A velhice do Padre Eterno/X
I
Não podendo dormir no horror da sepultura,
Na podridão escura
Da terra immunda e fria,
Voltaire despedaçando o feretro chumbado,
E cingindo o lençol ao corpo esverdeado
Resuscitou um dia.
Pairava-lhe no labio o riso fulminante
Com que outr'ora gravou nas crenças virginaes,
Como n'um rico espelho a aresta d'um diamante,
Tamanhas abjecções, sarcasmos tão brutaes.
Mas era ao mesmo tempo o riso heroico e bom
Que os tiranos prostrava em misero desmaio,
Riso a que succedeu o verbo de Danton,
Como a um trovão succede o lampejar d'um raio.
Dormira febrilmente um longo somno inquieto
Em quanto andava o mundo a executar-lhe os planos,
E vinha ver emfim, diabolico architeto,
O estado da sua obra ao cabo de cem annos,
Ó satiro divino, ò monstro da ironia,
Genio que Deus conduz e Satanaz impelle,
Que esmagas hoje o infame, e escreves no outro dia
Com a tinta do enxurro os versos da Pucelle;
Tu és feito de luz e feito de baixesas,
Feito de heroicidade e de protervias más;
Corromperam-te a alma os braços das duquezas
E encarguilhou-te a face o rir de Satanaz.
Rasgas ao mundo novo a estrada do futuro
Cantando ao mesmo tempo o sordido deboche:
És como um Juvenal dentro d'um Epicuro,
Ó arlequim-titan, ó semi-deus-gavroche.
N'esse labio mordente esso sorriso eterno
Faz frio como a ponta aguda d'uma espada;
O teu genio, Voltaire, é como o sol do inverno,
Dá muitissima luz, mas não aquece nada.
Em vão por sobre a paz dos campos desolados
Elle entorna do azul seus vivos esplendores;
Não cantam rouxinoes nas sebes dos vallados,
Não faz nascer o trigo e germinar as flores.
É que nunca soubeste o que é a dôr profunda
Que estalla fibra a fibra os grandes corações;
É que nunca choraste, ó Prometheu corcunda,
Como Dante chorou, como chorou Camões
Voltaire, ó rachador de velhos preconceitos,
Aos golpes de teu riso, a golpes de machado
Cairam sobre a terra athleticos, desfeitos
Na floresta da noite os cedros do passado.
Mataste a tradição, o dogma, o privilegio,
Assobiaste a rir a fé de nossos paes,
E andaste pelo azul, hediondo sacrilegio!
A correr á pedrada os deuses immortaes.
Empunhando o alvião terrivel da verdade
Tu minaste, Voltaire, infatigavelmente
O alicerce de bronze à velha sociedade.
Do teu riso cruel a onda dissolvente
Foi como os vagalhões, arietes do mar,
Que cavam sob a rocha um tão profundo abismo
Que a rocha fica quasi assente sobre o ar.
Tu minaste, Voltaire, a rocha despotismo.
E depois de ter feito a excavação noturna,
Como fazem no monte as feras sanguinarias,
Encheste até á bocca essa medonha furna
Com barris de petroleo e bombas incendiarias
E em quanto o niveo pé soberbo de Antonieta
Da França estrangulava a suplicante voz,
Tu lançavas de longe a tragica luneta,
Velho Fauno cruel, rindo com riso atroz.
Até que um dia emfim exausto de cansaço,
Sentindo jà sem força as garras de condor,
Tu chegaste, Arouet, sem te tremer o braço,
Ao rastilho da mina o fogo abrasador.
Cobriu-se então o azul d'uma tormenta escura,
Echoou lugubremente o estrondo de trovão,
Viste arder o rastilho até uma certa altura,
E foste-te esconder, a rir, na sepultura
Mal se ia aproximando a hora da explosão.
Quando resuscitou Voltaire ficou atonito
Vendo os nossos chapeus e as nossas calças pretas,
Mas como desejava andar no mundo incognito,
E não lêr o seu nome impresso nas gazetas,
Oh, a necessidade a quanto nos obriga!
Voltaire o diplomata, o cortezão taful
Largou a juba d'oiro, a cabelleira antiga
E foi vestir-se á moda aos armasens do Pool.
Na sexta feira santa os templos percorria
Voltaire para observar os crentes verdadeiros
No dia da paixão, no luctuoso dia
Em que se faz de Christo o deus dos confeiteiros.
Arouet, ao vêr aquella estupida farçada,
Foi acordar Jesus na sua campa ignorada
E disse-lhe:
II
―Anda vêr ó Christo estes bandidos.
Que rostos tão floridos,
Que bellas digestões!
Ó pallido Jesus, ò scismador antigo,
Levanta-te da campa e vem d'ahi commigo
A vêr estes ladrões.
Nós vamos passeiar juntos, de braço dado,
Mas vestirás primeiro um frak bem talhado
De fino pano inglez,
E hasde pôr na cabeça este chapeu redondo,
Para ficar gentil, para ficar hediondo
Como qualquer burguez.
Tu odeias de certo estas casacas pretas,
Mas não quero, Jesus, que tu me compromettas
Com esse balandrau muitissimo ratão.
Se eu fosse ao boulevard comtigo e alguem me visse,
Ninguem oh, flôr do tom! ninguem, oh canalhice!
Me apertaria a mão.
O talhe d'um colete e os pontos d'uma luva,
A menor frioleira, um simples guarda chuva,
Substituiram hoje as regras de Lavater:
Passando eu por accaso enodoado e roto,
Diriam: «Que chapeu! que pulha! que maroto!
Aquelle homem não tem nem sombras de caracter!»
Anda, veste a farpella. Agora, sim senhor!
Muito grotesco és, meu pobre Redemptor!
Vais a comprometter-me, ó alma do Diabo!
Que figura infeliz, inteiramente chata!...
Pelo menos corrige o laço da gravata
E põe na boutoniere este jasmim do Cabo.
Necessitas de ter maneiras delicadas
E a arte de dizer uns pequeninos nadas
Com chic e distincção. Ser Deus é muito bom;
Mas é preciso ser um deus da fina roda,
Um deus do nosso tempo, um deus da ultima moda,
Um deus petit-crevé, um deus á Benoiton.
Se amanhã por acaso alguem, medita n'isto,
Te fosse apresentar Sua Ex. o Christo
Nos devotos salões do bairro São-Germano,
Oh escandalo! oh farça! oh padre omnipotente!
As duquezas, sorrindo aristocratamente,
Achavam-te decerto um Deus provinciano.
Saiamos para a rua. A gente anda de lucto,
Porque consta que outr'ora un visionario, un bruto,
Se deixara morrer pregado n'um madeiro.
E hoje em memoria d'isto os paes compram ás filhas,
Tres caixas de pastilhas
Na loja d'um doceiro.
Quanta mulher formosa ahi nesses balcões!
Que lindas tentações,
Meu palido judeu!
Deixa por um instante as regiões serenas;
Namora estas pequenas,
Que ellas hão de gostar do teu perfil hebreu.
Arranja um casamento e aprende a ter juizo.
A noiva pouco importa; o dote é que preciso
Discutil-o. Olha lá, os paes que sejam velhos!...
Que vá para o diabo o reino da Utupia!
E hãode-te nomear socio da academia
E, quem sabe! talvez barão dos Evangelhos.
Penetremos na egreja a vêr esta farçada.
Uns entram para vêr a casa illuminada,
Os dandys é por chic, os velhos por decôro;
Estes é para ouvir tocar umas quadrilhas,
E os outros, que sei eu!... para vender as filhas,
Para matar o tempo ou arranjar namoro.
Lá vai o pregador dizer a seremonata
Tussiu cuspiu, sorriu, bebeu a sua orchata
E começa a fallar. Tem uns bonitos dentes.
E com gesto facundo e voz amaneirada
Receita una enfiada
De tropos excellentes.
Acabou se. O auditorio
Gostou do farelorio
Como gostámos nós.
Soltam-se exclamações por entre algum rumor:
― Muito bem! muito bem! ― É um grande pregador!
― Foi um rico sermão! ― E que bonita voz!
E é esta a tua casa, ó meu pobre Jesus!
Não te bastou a cruz;
Era preciso o altar,
Que destino cruel, que tragica ironia!
Nasces na estrebaria,
Vives no lupanar!
Desfila pela rua immensa multidão.
Saiu a procissão;
Paremos um instante. É curioso isto.
Que farças imbecis, que velhas pompas mudas!
Lá vae pegando ao palio o teu amigo Judas,
Que está, como tu vês, commendador de Christo!
Os anjos theatraes caminham lentamente
Com azas de galão feitas expressamente
Nas lojas de Pariz.
Pobres anjos do céo! querem martirisal-os:
Vão cheios de suor e apertam-lhe os calos
As botas de verniz.
Agora passas tu n'um palanquim bordado.
Coidado!
Muito trabalho tem quem faz religiões!
Repara como vais, olha que bella tunica:
É pavorosa, é unica!
Off'receu-t'a um burguez n'um dia de eleições.
E atraz do velho andor e atraz das velhas opas
Vão desfilando agora os esquadrões das tropas
Com gesto marcial.
Tu que amavas os bons, os simples e as creanças,
Seguido como os reis d'um matagal de lanças,
Meu pobre general!
Terminou a funcção. É negro o firmamento.
Ai que aborrecimento!
Ó meu Jesus, que tedio!
Para poder dormir, para poder ceiar,
Que hade a gente fazer? vamos ao lupanar,
Não ha outro remedio.
Alli tens, meu amigo, os conegos vermelhos:
Que rostos joviaes, brunidos como espelhos,
Que riso debochado e gesto vinolento!
E á noite, a esta hora, uns padres sem batinas
Do certo não virão pregar ás concubinas
O 6º mandamento!
Os teus guardas fieis depois da procissão,
Já roucos de cantar um velho cantochão,
Deixaram-te no templo abandonado e só.
Uns vieram beijar as carnes prostituídas,
E os outros foram lêr no quarto, ás escondidas,
Romances de Bollot.
E como a noite é linda! a branca lua passa,
Ostentando na fronte a pallidez devassa
D'uma infeliz mulher.
Quando tudo fermenta e tudo anda de rastros
Já não deve admirar que a siphilis chegue aos astros
E precisem tambem xarope de Gibert!
Meu Pae, vamos ceiar. É quasi madrugada;
É a hora do tom, a hora consagrada
Para os ricos festins á viva luz do gaz.
É a hora da morte, a hora do atahude,
E a mesma em que repoisa a candida virtude
Nos braços de Faublas.
Anda não tenhas medo, entra no restaurante.
A sala está repleta. A purpura brilhante
Dos desejos inflama os sonhos tentadores.
O champanhe sacode os craneos embriagados,
E os crimes sensuaes e os vicios delicados
Rompem n'um turbilhão de venenosas flôres.
O punch, illuminando as faces cadavericas,
Faz-nos imaginar as saturnaes chimericas
Que á noite deve haver na _morgue_ de Paris,
Aonde as cortezãs, mais roxas que as violetas,
Ao luar cantarão as verdes cançonetas
Das podridões gentis.
Volteiam pelo ar os ditos picarescos,
Elasticos, febris, doidos, funambulescos,
Como gnomos de luz vestidos de histriões,
Dançando, tilintando os guisos argentinos,
Fazendo á luz do gaz tregeitos libertinos
Com o riso cruel das hallucinações.
Ceiemos. Manda vir as coisas que preferes;
E que nos vão buscar duas ou tres mulheres,
Que as ha perto d'aqui;
O mais, pede por boca, o meu divino mestre;
Mas escuta, olha lá, não peças mel silvestre,
Porque já se não usa e riem se de ti.
E agora é destampar a rubra fantasia!
Bebe, pragueja, ri, inventa, calumnia,
Anda! mostra que tens espirito, ladrão!
Não quero vêr chorar os olhos teus contrictos;
Sê canalha com graça, infame com bons ditos,
Vamos, semsaborão!
Conta-nos em voz alta historias bem galantes,
Segredos irritantes,
Vergonhas sensuaes,
Adulterios da moda, escandalos, miserias,
Tudo isto, já se vê, com optimas pilherias,
Bastante originaes.
Tu precisas perder esse teu ar de adventicio
E um certo horror ao vicio,
D'um pedantismo ignaro;
Formosura sem vicio é coisa que não tenta;
O vicio, meu amigo, é bom como a pimenta,
E o defeito que tem é ser um pouco caro.
Conversemos, alegra a tua fronte augusta.
Sê espirituoso, inventa, o que te custa!
Uma infamia qualquer muitissimo engenhosa...
Tens um amigo? bem, vamos calumnial-o;
Tens amantes? melhor, eu dou-te o meu cavallo
E dás-me a mais formosa.
Parece que o rubor te vai subindo ás faces...
Ó Filho, não me masses!
Ó Filho, tem piedade!
Deixa-te de sermões; no fim de contas eu
Sou muito bom christão... um poucochinho atheu,
Como um christão qualquer da fina sociedade.
Saiamos; rompe a aurora. A burguezia dorme,
Como a giboia enorme
Que resona, depois de devorar um toiro;
Ó giboia feliz, ó burguezia, ò pança,
Dorme com segurança
Que a forca está de guarda aos teus bezerros d'oiro.
E chama-se Progresso, ó Deus, esta farçada!
Isto é o cinismo alvar e em pêllo, à desfilada,
É a prostituição ignobil da mulher,
São desejos brutaes, é carne em plena orgia,
Emfim a saturnal da podre burguezia,
Que resa como o papa e ri como Voltaire.
Morrendo o velho Deus, o velho Deus tirano,
Este mundo burguez, catholico-romano
Encontrou-se sem fé, sem dogma, sem moral;
A justiça era elle o Padre-omnipotente;
Esse Padre morreu; ficou nos simplesmente
Um unico evangelho--o codigo penal.
A consciencia humana é um monte de destroços.
Foram-se as orações, foram-se os padres-nossos,
Tombou a fé, tombou o céo, tombou o altar;
E o velho Deus-castigo e o velho Deus-receio
É simplesmente um freio
Para conter a raiva á besta popular.
A crassa burguezia, essa recua fradesca,
Opipara, animal, silenica, grotesca,
Namora a Deuza-carne e adora o Deus-milhão;
E as almas, fermentando assim n'esta impureza,
Resvalam sensuaes do leito para a meza.
Da meza para o chão.
Vendem-se a peso d'oiro as languidas donzellas,
Mais torpes que as cadellas,
Que ao menos dão de graça o libertino amor,
E o Dever, a Saude, o Justo, o Verdadeiro,
Esses ricos metaes fundem-se no brazeiro
D'um sensualismo espresso, atroz, devorador.
A agiotagem, a bolsa, a cotação dos fundos,
É o principio rei dominador dos mundos,
É um sangue vital, forte como o cognac.
Engordae, engordae ó bravos homens serios,
Que servis para dar esterco aos cemiterios
E musica a Offenbak.
A vergonha morreu, a dignidade foi-se.
O mundo official è um vergonhoso alcoice,
E a plebe tripudiando em horridas orgias
Lança sobre o Direito um pustulento escarro,
E acende, cambaleando, a ponta do cigarro
Na fogueira que abrasa o Louvre e as Tulherias.
A familha é um bordel. Os leitos sensuaes
São verdadeiramente esgotos seminaes,
Eroticas latrinas,
Onde entre o tumultuar d'um debochado goso
Se fabrica de noite o sangue escrofuloso
Das raças libertinas.
Calemo-nos. Eu oiço as ferraduras de Argus.
É a Ordem e a Lei; correm a trotes largos,
Vêm n'esta direcção, esconde-te, Jesus!
Metamo-nos aqui n'um beco, anda ligeiro!
Que, se sabem quem és, meu velho petroleiro,
Mandam-te pendurar segunda vez na cruz.
E agora, Filho, adeus. Eu vou dormir um pouco,
E tu, meu pobre louco,
Descança inda que seja um breve quarto d'hora;
Tingem-se de vermelho as bandas do Oriente,
É hoje a Alleluia, e necessariamente
Tens de resuscitar logo ao romper d'aurora.
Eu mais feliz que tu, simples mortal que sou,
Eu, meu amigo, vou
Dormir até que chegue a hora do jantar.
Adeus, e resuscita apenas surja o dia;
Se queres vem dormir á minha hospedaria,
Que eu mando-te acordar.»
E Arouet partiu, soltando uma cruel risada
E Jesus ficou só na noite desolada,
N'aquella colossal Babilonia impudente,
Entre quatro milhões do almas quatro milhões
De tigres, do reptis, de abutres e de leões
Agachados na sombra ameaçadoramente!...
Quem a visse do alto essa Londres deserta
Com a fosforencia esmorecida, incerta
Da luz do gaz a arder sob um cèo tumular,
Julgaria estar vendo um grande monstro escuro,
Como que um Leviatham putrido n'um monturo
Immenso a fermentar.
A noite era sinistra. Os ventos a galope
Resfolegavam como as forjas d'um ciclope
Com uivos de alienado e rugidos de feras.
E o mar bramia ao longe athletico, espumante
Qual marmita profunda a ferver trovejante
Sobre cem mil crateras.
E Christo foi andando errante, vagabundo
Atravez dessa vasta imperatriz do mundo,
Opulenta Gomorra hidropica do vicio,
Que Deus não enxofrou talvez, como costuma,
Porque além de estar caro o enxofre, Deus em suma
Já não pode arruinar-se em fogos de artificio.
E elle ia vendo os mil palacios portentosos
Onde a besta feliz dormia, ebria de gosos,
Um inefavel somno.
Em quanto que a miseria anonima, esfaimada
Ás tres da madrugada
Disputava o jantar no enxurro aos cães sem dono.
As altas cathedraes, aonde a borguezia
Vai arrotar um pouco á missa do meio dia;
Tinham como que o ar d'um theatro fechado
O aspecto mercantil d'um armazem colosso,
Em que Deus ao balcão vende os dogmas por grosso
E o céo por atacado.
Os bancos, Pantagrueis do milhão, monumentos
De marmore e granito e bronze, somnolentos
Molochs, cuja pança obesa é um matadouro,
Na virtuosa paz de monstros em descanço
Digeriam de manso
Nos seus ventres de ferro um Himalaia d'oiro.
Nos mundos hospitaes, onde emfim a desgraça
Tem a consolação do agonisar de graça,
Santos, monstros, heroes,--Tropmans, Valgeans, Phrinés
Anciavam no estertôr do tranze derradeiro,
― Lixo que um bonzo vae entregar a um coveiro
Para o calcar aos pés.
E era aquella immundicie humana a humanidade!
Tinha valido bem a pena na verdade
Pregado n'uma cruz morrer como um ladrão,
Para ao cabo de dois mil annos vir achar
Pilatos sob o throno e Caifaz sobre o altar
De diadema na fronte e baculo na mão!
Arrazou-se de pranto o olhar do Nazareno,
Aquelle olhar profundo, aquelle olhar sereno
Que outr'ora deu alivio a tantos corações,
E a linha virginal de seu perfil suave
Turbou-se, apresentando o aspecto mudo e grave
Daz nobres afflições.
E marmoreo, espectral, com a fronte sombria
Banhada no suor sangrento da agonia
Foi deitar-se outra vez na leiva tumular,
Athleta que expirou tranzido de mil dôres
E quer dormir, dormir entre as hervas e as flores
Onde escorre piedosa a branca luz do luar.
E quando a christandade á volta do meio dia
Correu ao templo a ver o entremez da Alleluia,
Em logar d'um Jesus banal de ciclorama
Subindo ao firmamento,
D'olhos azues n'um céu d'anil, tunica ao vento,
Sobre nuvens de gloria, de algodão em rama,
Viu-se na tela um Christo em furia, um visionario,
Truculento, febril, colerico, incendiario,
Como que um salteador fugido das galés,
Na bôca uma blasfemia e no olhar um archote,
Expulsando da egreja os christãos a chicote
E expulsando do altar o papa a pontapés!