigo.
— É um anjo a Rosinha — começou ela, cravando os olhos em Adriano. — Se eu pudesse arrancá-la do seu maldito Jordão!
— Faça isso, minha tia — exclamou Adriano sem poder sufocar um ímpeto de prazer.
— Bravo, sim, senhor, muito bem! Estou vendo que a matutinha encheu-lhe o olho!
— Não torça os meus sentimentos, minha tiazinha. É a coisa mais natural do mundo simpatizar-se com aquela criatura tímida e deslumbrante como o raio do sol!
— Poeta! Poeta!
— E cabe à senhora, grande parte nos sucessos que sua afilhada adquiriu durante a noite! Só estas mágicas mãos, minha tia, transformariam a flor agreste em peregrina rosa!
— Com que trabalho, Adriano! — acudiu a milionária banhando-se nos êxtases da sua vaidade satisfeita. — Não imaginas sequer a luta que tenho travado com o Paz! É um homem de bons instintos, mas estúpido como um abacaxi! Adora a filha como o negro Otelo adorava a pobre Desdêmona. Amor furioso, cheio de ciúmes e de cóleras horríveis! A menina é um serafim do Senhor! Aquilo dobra-se a tudo, para tudo tem um sorriso e uma alegria. Suporta as sanhas do pai sem se queixar nem revelar no rosto o menor sinal de tristeza!
— O tal Paz é um monstro, pouco mais ou menos?
— É um esquisitão apenas. Cria aquela filha como o hortelão cria a couve-manteiga; o que ele deseja acima de tudo, é que não transformem o seu legume em flor delicada. Cada vez que Rosinha vem ao Recife, entra-lhe um espinho no coração. Ora vê lá como tenho sofrido — eu que sou essencialmente nervosa — com as extravagâncias desse lorpa!
— Infeliz menina! Tão digna de ser admirada pelo grande mundo!
— E nota uma coisa, meu sobrinho: Rosinha tem uma inteligência prodigiosa e um espírito raro!
— Infeliz menina!
— Sabes o que deves fazer em vez de estares ai a lastimar a sorte de minha afilhada como um novo Jeremias? Acompanhar-me ao Jordão!
— Pronto, minha tia! — exclamou Adriano imediatamente.
— Deixa-me primeiro sondar o terreno, meu caro. Pelo menos livrar-te de alguma carga de chumbo com que te pretenda mimosear o homem!
— Que idéia! — volveu Adriano Carvalhal, desprendendo uma estrepitosa gargalhada.
No dia em que a milionária apresentou-se no Jordão, em companhia de Adriano, já a menina havia lido e relido as frases apaixonadas daquela carta que não merecera resposta. Rosinha, dando com os olhos no moço, fez-se vermelha como uma papoula e em seguida de uma palidez sepulcral.
Adriano apertou-lhe a mão fria, e teve implacáveis desejos de cobri-la de beijos, a essa mão aveludada como a pétala das boninas!
— Não me foi possível resistir por mais tempo disse a milionária mostrando o sobrinho; — creio que, se ele cá não viesse hoje, sacramentava-se amanhã!
Chegou a vez de Adriano envolver-se na nuvem do rubor, que, apesar do bigode, ia-lhe a pintar.
Rosinha riu-se entregando o rosto às carícias de sua madrinha.
Eram cinco horas da tarde; o dia mergulhava-se no ocidente, e as longas auras do crepúsculo sopravam, ébrias de perfumes. Adriano e Rosinha mal se viam; evitavam-se como dois cúmplices à barra do tribunal.
A milionária fez as despesas da conversação; falou de bailes, toaletes, poesia, versos, modistas e processos romanescos.
Pela janela aberta viam-se adejar bandos e bandos de andorinhas; as mangabeiras suspiravam com o vento, e o canavial movia ao longe os penachos flutuantes.
Quando José Paz chegou, esteve a ponto de desmaiar, descobrindo um estranho em sua casa, um estranho! Um moço de bigode luzidio e atitude pretensiosa!
A milionária incumbiu-se da apresentação.
O matuto abaixou a cabeça, tanto por delicadeza como por impotência; também o elefante suporta o selim e o boi a canga, sem exalarem um gemido.
Adriano Carvalhal conseguiu ter espírito, apesar de sofrer as torturas do supliciado junto ao cepo fatal.
À espera do trem, vieram todos para a estrada quase deserta. Pouco distante havia uma tasca coberta de sapé, e uma grande cerca onde pousavam os anus desprendendo uns pios prolongados e tristes.
No céu azul cruzavam-se as aves, que fugiam da noite.
Adriano cravou os olhos em Rosinha; Rosinha por acaso olhou, e deixou-se ir naquele embriagante êxtase, incompreensível para a sua alma ignorante e pura.
José Paz não arredava a vista dos dois. Mas o matuto esquecia-se de que o amor fala mais alto no silêncio do que no ruído. Os olhos são os lábios da criatura que ama.
José Paz não dormiu a noite inteira, lembrando-se da nova visita. Despertou rubro e terrível como o símbolo da vingança.
Rosinha até romper o dia pensou em Adriano, e, quando beijou a mão do pai, ao erguer-se da cama, estava bela e sombria como a estátua do amor.
A milionária, durante a viagem, perguntara ao sobrinho;
— Gostaste?
— Muito.
— E voltarás?
— Nunca!
— Oh!
— Não se admire, minha tia. A felicidade é um mar de diamantes que afoga quem mergulha nele!
A milionária admirou-se da resposta. Adriano não deu por isso; seguia, através da vidraça do vagão, as rápidas nuvens do vapor, que obscureciam o ar.
Dois dias depois, o criado da ricaça foi ao Jordão com um recado da senhora.
À noite, Adriano Carvalhal esteve em casa da tia, jovial, bulhento, espirituoso, insuportável.
— Nunca te vi assim! — observou-lhe a milionária.
— Que quer, minha tia, a alma humana é uma charada que ninguém compreende!
— Faço idéia! Teus olhos estão te atraiçoando, meu filho!
O mistério era de facílima decifração. Adriano Carvalhal recebera do Jordão um bilhete, banhado em perfumes e talvez em lágrimas, quase roto, dobrado, torcido, amarrotado, contendo esta única palavra: "Sim."