Anexo:Imprimir/A Mulher de Preto

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Índice[editar]


A primeira vez que o Dr. Estevão Soares fallou ao deputado Menezes foi no theatro Lyrico no tempo da memoravel luta entre lagruistas e chartonistas. Um amigo commum os apresentou ao outro. No fim da noite separárão-se offerecendo cada um d’elles os seus serviços e trocando os respectivos cartões de visita.

Só dous mezes depois encontrárão-se outra vez.

Estevão Soares teve de ir á casa de um ministro de Estado para saber de uns papeis relativos a um parente da provincia, e ahi encontrou o deputado Menezes, que acabava de ter uma conferencia politica.

Houve sincero prazer em ambos encontrando-se pela segunda vez; e Menezes arrancou de Estevão a promessa de que iria á casa d’elle d’ahi a poucos dias.

O ministro depressa despachou o joven medico.

Chegando ao corredor, Estevão foi sorprendido com uma tremenda batéga d'agua, que n’esse momento cahia, e começava a alagar a rua.

O rapaz olhou a um e outro lado a ver se passava algum vehiculo vazio, mas procurou inutilmente; todos que passavão ião ocupados.

Apenas á porta estava um coupé vazio á espera de alguem, que o rapaz suppôz ser o deputado.

D’ahi a alguns minutos desce com effeito o representante da nação, e admirou-se de ver o medico ainda á porta.

— Que quer? disse-lhe Estevão; a chuva impedio-me de sahir; aqui fiquei a ver se passa um tilbury.

— É natural que não passe, e n’esse caso offereço-lhe um lugar no meu coupé. Venha.

— Perdão; mas é um incommodo....

— Ora, incommodo! é um prazer. Vou deixal-o em casa. Onde mora?

— Rua da Misericordia nº....

— Bem, suba.

Estevão hesitou um pouco; mas não podia deixar de subir sem offender o digno homem que de tão boa vontade lhe fazia um obsequio.

Subírão.

Mas em vez de mandar o cocheiro para a rua da Misericordia, o deputado gritou:

— João, para casa!

E entrou.

Estevão olhou para elle admirado.

— Já sei, disse-lhe Meneses; admira-se de ver que faltei á minha palavra; mas eu desejo apenas que fique conhecendo a minha casa afim de lá voltar quanto antes.

O coupé rolava já pela rua fóra debaixo de uma chuva torrencial.

Menezes foi o primeiro que rompeu o silencio de alguns minutos, dizendo ao joven amigo:

— Espero que o romance da nossa amizade não termine no primeiro capitulo.

Estevão, que já reparara nas maneiras solicitas do deputado, ficou inteiramente pasmado quando lhe ouvio fallar no romance da amizade. A razão era simples. O amigo que os havia apresentado no theatro Lyrico disse no dia seguinte:

— Menezes é um misanthropo, e um sceptico; não crê em nada, nem estima ninguem. Na politica como na sociedade faz um papel puramente negativo.

Esta era a impressão com que Estevão, apezar da sympathia que o arrastava, fallou a segunda vez a Menezes, e admirava-se de tudo, das maneiras, das palavras, e do tom de affecto que ellas parecião revelar.

Á linguagem do deputado o joven medico respondeu com igual franqueza.

— Porque acabaremos no primeiro capitulo? perguntou elle; um amigo não é cousa que se despreze, acolhe-se como um presente dos deoses.

— Dos deoses! disse Meneses rindo; já vejo que é pagão.

— Alguma cousa, é verdade; mas no bom sentido, respondeu Estevão rindo tambem. Minha vida assemelha-se um pouco á de Ulysses...

— Tem ao menos uma Ithaca, sua patria, e uma Penelope, sua esposa.

— Nem uma nem outra.

— Então entender-nos-hemos.

Dizendo isto o deputado voltou a cara para o outro lado, vendo a chuva que cahia na vidraça da portinhola.

Decorreram dois ou tres minutos, durante os quaes Estêvão teve tempo de contemplar a seu gosto o companheiro de viagem.

Menezes voltou-se e entrou em novo assumpto.

Quando o coupé entrou na rua do Lavradio, Menezes disse ao medico:

— Moro n’esta rua; estamos perto de casa. Promette-me que ha de vir ver-me algumas vezes?

— Amanhã mesmo.

— Bem. Como vai a sua clinica?

— Apenas começo, disse Estevão; trabalho pouco; mas espero fazer alguma coisa.

— O seu companheiro, na noite em que m’o apresentou, disse-me que o senhor é moço de muito merecimento.

— Tenho vontade de fazer alguma cousa.

D’ahi a dez minutos parava o coupé á porta de uma casa da Rua do Lavradio.

Apeárão-se os dois e subírão.

Menezes mostrou a Estevão o seu gabinete de trabalho, onde havião duas longas estantes de livros.

— É a minha familia, disse o deputado mostrando os livros. Historia, philosophia, poesia..... e alguns livros de politica. Aqui estudo e trabalho. Quando cá vier é aqui que o hei de receber.

Estevão prometteu voltar no dia seguinte, e desceu para entrar no coupé que esperava por elle, e que o levou á rua da Misericordia.

Entrando em casa Estêvão dizia comsigo:

— Onde está a misanthropia d’aquelle homem? As maneiras de misanthropo são mais rudes do que as d’elle; salvo se elle, mais feliz do que Diogenes, achou em mim o homem que procurava.


Estevão era o typo do rapaz serio. Tinha talento, ambição e vontade de saber, tres armas poderosas nas mãos de um homem que tenha consciencia de si. Desde os dezeseis annos a sua vida foi um estudo constante, aturado e profundo. Destinado ao curso medico, Estevão entrou na academia um pouco forçado; não queria desobedecer ao pai. A sua vocação era toda para as mathematicas. Que importa? disse elle ao saber da resolução paterna; estudarei a medicina e a mathematica. Com effeito teve tempo para uma e outra cousa; teve tempo ainda para estudar a litteratura, e as principaes obras da antiguidade e contemporaneas erão-lhe tão familiares como os tratados de operações e de hygiene.

Para estudar tanto, foi-lhe preciso sacrificar uma parte da saude. Estevão aos vinte e quatro annos adquiríra uma magreza, que não era a dos dezeseis; tinha a tez pallida e a cabeça pendia-lhe um pouco para a frente pelo longo habito da leitura. Mas esses vestigios de uma longa applicação intellectual não lhe alterárão a regularidade e harmonia das feições, nem os olhos perdêrão nos livros o brilho e a expressão. Era além d’isso naturalmente elegante, não digo enfeitado, que é cousa differente: era elegante nas maneiras, na atitude, no sorriso, no trajo, tudo mesclado de uma certa severidade que era o cunho do seu caracter. Podia-se notar-lhe muitas infracções ao codigo da moda; ninguem poderia dizer que elle faltasse nunca ás boas regras do gentleman.

Perdêra os pais aos vinte annos, mas ficára-lhe bastante juizo para continuar sózinho a viagem do mundo. O estudo servio-lhe de refugio e bordão. Não sabia nada do que era o amor. Occupára-se tanto com a cabeça que esquecêra-se de que tinha um coração dentro do peito. Não se infira d’aqui que Estevão fosse puramente um positivista. Pelo contrario, a alma d’elle possuia ainda em toda a plenitude da graça e da força as duas azas que a natureza lhe dera. Não raras vezes rompia ella do carcere da carne para ir correr os espaços do céo, em busca de não sei que ideal mal definido, obscuro, incerto. Quando voltava d’esses extasis, Estevão curava-se d’elles enterrando-se nos volumes á cata de uma verdade scientifica. Newton era-lhe o antidoto de Goethe.

Além d’isso, Estevão tinha idéas singulares. Havia um padre, amigo d’elle, rapaz de trinta annos, da escola de Fenelon, que entrava com Telemaco na ilha de Calypso. Ora, o padre dizia muitas vezes a Estevão que só uma cousa lhe faltava para ser completo: era casar-se.

— Quando você tiver, dizia-lhe, uma mulher amada e amante ao pé de si, será um homem feliz e completo. Dividirá então o tempo entre as duas cousas mais elevadas que a natureza deu ao homem, a intelligencia e o coração. N’esse dia quero eu mesmo casal-o.....

— Padre Luiz, respondia Estevão, faça-me então o serviço completo: traga-me a mulher e a benção.

O padre sorria-se ao ouvir a resposta do medico, e como o sorriso parecia a Estevão uma nova pergunta, o medico continuava:

— Se encontrar uma mulher tão completa como eu exijo, afirmo-lhe que me casarei. Dirá que as obras humanas são imperfeitas, e eu não contestarei, padre Luiz; mas n’esse caso deixe-me caminhar só com as minhas imperfeições.

D’aqui engendrava-se sempre uma discussão, que se animava e crescia até o ponto em que Estevão concluia por este modo:

— Padre Luiz, uma menina que deixa as bonecas para ir decorar mecanicamente alguns livros mal escolhidos; que interrompe uma lição para ouvir contar uma scena de namoro; que em materia de arte só conhece os figurinos parisienses; que deixa as calças para entrar no baile, e que antes de suspirar por um homem, examina-lhe a correcção da gravata, e o apertado do botim; padre Luiz, esta menina póde vir a ser um esplendido ornamento de salão e até uma fecunda mãi de familia, mas nunca será uma mulher.

Esta sentença de Estevão tinha o defeito de certas regras absolutas. Por isso, o padre dizia-lhe sempre:

— Tem você razão; mas eu não lhe digo que case com a regra; procure a excepção que ha de encontrar e leve-a ao altar, onde eu estarei para os unir.

Taes erão os sentimentos de Estevão em relação ao amor e á mulher. A natureza dera-lhe em parte esses sentimentos; mas em parte adquirio-os elle nos livros. Exigia a perfeição intellectual e moral de uma Heloisa; e partia da excepção para estabelecer uma regra. Era intolerante para os erros veniaes. Não os reconhecia como taes. Não ha erro venial, dizia elle, em materia de costumes e de amor.

Contribuíra para esta rigidez de animo o espetaculo da propria familia de Estevão. Até aos vinte annos foi elle testemunha do que era a santidade do amor mantido pela virtude domestica. Sua mãi, que morrêra com trinta e oito annos, amou o marido até os ultimos dias, e poucos mezes lhe sobreviveu. Estevão soube que fôra ardente e enthusiastico o amor de seus pais, na estação do noivado, durante a manhã conjugal: conheceu-o assim por tradição; mas na tarde conjugal a que elle assistio viu o amor calmo, solicito e confiante, cheio de dedicação e respeito, praticado como um culto; sem recriminações nem pezares, e tão profundo como no primeiro dia. Os pais de Estevão morrêrão amados e felizes, na tranquilla serenidade do dever.

No animo de Estevão, o amor que funda a familia devia ser aquillo ou não seria nada. Era justiça; mas a intolerancia de Estevão começava na convicção que elle tinha de que com a d’elle morrêra a ultima familia, e fôra com ella a derradeira tradição do amor. Que era preciso para derrubar todo este systema, ainda que momentaneo? Uma cousa pequenissima: um sorriso e dous olhos.

Mas como esses dous olhos não apparecião, Estevão entregava-se na mór parte do tempo aos seus estudos scientificos, empregando as horas vagas em algumas distracções que o não prendião por muito tempo.

Morava só; tinha um escravo, da mesma idade que elle, e cria da casa do pai, — mais irmão do que escravo, na dedicação e no affecto. Recebia alguns amigos, a quem visitava de quando em quando de quando, entre os quais incluimos o joven padre Luiz, a quem Estevão chamava — Platão de sotaina.

Naturalmente bom e affectuoso, generoso e cavalheiresco, sem odios nem rancores, enthusiasta por todas as cousas boas e verdadeiras, tal era o Dr. Estevão Soares, aos vinte e quatro annos de idade.

Do seu retrato physico já dissemos alguma cousa. Bastará accrescentar que tinha uma bella cabeça, coberta de bastos cabellos castanhos, dous olhos da mesma côr, vivos e observadores; a pallidez do rosto fazia realçar o bigode naturalmente encaracolado. Era alto e tinha mãos admiraveis.


Estevão Soares visitou Menezes no dia seguinte.

O deputado esperava-o, e recebeu-o como se fosse um amigo velho. Estevão marcára a hora da visita, que impossibilitiva a presença de Menezes na camara; mas o deputado importou-se pouco com isso: não foi á camara. Mas teve a delicadeza de o não dizer a Estevão.

Menezes estava no gabinete quando o criado annunciou-lhe a chegada do medico. Foi recebêl-o á porta.

— Pontual como um rei, disse-lhe alegremente.

— Era dever. Lembro-lhe que não me esqueci.

— E agradeço-lh’o.

Sentárão-se os dous.

— Agradeço-lh’o porque eu receiava sobretudo que me houvesse comprehendido mal; e que os impulsos da minha sympathia não merecessem da sua parte nenhuma consideração.....

Estevão ia protestar.

— Perdão, continuou Menezes, bem vejo que me enganei, e é por isso que lhe agradeço. Eu não sou rapaz; tenho 47 annos; e para a sua idade as relações de um homem como eu já não têm valor.

— A velhice, quando é respeitavel, deve ser respeitada; e amada, quando é amavel. Mas V. Ex. não é velho; tem os cabellos apenas grisalhos: póde-se dizer que está na segunda mocidade.

— Parece-lhe isso...

— Parece e é.

— Seja como fôr, disse Menezes, a verdade é que podemos ser amigos. Quantos annos tem?

— Vinte e quatro.

— Olhe lá; podia ser meu filho. Tem seus pais vivos?

— Morrêrão ha quatro annos.

— Lembra-me haver dito que era solteiro.....

— É verdade.

— De maneira que os seus cuidados são todos para a sciencia?

— É a minha esposa.

— Sim, a sua esposa intellectual; mas essa não basta a um homem como o senhor..... Enfim, isso é com o tempo; está ainda moço.

Durante este dialogo, Estevão contemplava e observava Menezes, em cujo rosto batia a claridade que entrava por uma das janellas. Era uma cabeça severa, cheia de cabellos já grisalhos, que lhe cahião em gracioso desalinho. Tinha os olhos negros e um pouco amortecidos; adivinhava-se porém que devião ter sido vivos e ardentes. As suiças tambem grisalhas erão como as de lord Palmerston, segundo dizem as gravuras. Não tinha rugas de velhice; tinha uma ruga na testa, entre as sobrancelhas, indicio de concentração de espirito, e não vestigio do tempo. A testa era alta, o queixo e as maçãs do rosto um pouco salientes. Adivinhava-se que devia ter sido formoso no tempo da primeira mocidade; e antevia-se já uma velhice imponente e augusta. Sorria de quando em quando; e o sorriso, embora aquelle rosto não fosse de um ancião, produzia uma impressão singular; parecia um raio de lua no meio de uma velha ruina. É que o sorriso era amavel, mas não era alegre.

Todo aquelle conjunto impressionava e attrahia; Estevão sentia-se cada vez mais arrastado para quelle homem, que o procurava, e lhe estendia a mão.

A conversa continuou no tom affectuoso com que começára; a primeira entrevista da amizade é o opposto da primeira entrevista do amor; n’esta a mudez é a grande eloquencia; n’aquella inspira-se e ganha-se a confiança, pela exposição franca dos sentimentos e das idéas.

Não se fallou de politica. Estevão alludio de passagem ás funcções de Menezes, mas foi um verdadeiro incidente a que o deputado não prestou attenção.

No fim de uma hora, Estevão levantou-se para sahir; tinha de ir ver um doente.

— O motivo é sagrado; senão retinha-o.

— Mas eu voltarei outras vezes.

— Sem duvida alguma, e eu irei vêl-o algumas vezes. Se no fim de quinze dias não se aborrecer... Olhe, venha de tarde; janta algumas vezes comigo; depois da camara estou completamente livre.

Estevão sahio promettendo tudo.

Voltou lá, com effeito, e jantou duas vezes com o deputado, que tambem visitou Estevão em casa; forão ao theatro juntos; relacionárão-se intimamente com as familias conhecidas. No fim de um mez erão dous amigos velhos. Tinhão observado reciprocamente o caracter e os sentimentos. Menezes gostava de ver a seriedade do medico e o seu bom senso; estimava-o com as suas intolerancias, applaudindo-lhe a generosa ambição que o dominava. Pela sua parte o medico via em Menezes um homem que sabia ligar a austeridade dos annos á amabilidade de cavalheiro, modesto nas suas maneiras, instruido, sentimental. Da misanthropia annunciada não encontrou vestigios. É verdade que em algumas occasiões Menezes parecia mais disposto a ouvir do que a fallar; e então o olhar tornava-se-lhe sombrio e parado, como se em vez de ver os objectos exteriores, estivesse contemplando a sua propria consciencia. Mas erão rapidos esses momentos, e Menezes voltava logo aos seus modos habituaes.

— Não é um misanthropo, pensava então Estevão; mas este homem tem um drama dentro de si.

A observação de Estevão adquirio certo caracter de verosimilhança quando uma noite em que se achavão no theatro Lyrico, Estevão chamou a attenção de Menezes para uma mulher vestida de preto que se achava em um camarote da primeira ordem.

— Não conheço aquella mulher, disse Estêvão. Sabe quem é?

Menezes olhou para o camarote indicado, contemplou a mulher por alguns instantes e respondeu:

— Não conheço.

A conversa ficou ahi; mas o medico reparou que a mulher duas vezes olhou para Menezes, e este duas vezes para ella, encontrando-se os olhos de ambos.

No fim do espectaculo, os dous amigos dirigírão-se pelo corredor do lado em que estivera a mulher de preto. Estevão teve apenas nova curiosidade, a curiosidade de artista: quiz vêl-a de perto. Mas a porta do camarote estava fechada. Teria já sahido ou não? Era impossivel sabêl-o. Menezes passou sem olhar. Ao chegarem ao patamar da escada que dá para o lado da rua dos Ciganos, parárão os dous porque havia grande affluencia de gente. D’ahi a pouco ouvio-se passo apressado; Menezes voltou o rosto; e dando o braço a Estevão desceu immediatamente, apezar da difficuldade.

Estevão comprehendeu, mas nada vio.

Pela sua parte, Menezes não deu signal algum.

Apenas se desembaraçárão da multidão, o deputado encetou uma alegre conversa com o medico.

— Que effeito lhe faz, perguntou elle, quando passa no meio de tantas damas elegantes, aquella confusão de sedas e de perfumes?

Estevão respondeu distrahidamende, e Meneses continuou a conversa no mesmo estylo; d’ahi a cinco minutos a aventura do theatro tinha-se-lhe varrido da memoria.


Um dia Estevão Soares foi convidado para um baile em casa de um velho amigo de seu pai.

A sociedade era luzida e numerosa; Estevão, embora vivesse muito arredado, achou alli grande numero de conhecidos e conhecidas. Não dansou; vio, conversou, rio um pouco e sahio.

Mas ao entrar levava o coração livre; ao sahir trouxe n’elle uma flecha, para fallar a linguagem dos poetas da Arcadia; era a flecha do amor.

Do amor? A fallar a verdade não se póde dar este nome ao sentimento experimentado por Estevão; não era ainda o amor, mas bem póde ser que viesse a sêl-o. Por emquanto era um sentimento de fascinação doce e branda; uma mulher que lá estava produzíra n’elle a impressão que as fadas produzião nos principes errantes ou nas princezas perseguidas, segundo nos rezão os contos das velhas.

A mulher em questão não era uma virgem; era uma viuva de trinta e quatro annos, bella como o dia, graciosa e terna. Estevão via-a pela primeira vez; pelo menos não se lembrava d’aquellas feições. Conversou com ella durante meia hora, e tão encantado ficou com as maneiras, a voz, a belleza de Magdalena, que ao chegar á casa não pôde dormir.

Como verdadeiro medico que era, sentia em si os symptomas d’essa hypertrophia do coração que se chama amor e procurou combater a enfermidade nascente. Leu algumas paginas de mathematica, isto é, percorreu-as com os olhos; porque apenas começava a ler o espirito alheava do livro onde apenas ficavão os olhos: o espirito ia ter com a viuva.

O cansaço foi mais feliz que Euclydes: sobre a madrugada Estevão Soares adormeceu.

Mas sonhou com a viuva.

Sonhou que a apertava em seus braços, que a cobria de beijos, que era seu esposo perante a Igreja e perante a sociedade.

Quando acordou e lembrou-se do sonho, Estêvão sorrio.

— Casar-me! disse elle. Era o que me faltava. Como poderia eu ser feliz com o espirito receioso e ambicioso que a natureza me deu? Acabemos com isto; nunca mais verei aquella mulher... e boa noite.

Começou a vestir-se.

Trouxerão-lhe o almoço; Estevão comeu rapidamente, porque era tarde, e sahio para ir ver alguns doentes.

Mas ao passar pela Rua do Conde lembrou-se que Magdalena lhe dissera morar alli; mas aonde? A viuva disse-lhe o numero; o medico porém estava tão embebido em ouvil-a fallar que não o decorou.

Queria e não queria; protestava esquecêl-a, e comtudo daria o que se lhe pedisse para saber o numero da casa n’aquelle momento.

Como ninguem podia dizer-lhe, o rapaz tomou o partido de ir-se embora.

No dia seguinte, porém, teve o cuidado de passar duas vezes pela Rua do Conde a ver se descobria a encantadora viuva. Não descobrio nada; mas quando ia tomar um tilbury e voltar para casa encontrou o amigo de seu pai em cuja casa encontrára Magdalena.

Estevão já tinha pensado n’elle; mas immediatamente tirou d’alli o pensamento, porque ir perguntar-lhe onde morava a viuva era uma cousa que podia trahil-o.

Estevão já empregava o verbo trahir.

O homem em questão, depois de comprimentar ao medico, e trocar com elle algumas palavras, disse-lhe que ia á casa de Magdalena, e despedio-se.

Estevão estremeceu de satisfação.

Acompanhou de longe o amigo e vio-o entrar em uma casa.

— É alli, pensou elle.

E afastou-se rapidamente.

Quando entrou em casa achou uma carta para elle: a lettra, que lhe era desconhecida, estava traçada com elegancia e cuidado: a carta rescendia de sandalo.

O medico rompeu o lacre.

A carta dizia assim:

« Amanhã toma-se chá em minha casa. Se quizer vir passar algumas horas comnosco dar-nos-ha sumo prazer. — Magdalena C... »

Estevão leu e releu o bilhete; teve idéa de leval-o aos labios, mas envergonhado diante de si proprio por uma idéa que lhe parecia de fraqueza, cheirou simplesmente o bilhete e metteu-o no bolso.

Estevão era um pouco fatalista.

— Se eu não fosse áquelle baile não conhecia esta mulher, não andava agora com estes cuidados, e tinha conjurado uma desgraça ou uma felicidade, porque ambas as cousas podem nascer d’este encontro fortuito. Que será? Eis-me na duvida de Hamleto. Devo ir á casa d’ella? A cortezia pede que vá. Devo ir; mas irei encouraçado contra tudo. É preciso romper com estas idéas, e continuar a vida tranquilla que tenho tido.

Estava n’isto quando Menezes lhe entrou por casa. Vinha buscal-o para jantar. Estevão sahio com o deputado. Em caminho fez-lhe perguntas curiosas.

Por exemplo:

— Acredita no destino, meu amigo? Pensa que ha um deos do bem e um deos do mal, em conflicto travado sobre a vida do homem?

— O destino é a vontade, respondia Menezes; cada homem faz o seu destino.

— Mas emfim nós temos presentimentos..... Ás vezes adivinhamos acontecimentos em que não tomamos parte; não lhe parece que é um deos bemfazejo que nol-os segreda?

— Falla como um pagão; eu não creio em nada d’isso. Creio que tenho o estomago vazio, e o que melhor podemos fazer é jantar aqui mesmo no hotel de Europa em vez de ir á rua do Lavradio.

Subirão ao hotel de Europa.

Alli havião varios deputados que conversavão de politica, e os quaes se reunírão a Menezes. Estevão ouvia e respondia, sem esquecer nunca a viuva, a carta e o sandalo.

Assim, pois, davão-se contrastes singulares entre a conversa geral e o pensamento de Estevão.

Dizia por exemplo um deputado:

— O governo é reactor; as provincias não podem mais supportal-o. Os principios estão todos preteridos; na minha provincia forão demittidos alguns subdelegados pela circumstancia unica de serem meus parentes; meu cunhado, que era director das rendas, foi posto fóra do lugar, e este deu-se a um peralta contra-parente dos Valladares. Eu confesso que vou romper amanhã a opposição.

Estevão olhava para o deputado; mas no interior estava dizendo isto:

— Com effeito, Magdalena é bella, é admiravelmente bella. Tem uns olhos de matar. Os cabellos são lindissimos: tudo n’ella é fascinador. Se pudesse ser minha mulher, eu seria feliz; mas quem sabe?... Comtudo sinto que vou amal-a. Já é irresistivel; é preciso amal-a; e ella? que quer dizer aquelle convite? Amar-me-ha?

Estevão embebêra-se tanto n’esta contemplação ideal, que, acontecendo perguntar-lhe um deputado se não achava a situação negra e carrancuda, Estevão entregue ao seu pensamento respondeu:

— É lindissima!

— Ah! disse o deputado, vejo que o senhor é ministerialista.

Estevão sorrio; mas Menezes franzio o sobr’olho.

Comprehendêra tudo.


Quando sahírão, o deputado disse ao medico:

— Meu amigo, você é desleal comigo...

— Por quê? perguntou Estevão meio serio e meio risonho, não comprehendendo a observação do deputado.

— Sim, continuou Menezes; você esconde-me um segredo...

— Eu?

— É verdade: e um segredo de amor.

— Ah!... disse Estevão; por que diz isso?

— Reparei ha pouco que, ao passo que os mais conversavão em politica, você pensava em uma mulher, e mulher... lindissima...

Estevão comprehendeu que estava descoberto; não negou.

— É verdade, pensava em uma mulher.

— E eu serei o ultimo a saber?

— Mas saber o que? Não ha amor, não ha nada. Encontrei uma mulher que me impressionou e ainda agora me preoccupa; mas é bem possivel que não passe d’isto. Ahi está. É um capitulo interrompido; um romance que fica na primeira pagina. Eu lhe digo: ha de me ser difficil amar.

— Porque?

— Eu sei? custa-me a crer no amor.

Menezes olhou fixamente para Estevão, sorrio, abanou a cabeça e disse:

— Olhe, deixe a descrença para os que já soffrêrão as decepções; o senhor está moço, não conhece ainda nada d’esse sentimento. Na sua idade ninguem é sceptico... Demais, se a mulher é bonita, eu aposto que d’aqui a pouco ha de dizer-me o contrario.

— Póde ser... respondeu Estevão.

E ao mesmo tempo entrou a pensar nas palavras de Menezes, palavras que elle comparava ao episodio do theatro Lyrico.

Entretanto, Estêvão foi ao convite de Magdalena. Preparou-se e perfumou-se como se fosse fallar a uma noiva. Que sahiria d’aquelle encontro? Viria de lá livre ou captivo? Já seria amado? Estevão não deixou de pensal-o; aquelle convite parecia-lhe uma prova irrecusavel. O medico entrando n’um tilbyry começou a formar varios castellos no ar.

Emfim chegou á casa.


Magdalena estava na sala acompanhada de um filho.

Ninguem mais.

Erão nove horas e meia.

— Viria eu cedo de mais? perguntou elle á dona da casa.

— O senhor nunca vem cedo.

Estevão inclinou-se.

Magdalena continuou:

— Se me acha só, é porque, tendo enfermado um pouco, mandei desavisar as poucas pessoas que eu havia convidado.

— Ah! mas eu não recebi...

— Naturalmente; eu não lhe mandei dizer nada. Era a primeira vez que o convidava; não queria por modo algum arredar de casa um homem tão distincto.

Estas palavras de Magdalena não valião cousa alguma, nem mesmo como desculpa, porque a desculpa é fraquissima.

Estevão comprehendeu logo que havia algum motivo occulto.

Seria o amor?

Estevão pensou que era, e doeu-se, porque, apezar de tudo, sonhára uma paixão mais reservada e menos precipitada. Não queria, embora lhe agradasse, ser objecto d’aquella preferencia; e mais que tudo achava-se embaraçadissimo diante de uma mulher a quem começava a amar, e que talvez o amasse. Que lhe diria? Era a primeira vez que o medico achava-se em taes apuros. Ha toda a razão para suppôr que Estêvão n’aquelle momento preferia estar cem leguas distante, e comtudo, longe que estivesse pensaria n’ella.

Magdalena era excessivamente bella, embora mostrasse no rosto signaes de longo soffrimento. Era alta, cheia, tinha um bellissimo collo, magnificos braços, olhos castanhos e grandes, boca feita para ninho de amores.

N’aquelle momento trajava um vestido preto.

A côr preta ia-lhe muito bem.

Estevão contemplava aquella figura com amor e adoração; ouvia-a fallar e sentia-se encantado e dominado por um sentimento que não podia explicar.

Era um mixto de amor e de receio.

Magdalena mostrou-se delicada e solicita. Fallou no merecimento do rapaz e na sua nascente reputação, e instou com elle para que fosse algumas vezes visital-a.

Ás 10 horas e meia servio-se o chá na sala. Estêvão conservou-se lá até ás 11 horas.

Chegando á rua o medico estava completamente namorado. Magdalena tinha-o atado no seu carro, e o pobre rapaz nem vontade tinha de quebrar o jugo.

Caminhando para casa ia elle formando projectos: via-se casado com ella, amado e amante, causando inveja a todos, e mais que tudo feliz no seu interior.

Quando chegou á casa, lembrou-se de escrever uma carta que mandaria no dia seguinte a Menezes. Escreveu cinco e rasgou-as todas.

A final redigio um simples bilhete n’estes termos:

« Meu amigo. — Você tem razão; na minha idade crê-se; eu creio e amo. Nunca o pensei; mas é verdade. Amo..... Quer saber a quem? Hei de apresental-o em casa d’ella. Há de achal-a bonita... Se o é!... »

A carta dizia muitas cousas mais; era tudo, porém, uma glosa do mesmo mote.

Estevão voltou á casa de Magdalena e as suas visitas começárão a ser regulares e assiduas.

A viuva usava para com elle de tanta solicitude que não era possivel duvidar do sentimento que a dirigia. Pelo menos Estevão assim o pensava. Achava-a quasi sempre só, e deliciava-se em ouvil-a. A intimidade começou a estabelecer-se.

Logo na segunda visita, Estevão fallou-lhe em Menezes pedindo licença para apresental-o. A viuva disse que teria muito prazer em receber amigos de Estevão; mas pedia-lhe que adiasse a apresentação. Todos os pedidos e todas as razões de Magdalena erão dignas para o medico; não disse mais nada.

Como era natural, ao passo que as visitas á viuva erão mais assiduas, as visitas ao amigo erão mais raras.

Menezes não se queixou; comprehendeu, e disse-o ao rapaz.

— Não se desculpe, accrescentou o deputado; é natural; a amizade deve ceder o passo ao amor. O que eu quero é que seja feliz.

Um dia Estevão pedio ao amigo que lhe contasse o motivo que o tinha feito descrer do amor, e se algum grande infortunio lhe havia acontecido.

— Nada me aconteceu, disse Menezes.

Mas ao mesmo tempo, comprehendendo que o medico merecia-lhe toda a confiança, e podia não acredital-o absolutamente, disse:

— Porque negal-o? Sim, aconteceu-me um grande infortunio; amei tambem, mas não encontrei no amor as doçuras e a dignidade do sentimento: emfim, é um drama intimo de que não quero fallar: limite-se a pateal-o.


— Quando quizer que eu lhe apresente o meu amigo Menezes... dizia Estevão uma noite á viuva Magdalena.

— Ah! é verdade; um dia d’estes. Vejo que o senhor é amigo d’elle.

— Somos amigos intimos.

— Verdadeiros?

— Verdadeiros.

Magdalena sorrio; e como estava brincando com os cabellos do filho deu-lhe um beijo na testa.

A criança rio alegremente e abraçou a mãi.

A idéa de vir a ser pai honorario do pequeno apresentou-se ao espirito de Estevão. Contemplou-o, chamou por ele, acariciou-o e deu-lhe um beijo no mesmo lugar em que pousárão os labios de Magdalena.

Estevão tocava piano, e ás vezes executava algum pedaço de musica a pedido de Mgadalena.

N’essas e n’outras distracções lá passava as horas.

O amor não adiantava um passo.

Podião ser ambos duas crateras prestes a rebentar a lava; mas até então não davão o menor signal de si.

Esta situação incommodava o rapaz, acanhava-o, e fazia-o soffrer; mas quando elle pensava em dar um ataque decisivo, era exactamente quando se mostrava mais cobarde e poltrão.

Era o primeiro amor do rapaz: elle nem conhecia as palavras proprias d’esse sentimento.

Um dia resolveu escrever á viuva.

— É melhor, pensava elle; uma carta é eloquente e tem a grande vantagem de deixar a gente longe.

Entrou para o gabinete e começou uma carta.

Gastou n’isso uma hora; cada phrase occupava-lhe muito tempo. Estevão queria fugir á hypothese de ser classificado como tolo ou como sensual. Queria que a carta não respirasse sentimentos frivolos nem máos: queria revelar-se puro como era.

Mas de que não dependem ás vezes os acontecimentos? Estevão estava relendo e emendando a carta quando lhe entrou por casa um rapazola que tinha intimidade com elle. Chamava-se Oliveira e passava por ser o primeiro janota do Rio de Janeiro.

Entrou com um rolo de papel na mão.

Estevão escondeu rapidamente a carta.

— Adeos, Estevão! disse o recem-chegado. Estavas escrevendo algum libello ou carta de namoro?

— Nem uma nem outra cousa, respondeu Estevão seccamente.

— Dou-te uma noticia.

— Que é?

— Entrei na litteratura.

— Ah!

— É verdade, e venho ler-te a primeira comedia.

— Deos me livre! disse Estevão levantando-se.

— Has de ouvir, meu amigo; ao menos algumas scenas; dar-se-ha caso que não me protejas nas lettras? Anda cá; ao menos duas scenas. Sim? É pouca cousa.

Estevão sentou-se.

O dramaturgo continuou:

— Talvez prefiras ouvir a minha tragedia intitulada — O Punhal de Bruto...

— Não, não; prefiro a comedia: é menos sanguinaria. Vamos lá.

O Oliveira abrio o rolo, arranjou as folhas, tossio e começou a ler o que se segue, com voz pausada e fanhosa:

SCENA I.
Cesar (entrando pela direita), João (pela esquerda).
CESAR.

« Fechada! A sinhá já se levantou?

JOÃO.

« Já, sim senhor; mas está incommodada.

CESAR.

« O que tem?

JOÃO.

« Tem... está incommodada.

CESAR.

« Já sei. (Comsigo) Os incommodos do costume. (A João) Qual é então o remedio hoje?

JOÃO.

« O remedio? (Depois de uma pausa) Não sei.

CESAR.

« Está bom, vai-te!

SCENA II.
CESAR, FREITAS (pela direita).
CESAR.

« Bom dia, Sr. procurador...

FREITAS.

« De causas perdidas. Só me occupo em procurar as perdidas. Procurar o que se não perdeu é tolice. A minha constituinte?

CESAR.

« Disse-me o João que está incommodada.

FREITAS.

« Mesmo para V.S.?

CESAR (sentando-se).

« Mesmo para mim. Porque me olha com esse olhar? Tem inveja?

FREITAS.

« Não é inveja, é admiração! De ordinario ninguem corresponde ao nome que recebeu na pia; mas o Sr. Cesar, benza-o Deos, não desmente que traz um nome significativo, e trata de ser nas paginas amorosas o que foi o outro nas batalhas campaes.

CESAR.

« Pois tambem os procuradores dizem cousas d’estas?

FREITAS.

« De vez em quando. (Indo sentar-se) V. S. admira-se?

CESAR (tirando charutos).

« Como não é de costume... quer um charuto?

FREITAS.

« Obrigado... Eu tomo rapé (Tira a boceta) Quer uma pitada?

CESAR.

« Obrigado.

FREITAS (sentando-se).

« Pois a causa da minha constituinte vai ás mil maravilhas. A parte contraria requereu assignação de dez dias, mas eu vou...

CESAR.

« Está bom, Sr. Freitas, eu dispenso o resto; ou então não me falle linguagem do fôro. Em resumo, ella vence?

FREITAS.

« Está claro. Tratando provar que...

CESAR.

« Vence, é quanto basta.

FREITAS.

« Pudera não vencer! Pois se eu ando n’isto...

CESAR.

« Tanto melhor!

FREITAS.

« Ainda não me lembro de ter perdido uma só causa: isto é, já perdi uma, mas é porque nas vesperas de ganhar disse-me o constituinte que desejava perdêl-a. Dito e feito. Provei o contrario do que já tinha provado, e perdi... ou antes, ganhei, porque perder assim é ganhar.

CESAR.

« É a phenix dos procuradores.

FREITAS (modestamente).

« São os seus bons olhos...

CESAR.

« Mas a consciencia?

FREITAS.

« Quem é a consciencia?

CESAR.

« A consciencia, a sua consciencia?

FREITAS.

« A minha consciencia? Ah! essa tambem ganha.

CESAR (levantando-se).

« Ah! tambem?...

FREITAS (o mesmo).

« Tem V. S. alguma demandazinha?

CESAR.

« Não, não, não tenho; mas, quando tiver, fique descansado, vou bater á sua porta...

FREITAS.

« Sempre às ordens de V. S. »


Estevão interrompeu violentamente a leitura, o que desgostou bastante ao poeta novel. O pobre candidato ás musas mal pôde balbuciar uma supplica; Estevão mostrou-se surdo, e o mais que lhe concedeu foi ficar com a comedia para lêl-a depois.

Oliveira contentou-se com isso; mas não se retirou sem recitar-lhe de cór uma falla do protogonista da tragedia, em versos duros e compridos, dando-lhe por quebra uma estrophe de uma poesia lyrica, no estylo dos Djinns de Victor Hugo.

Emfim sahio.

Entretranto havia passado o tempo.

Estevão releu a carta e quiz ainda mandal-a; mas a interrupção do poeta fôra proveitosa; relendo a carta, Estevão achou-a fria e nulla; a linguagem era ardente, mas não lhe correspondia ao fogo do coração.

— É inutil, disse elle rasgando a carta em mil pedaços, a lingua humana ha de ser sempre impotente para exprimir certos affectos da alma; tudo aquillo era frio e indifferente no que eu sinto. Estou condemnado a não dizer nada ou a dizer mal. Ao pé d’ella não tenho forças, sinto-me fraco.....

Estevão parou diante da janella que dava para a rua, no momento em que passava um antigo collega d’elle, com a mulher de braço, a mulher que era bonita, e com quem se casára um mez antes.

Os dous ião alegres e felizes.

Estevão contemplou aquelle quadro com adoração e tristeza. O casamento já não era para elle aquelle impossível de que fallava quando apenas tinha idéas e não sentimentos. Agora era uma ventura realisavel.

O casal que passára dera-lhe nova força.

— É preciso acabar com isto, dizia elle; eu não posso deixar de ir áquella mulher e dizer-lhe que a amo, que a adoro, que desejo ser seu marido. Ella amar-me-ha, se já me não ama: sim, ama-me....

E começou a vestir-se.

Quando calçava as luvas e lançava um olhar para o relogio, o criado trouxe-lhe uma carta.

Era de Magdalena.

« Espero, meu caro doutor, que não deixe de vir hoje; esperei-o hontem em vão. Desejo fallar-lhe. »

Estevão acabou de ler este bilhete na escada, com tal pressa descia e tal urgencia tinha de achar-se em casa da viuva.

O que elle não queria era perder aquelle assomo de coragem.

Partio.

Quando chegou á casa de Magdalena achava-se esta á janella. Recebeu-o com a costumada affabilidade. Estevão desculpou-se como pôde por não ter podido vir na vespera, accrescentando que só com desgosto do seu coração havia faltado.

Que melhor occasião do que era essa para lançar a bomba de uma declaração franca e apaixonada? Estevão hesitou alguns segundos; mas tomando animo, ia continuar o periodo, quando a viuva lhe disse:

— Estava anciosa por vêl-o para communicar-lhe uma cousa de certa importancia, e que só a um homem de honra, como o senhor, se póde confiar.

Estêvão empallideceu.

— Sabe onde foi que eu o vi pela primeira vez?

— No baile de***.

— Não; foi antes d’isso; foi no theatro Lyrico.

— Ah!

— Lá o vi com o seu amigo Menezes.

— Fomos algumas vezes lá!

Magdalena entrou então em uma longa exposição, que o rapaz ouvio sem pestanejar, mas pallido e agitado por commoções intimas. As ultimas palavras da viuva forão estas:

— Bem vê, senhor; cousas destas só uma grande alma póde ouvil-as. As pequenas não as comprehendem. Se lhe mereço alguma cousa, e se esta confiança póde ser paga com um beneficio, peço-lhe que faça o que lhe pedi.

O medico passou a mão pelos olhos, e apenas murmurou:

— Mas.....

N’este momento entrava na sala o filhinho de Magdalena; a viuva levantou-se e trouxe-o pela mão até o lugar onde se achava Estevão Soares.

— Se não por mim, disse ella, ao menos por esta criança innocente!

A criança, sem nada comprehender, atirou-se aos braços de Estevão. O moço deu-lhe um beijo na testa, e disse para a viuva:

— Se hesitei não foi porque duvidasse do que a senhora acaba de contar-me; foi porque a missão é espinhosa; mas prometto que hei de cumpril-a.


Estevão sahio da casa da viuva agitado por diversos sentimentos, com passo tremulo e a vista turva. A conversa com a viuva fôra um longo combate; a ultima promessa foi um golpe decisivo e mortal. Estevão sahia d’alli como um homem que acabava de matar as suas esperanças em flôr; caminhava ao acaso, precisava de ar e queria metter-se em um quarto sombrio; quizera ao mesmo tempo estar solitario e no meio de immensa multidão.

No caminho encontrou Oliveira, o poeta novel.

Lembrou-se que a leitura da comedia impedíra a remessa da carta, e portanto poupou-lhe um tristissimo desengano.

Estevão involuntariamente abraçou o poeta com toda a effusão d’alma.

Oliveira correspondeu ao abraço, e quando pôde desligar-se do medico, disse-lhe:

— Obrigado, meu amigo; estas manifestações são muito honrosas para mim; sempre te conheci como um perfeito juiz litterario, e a prova que acabas de dar-me é uma consolação e uma animação; consola-me do que tenho soffrido, anima-me para novos commettimentos. Se Torquato Tasso.....

Diante d’esta ameaça de discurso, e sobretudo vendo a interpretação do seu abraço, Estevão resolveu-se a continuar caminho abandonando o poeta.

— Adeos, tenho pressa

— Adeos, obrigado!

Estevão chegou á casa e atirou-se á cama. Ninguem o soube nunca, só as paredes do quarto forão testemunhas; mas a verdade é que Estêvão chorou lagrimas amargas.

Emfim que lhe dissera Magdalena e que exigíra d’elle?

A viuva não era viuva; era mulher de Menezes; viera do Norte mezes antes do marido, que só veio como deputado; Menezes, que a amava doudamente, e que era amado com igual delirio, accusava-a de infidelidade; uma carta e um retrato erão os indicios: ella negou, mas explicou-se mal; o marido separou-se e mandou-a para o Rio de Janeiro.

Magdalena aceitou a situação com resignação e coragem: não murmurou nem pedio, cumprio a ordem do marido.

Todavia Magdalena não era criminosa; o seu crime era uma apparencia; estava condemnada por fidelidade de honra. A carta e o retrato não lhe pertencião; erão apenas um deposito imprudente e fatal. Magdalena podia dizer tudo, mas era trahir uma promessa; não quiz; preferio que a tempestade domestica cahisse unicamente sobre ella.

Agora, porém, a necessidade do segredo expirára; Magdalena recebeu do Norte uma carta em que a amiga, no leito da morte, pedia que inutilisasse a carta e o retrato, ou os restituisse ao homem que lh’os dera. Esta carta era uma justificação.

Magdalena podia mandar a carta ao marido, ou pedir-lhe uma entrevista; mas receiava tudo; sabia que seria inutil, porque Menezes era extremamente severo.

Víra o médico uma noite no theatro em companhia de seu marido; indagára e soube que erão amigos; pedia-lhe pois que fosse mediador entre os dous, que a salvasse e que reconstruisse uma familia.

Não era pois sómente o amor de Estevão que soffria; era tambem o seu amor-proprio. Estevão facilmente comprehendeu que não fôra attrahido áquella casa para outra cousa. É verdade que a carta só chegára na vespera; mas a carta apenas vinha apressar a resolução. Naturalmente Madalena pedir-lhe-hia, sem haver carta, algum serviço análogo áquelle.

Se se tratasse de qualquer outro homem, Estevão recusaria o serviço que lhe pedia a viuva; mas tratava-se do seu amigo, de um homem a quem elle devia estima e serviços de amizade.

Aceitou, pois, a cruel missão.

— Cumpra-se o destino, disse elle; hei de ir lançar a mulher que amo aos braços de outro; e por desgraça maior, em vez de gozar com este restabelecimento de concordia domestica, vejo-me na dura situação de amar a mulher do meu amigo, isto é, de fugir para longe.....

Estevão não sahio mais de casa n’esse dia.

Quiz escrever ao deputado contando-lhe tudo; mas pensou que o melhor era fallar-lhe de viva voz. Embora lhe custasse mais, era de mais effeito para o desempenho da sua promessa.

Adiou, porém, para o dia seguinte, ou antes para o mesmo dia, porque a noite não lhe interrompeu o tempo, visto que Estevão não dormio um minuto sequer.


Levantou-se da cama o pobre namorado sem ter conseguido dormir. Vinha nascendo o sol.

Quiz ler os jornais e pedio-os.

Já os ia pondo de lado, por haver acabado de ler, quando repentinamente vio o seu nome impresso no Jornal do Commercio.

Era um artigo a pedido com o titulo de Uma obra prima.

Dizia o artigo:


« Temos o prazer de annunciar ao paiz o proximo aparecimento de uma excellente comedia, estréa de um joven litterato fluminense, de nome Antonio Carlos de Oliveira.

« Este robusto talento, por muito tempo incognito, vai emfim entrar nos mares da publicidade, e para isso procurou logo ensaiar-se em uma obra de certo vulto.

« Consta-nos que o autor, solicitado por seus numerosos amigos, leu ha dias a comédia em casa do Sr. Dr. Estevão Soares, diante de um luzido auditorio, que applaudio muito e prophetisou no Sr. Oliveira um futuro Shakespeare.

« O Sr. Dr. Estevão Soares levou a sua amabilidade a ponto de pedir a comedia para ler segunda vez, e hontem ao encontrar-se na rua com o Sr. Oliveira, de tal enthusiasmo vinha possuido que o abraçou estreitamente, com grande pasmo dos numerosos transeuntes.

« Da parte de um juiz tão competente em materias litterarias este acto é honroso para o Sr. Oliveira.

« Estamos anciosos por ler a peça do Sr. Oliveira, e ficamos certo de que ella fará fortuna de qualquer theatro.

« O amigo das lettras. »


Estevão, apezar dos sentimentos que o agitavão então, enfureceu-se com o artigo que acabava de ler. Não havia duvida que o autor d’elle era o proprio autor da comedia. O abraço da vespera fôra mal interpretado, e o poetastro aproveitava-o em seu favor. Se ao menos não fallasse no nome de Estevão, este poderia desculpar a vaidadezinha do escriptor. Mas o nome alli estava como complice da obra.

Pondo de lado o Jornal do Commercio, Estevão lembrou-se de protestar, e ia já escrever um artigo quando recebeu uma cartinha de Oliveira.

Dizia a carta:


« Meu Estevão. — Lembrou-se um amigo meu de escrever alguma cousa a proposito da minha peça. Expliquei-lhe como se dera a leitura em tua casa, e disse-lhe como é que, apezar do vivo desejo que tinhas de ouvir lêl-a, interrompeste-me para ir cuidar de um doente. Apezar de tudo isto, o meu referido amigo contou hoje no Jornal do Commercio a historia alterando um pouco a verdade. Desculpa-o; é a linguagem da amizade e da benevolencia.

« Hontem entrei para casa tão orgulhoso com o teu abraço que escrevi uma ode, e assim manifestou-se em mim a veia lyrica, depois da comica e da tragica. Ahi te mando o rascunho; se não prestar, rasga-a. »


A carta tinha, por engano, a data da vespera.

A ode era muito comprida; Estevão nem a leu; atirou-a para um canto.

A ode começava assim:


Sahe do teu monte, ó musa!
Vem inspirar a lyra do poeta;
Enche de luz a minha fronte ousada,
E mandemos aos evos,
Nas azas de uma estrofe ingente e altisona,
Do caro amigo o animador abraço!

Não canto os altos feitos
De Achilles, nem traduzo os sons tremendos
Dos rufos marciaes enchendo os campos!
Outro assumpto me inspira.
Não canto a espada que dá morte e campa;
Canto o abraço que dá vida e gloria!


Como havia promettido, Estêvão foi logo procurar o deputado Menezes. Em vez de ir direito ao fim, quiz antes sondal-o a respeito do seu passado. Era a primeira vez que o moço tocava em tal. Menezes não desconfiou, mas estranhou; mas tal confiança tinha n’elle que não recusou nada.

— Sempre imaginei, dissera-lhe Estevão, que ha na sua vida um drama. E talvez engano meu, mas a verdade é que ainda não perdi a idéa.

— Há, com effeito, um drama; mas um drama pateado. Não sorria; é assim. Que suppõe então?

— Não supponho nada. Imagino que.....

— Pede dramas a um homem politico?

— Porque não?

— Eu lhe digo. Sou politico e não sou. Não entrei na vida publica por vocação; entrei como se entra em uma sepultura: para dormir melhor. Porque o fiz? A razão é o drama de que me falla.

— Uma mulher, talvez.....

— Sim, uma mulher.

— Talvez mesmo, disse Estevão procurando sorrir, talvez uma esposa.

Menezes estremeceu e olhou para o amigo, espantado e desconfiado.

— Quem lh’o disse?

— Pergunto.

— Uma esposa, sim; mas não lhe direi mais nada. É a primeira pessoa que ouve tanta cousa de mim. Deixemos o passado que morreu: parce sepultis.

— Conforme, disse Estêvão; e se eu pertencer a uma seita philosofica que pretenda resuscitar os mortos, mesmo quando é um passado.....

— As suas palavras, ou querem dizer muito, ou nada. Qual é a sua intenção?

— A minha intenção não é resuscitar o passado unicamente; é reparal-o, é restaural-o em todo o seu esplendor, com toda a legitimidade do seu direito; o meu fim é dizer-lhe, meu caro amigo, que a mulher condemnada é uma mulher innocente.

Ouvindo estas palavras Menezes deu um pequeno grito.

Depois levantando-se com rapidez pedio a Estevão que lhe dissesse o que sabia e como sabia.

Estevão referio tudo.

Quando concluio a sua narração, o deputado abanou a cabeça com aquelle ultimo symptoma de incredulidade que é ainda um écho das grandes catastrophes domesticas.

Mas Estevão ia armado contra as objeções do marido. Protestou energicamente pela defesa da mulher; instou pelo cumprimento do dever.

A ultima resposta de Meneses foi esta:

— Meu caro Estevão, a mulher de Cesar nem deve ser suspeitada. Acredito em tudo; mas o que está feito, está feito.

— O principio é cruel, meu amigo.

— É fatal.

Estevão sahio.

Ficando só, Menezes cahio em profunda meditação; elle acreditava em tudo, e amava a mulher; mas não acreditava que os bellos dias pudessem voltar.

Recusando, pensava elle, era ficar no tumulo em que tivera tão brando somno.

Estevão, porém, não desanimou.

Quando entrou em casa, escreveu uma longa carta ao deputado exhortando-o a que restaurasse a familia um momento separada e desfeita, Estevão era eloquente; o coração de Menezes com pouco se contentava.

Emfim, n’esta missão diplomatica, o medico houve-se com suprema habilidade. No fim de alguns dias dissipára-se a nuvem do passado, e o casal reuníra-se.

Como?

Magdalena soube das disposições de Menezes e recebeu o annuncio de uma visita de seu marido.

Quando o deputado preparava-se para sahir, vierão dizer-lhe que uma senhora o procurava.

A senhora era Magdalena.

Menezes nem quiz abraçal-a; ajoelhou-se-lhe aos pés.

Tudo estava esquecido.

Quizerão celebrar a reconciliação, e Estevão foi convidado para lá passar o dia em companhia dos seus amigos, que lhe devião a felicidade.

Estêvão não foi.

Mas no dia seguinte Menezes recebeu este bilhete:


« Desculpe, meu amigo, se não vou despedir-me pessoalmente. Sou obrigado a partir repentinamente para Minas. Voltarei d’aqui a alguns mezes.

« Estimo que sejão felizes, e espero que não se esqueção de mim. »

Menezes foi apressadamente á casa de Estêvão, e ainda o achou preparando as malas.

Achou singular a viagem, e mais singular o bilhete; mas o medico não revelou por modo nenhum o verdadeiro motivo da sua partida.

Quando Menezes voltou, communicou á mulher as suas impressões; e perguntou se ella comprehendia aquillo.

— Não, respondeu Magdalena.

Mas tinha compreendido emfim.

— Nobre alma! disse ella comsigo.

Nada disse ao marido; n’isso mostrava-se esposa solicita pela tranquillidade conjugal; mas mostrava-se sobretudo mulher.

Menezes não foi á camara durante muitos dias, e no primeiro paquete seguio para o Norte.

A ausencia transtornou algumas votações, e a sua partida logrou muitos calculos.

Mas o homem tem o direito de procurar a sua felicidade e a felicidade de Menezes era independente da politica.