Anexo:Imprimir/O Cancioneiro portuguez da Vaticana
Índice
[editar]- Introdução
- Capítulo I: O Livro das Cantigas do Conde de Barcellos
- Capítulo II: Livro das Trovas de El-rei Dom Diniz
- Capítulo III: O Cancioneiro da Ajuda (ou do Collegio dos Nobres)
- Capítulo IV: O Cancioneiro de Dona Mecia de Cisneros
- Capítulo V: Cancioneiro de Angelo Colocci
- Capítulo VI: Il Canzoniere portoghese della Bibliotheca Vaticana, n°. 4803. Messo a stampa de Ernesto Monaci. Halle, 1875.
O Cancioneiro portuguez da Vaticana
O apparecimento do Cancioneiro portuguez da Bibliotheca do Vaticano, que encerra quasi toda a poesia lyrica do fim da edade media em Portugal, veiu mais uma vez provar a superioridade da iniciativa individual sobre a estabilidade inerte das instituições collectivas que apenas apresentam o vigor do prestigio official; desde 1847 que a Academia real das Sciencias de Lisboa deixava jazer no pó do archivo de Roma este importante documento nacional, e foram sempre ficticios os esforços para obter uma copia d’elle, que de ha muito devera ter sido reproduzida no corpo dos Scriptores, que forma uma das partes dos Portugaliae Monumenta historica. No emtanto, no estrangeiro o interesse scientifico muitas vezes se havia occupado do passado historico de Portugal, e foi a esta corrente que obedeceu o illustre philologo romanista Ernesto Monaci coadjuvado pelo activo e intelligente editor Max Niemeyer, restituindo a este paiz o texto diplomatico do mais precioso dos seus documentos litterarios. Ao terminar do modo mais consciensioso a sua empreza, escreve Monaci: "voglia il cielo che tornato il libro in Portogallo, diventi presto oggetto di studj novelli. È solo nella fonte delle tradizioni patrie che lo spirito di una nazione si ringagliardisce." (Canz. port., p. XVIII.) Infelizmente na litteratura portugueza ainda se não comprehendeu esta verdade salutar, e por isso o talento desbarata-se em architectar phantasmagorias de cerebros doentes ou em fazer traducções de romances dissolutos. Acceitando a responsabilidade das palavras do editor do Cancioneiro da Vaticana dirigidas a esta nação, cabia primeiro do que a todos á Academia real das Sciencias de Lisboa responder pela seguinte forma:
1°. Publicar o texto critico e litterario restituido sobre a lição diplomatica em grande parte illegivel fóra de Portugal.
2°. Acompanhar esse texto com todos os dados bibliographicos de que se possa alcançar noticia, para sobre elles basear a historia externa da formação do Cancioneiro.
3°. Acompanhal-o de um bom glossario das palavras empregadas na dicção provençalesca da poesia palaciana.
4°. Por ultimo organisar um vasto quadro da historia litteraria de Portugal no periodo dos nossos trovadores, deduzido dos abundantes factos historicos que fornece o Cancioneiro da Vaticana.
É para isto que existem as Academias nos paizes civilisados, que os governos as subsidiam, e que os seus membros têm o fôro de sabios. Em quanto a Academia real das Sciencias de Lisboa não cumpre este seu dever, cumpre-nos dar uma noticia d’este Cancioneiro, longos seculos perdido pelas bibliothecas estrangeiras.
N’este codice se encontram as nossas origens litterarias, e as relações intimas que filiam a litteratura portugueza no grupo das litteraturas romanicas da edade media da Europa; aqui se acham representadas as duas correntes da inspiração popular e palaciana ou erudita, bem como os costumes intimos de uma sociedade que nos é desconhecida, mas d’onde proviemos; os successos historicos aí têm a sua nota accentuada; os nomes que figuram nas lendas genealogicas e nos feitos de armas no periodo da constituição da nossa nacionalidade aí se encontram assignando os mais saborosos cantares consagrados ás damas da côrte, que serviam. Finalmente, ali está o documento mais vasto em que a lingua portugueza se manifesta no seu esforço para de inconsistente dialecto romanico se tornar uma lingua escripta com uma grammatica fixa. Um livro assim, onde se acha representado o melhor da nossa antiga poesia durante os seculos XIII e XIV, é a joia de uma bibliotheca. Como nos mostraremos gratos ao estrangeiro que assim vem augmentar os nossos thezouros historicos e restituir-nos o fio perdido da nossa tradição nacional? Estudando-o.
A primeira questão que o Cancioneiro portuguez do Vaticano sugere é determinar as suas relações com os antigos cancioneiros provençaes portuguezes em grande parte perdidos; esta circumstancia complica o problema critico, e por isso importa bem determinar aproximadamente o numero d’essos cancioneiros para se fazer o processo de filiação. Tal é o intuito d’este nosso primeiro estudo, bastante restricto, por que determinar o valor historico do Cancioneiro pelas correntes litterarias n’elle representadas, pela allusão aos grandes successos, pelo uso de dadas formas poeticas, pelas personalidades dos principaes trovadores e pelo estado da lingua portugueza, é uma exploração de tal forma vasta, que qualquer d’estas questões excede as proporções de uma noticia. Começamos pela critica externa do Cancioneiro, enumerando todos os cancioneiros portuguezes dos seculos XIII e XIV que contribuiram para a sua formação, procurando ao mesmo tempo o nexo que existiria entre elles, e pelas divergencias de texto quaes as collecções que se perderam sem chegarem a ser conhecidas.
No testamento do Conde D. Pedro, feito em Lalim em 30 de Março de 1350, se lê esta clausula: "Item, mando o meu Livro das Cantigas a el rei de Castella". Interpretando esta clausula, Varnhagem quiz por ella attribuir o Cancioneiro da Ajuda ao Conde de Barcellos, imprimindo-o em 1849 n'esse presupposto, com o titulo de Trovas e Cantares... ou antes mui provavelmente o Livro das Cantigas do Conde de Barcellos. Esta hypothese cedo caiu diante da evidencia dos factos; mas além d'este primeiro erro, existe n'esta affirmacão um outro, que é o julgar o Livro das Cantigas formado de canções unicamente compostas pelo Conde de Barcellos. Era antigamente vulgar terem os principes cancioneiro seu, como objecto sumptuario, isto é, uma collecção contendo as melhores poesias de seu tempo; sabendo-se a tendencia compiladora e erudita do Conde Dom Pedro, e a sua amisade com a aristocracia portugueza e gallega por causa do seu Nobiliario, é mais no espirito da historia litteraria a hypothese, que o Livro das Cantigas era seu pelo facto material da propriedade ou da colleccionação, e que este titulo designa um cancioneiro contendo composições de diversos trovadores. Vamos fundamentar esta hypothese: Primeiramente, o Conde D. Pedro, pelas canções que d'elle restam na collecção do Vaticano, era um mediocre trovador, e d'elle diz Affonso XI, a quem elle deixara em testamento o seu Livro das Cantigas:
- Pois se de quant'el tem errado
- serve Dom Pedro, nem lhi dá em grado.
Alludia á inferioridade das canções de Bernal de Bonaval, que serviam ao gosto do Conde Dom Pedro. Em segundo logar, pelo Nobiliario se vê quanto o Conde era versado nas tradições bretans que adoptava como factos historicos; e no indice do Cancioneiro de Angelo Colocci se acham enumeradas como começo d'esse codice: "1. Elis o baço, duque de Sansonha, quando passou na Gram Bretanha, qual ora chamam Ingraterra, al tempo del Rey Arthur ad combater com Tristano por que lhi avia occiso o padre em uma batalha. E andando um dia em sa busca foi por Giososa Guarda ú era a reyna Isouda de Corualha, e enamorou-se ali elle, e fez por ella aquesta lais, o qual lais poemos aqui, porque era o melhor que fora feito. — 2. Quatro donzellas, a Morouet de Irlanda, al tempo del rei Arthur. — 3. Dom Tristan enamorado. — 4. Dom Tristan. — 5. D. Tristam para Genebra".
Por este conteúdo do começo do Cancioneiro que pertenceu a Colocci, e por que no codice da Vaticana mais de uma vez se citam as formas poeticas bretãs dos lais, podemos concluir que esses cinco Lais pertenceriam ao Livro das Cantigas, o qual foi encorporado em uma grande collecção formando talvez a parte que vae até as canções de el-rei D. Diniz que eram tambem um cancioneiro avulso. Por este mesmo codice de Angelo Colocci, de que resta o indice, achamos que antes da parte que constitue a colecção de el-rei D. Diniz, estavam colligidas varias canções de Dom Affonso Sanches, bastardo do rei, as canções de Dom Affonso rei de Leão, as de D. Affonso XI de Castella, e depois d'estar as do proprio Conde de Barcellos, que são ao todo nove, e tambem as de seu irmão el rei D. Affonso IV. Não era qualquer compilador ocioso que poderia satisfazer a sua curiosidade obtendo d'estes principes e monarchas as canções mais ou menos pessoaes; o Conde de Barcellos estava em uma posição especial, sabia metrificar, era estimado na côrte de D. Diniz e na de Affonso XI, e tendo passado algum tempo em Hesphanha de lá podia trazer canções de varios trovadores que nunca estiveram em Portugal. Por tanto o seu Livro das Cantigas fôra formado n'estas condições particulares, e o apreço que se lhe ligava é que o fez com que o deixasse em testamento ao elegante trovador Affonso XI de Castella. A posse de um livro de cantigas era quasi um titulo nobiliarchico; na canção 76 da Vaticana, feita á maneira de sirvente por Affonso XI contra o Dayão de Calez, diz que elle tinha um Livro de Sons, por meio do qual seduzia todas as mulheres. Foi tambem pelo seu gosto pela poesia provençalesca que o Conde de Barcellos manteve a sympathia de D. Affonso IV, filho legitimo de D. Diniz, e por isso em uma canção de louvor é chamado o rimante d'el-Rei. Por tudo isto é mais crível que o Livro das Cantigas do Conde fosse o primeiro nucleo com que se formou por juxta-posição o grande cancioneiro portuguez, do qual um dos apographos é o codice da Vaticana; dizemos por juxta-posição, por que se lhe segue o de el-rei Dom Diniz, e porque muitas canções de codice de Roma se acham aí mesmo repetidas, indicação inevitavel de terem sido colligidas de fontes diversas. Quando o Conde Dom Pedro falleceu já era morto Affonso XI, e isto explica como poderia extraviar-se em Castella esse Livro das Cantigas, e como Pero Gonçalves de Mendoza viria a obter a copia que se guardava em um grande volume em casa de D. Mecia de Cisneros, e pela primeira vez citada por seu neto, o Marquez de Santillana.
O corpo das canções de el-rei Dom Diniz occupava uma grande parte do codice de Dona Mecia de Cisneros; occupava tambem uma parte importante no apographo de Colocci, bem como no codice da Vaticana. O modo como esta grande quantidade de canções de el-rei Dom Diniz entrou em uma vasta compilação explica-se naturalmente, por isso que pelo catalogo dos livros de uso de el rei Dom Duarte acha-se citado o Livro das Trovas de el-rei Dom Diniz, do qual se pode inferir terem existido varias copias, por que o numero das canções varia entre as enumeradas no indice de Colocci e as contidas no codice da Vaticana, contando este ultimo cincoenta e uma canções a mais. Alem d'isso, na parte do codice que encerra as canções de D. Diniz, a canção 116 acha-se repetida outra vez sob o numero 174 com variantes e differente disposição de estrophes, o que denota que essa parte foi compilada de copias secundarias, mas classificadas, como vemos pelo titulo das Cantigas de Amigo dado a um certo genero de canções, especialmente de imitação popular. É provavel que os autographos que serviam para os traslados nitidos dos amanuenses fossem por vezes aproveitados por outros compiladores; de el-rei Dom Diniz andava tambem um codice poetico em poder dos Freires de Christo de Christo de Thomar. Os muitos jograes da Galiza, de Castella e de Leão, que frequentavam a côrte de Dom Diniz, tambem colligiriam esses corpos de canções de Serranilha e de Mal-dizer que os privados dos monarchas trovaram, e que elles decoravam para cantarem de officio. Os jograes formaram collecções dos melhores cantares para recitarem ou acompanharem á citola, pelo que recebiam dinheiro; o costume de ter jograes de Segrel ao serviço da casa real levava tambem a formar estes pequenos cancioneiros escolhidos.
O facto de se encontrarem cincoenta e seis canções communs ao Codice da Ajuda e ao da Vaticana, torna indispensavel o resumir aqui o que se sabe da historia externa do Cancioneiro da Ajuda. As suas folhas são de pergaminho, a duas columnas, com pauta para a musica das canções que se deveria escrever em seguida, e com varias vinhetas separando os diversos grupos de canções de cada trovador e com letras historiadas. O cancioneiro está truncado, pois que começa na folha 41, e não existe o final, não só por incuria dos possuidores, que o baralharam encadernando-o tumultuariamente com o Nobiliario, grudando algumas folhas ás capas, mas tambem por que o estado da copia, sem assignatura ou designação dos trovadores, letras historiadas incompletas, e falta de notação musical, nos revelam que o codice não foi dado por acabado. Esta collecção começou-se ainda no reinado de D. Diniz, por que juntando-se as folhas lê-se escripto no córte d'ellas: Rei Dom Diniz, e d'isto tambem se pode deduzir, que se não perderam muitas folhas do principio e do fim. D'este codice foram encontradas mais 24 folhas avulsas na Bibliotheca de Evora, e é tradição corrente que na de Coimbra existiam algumas outras tambem.
A inspecção do Codice da Ajuda, confrontado com outros Codices europeus, mostra-nos que elle pertencia indubitavelmente a diversos trovadores; Varnhagem notou que existiam dezaseis vinhetas imperfeitamente coloridas, que estão desenhadas junto ás canções 2, 36, 37, 149, 157, 170, 173, 184, 190, 231, 233, 249, 253, 255, 259 e fragmento h. (Notas ás Trovas e Cantares, p. 348.)
Alem d'este vestigio paleographico, o confronto com o Codice da Vaticana levou a achar os seguintes trovadores, communs aos dois Cancioneiros: Pero Barroso, Affonso Lopes Baião, Mem Rodrigues Tenoyro, João de Guilhade Estevam Froyam, João Vasques, Fernão Velho, Ayres Vaz, D. João de Aboim, Pero Gomes Charrinho, Ruy Fernandes, Fernam Padrom, Pero da Ponte, Vasco Rodrigo de Calvelo, Pero Solaz, Pero d'Armêa, e João de Gaia. Todos estes nomes são de fidalgos grandes privados de el-rei D. Diniz, e alguns já figuram em doações de D. Affonso III, como D. João de Aboim e Affonso Lopes Baião; Mem Rodrigues Tenoyro vivia na côrte de D. Affonso IV, e foi entregue a Pedro cruel em troca dos assassinos de Inez de Castro.[1] A parte não assignada e que não se encontra no Cancioneiro da Vaticana será por ventura o corpo das canções escriptas durante o tempo em que a côrte de D. Affonso III esteve fixa em Santarem. Alem d'isso a parte commum tem a particularidade de conservar a mesma ordem nas canções, e ao mesmo tempo as variantes mais fundamentaes n'essas lições. D'aqui se conclue, que já existia um Cancioneiro formado, d'onde este da Ajuda estava sendo trasladado, mas que d'esse cancioneiro existiam differentes copias formadas, não directamente sobre elle, mas por meio dos cancioneiros particulares que o constituiram. A parte não commum ao codice de Roma, prova nos tambem que alguns d'esses cancioneiros parciaes se perderam, ou eram já tão raros que não chegaram a ser encorporados na collecção. Admittida a hypothese de que o Cancioneiro da Ajuda, pelo facto de ter pertencido a el-rei D. Diniz e de andar encadernado junto do Nobiliario do Conde D. Pedro, fosse o proprio Livro das Cantigas, como primeiro quiz Varnhagem, o facto de apparecerem aí outros trovadores prova-nos a nossa hypothese, que o Conde D. Pedro compilara sob esse titulo as canções dos trovadores seus contemporaneos. O numero de vinhetas imperfeitamente coloridas do cancioneiro da Ajuda são dezaseis; isto leva a inferir que esse codice era formado de dezeseis corpos de canções que pertenciam a dezassete trovadores. De facto a coincidencia aqui é pasmosa: o numero dos trovadores communs ao Cancioneiro da Ajuda e da Vaticana é de dezesete! Note-se que este numero é o que se perfaz com os nomes de Fernam Padrom, João de Gaya, e Pero d'Armêa, que achámos alem d'aquelles que primeiro descobriu Varnhagem. D'este numero se tira a conclusão que o Cancioneiro da Ajuda pertence exclusivamente a esses dezessete trovadores, e que as cincoenta e seis canções communs ao Codice da Ajuda eram as que andavam por cancioneiros parciaes, como as mais conhecidas, e pelas variantes que appresentam, as mais repetidas. Alem d'isso, pode suppor-se que o Cancioneiro da Ajuda não foi acabado, por que o estylo limosino em que está escripto, passou de moda, preferindo-se os Cantares d'amigo, as serranilhas, as pastorellas, os lais e as sirventes, mudança de gosto proveniente da grande affluencia de jograes gallegos, leonezes e castelhanos á côrte de Dom Diniz; e sob o gosto da côrte de Dom Affonso IV prevaleceram tambem as canções e musicas bretans, cuja corrente parece ainda reflectida no Cancioneiro da Ajuda, em um remotissimo vestigio, no fragmento de canção em que se lê a palavra guarvaya, com que o trovador allude aos seus infelices amores. Nas Leges Wallice, XXIII, I, encontra-se o dom das nupcias, kyvarus, que se pagava ao cantor da côrte: "Penkered (musicus primarius) debet habere mercedes de filiabus poetarum sibi subditorum; habebit quoque munera nuptiarum, id est kyvarus neythans, á feminibus nuper datis, scilicet XXIIIIor denarios."[2] A connexão historica e a interpretação litteral mostram que a guarvaya do trovador portuguez é o mesmo facto ou costume bretão kyvarus; a verificação pelos processos da alteração phonetica pertence para outro logar. Em todo o caso este vestigio é um dos nexos mais intimos que se pode achar com o codice perdido de Colocci, em que estavam já colligidos alguns lais bretãos.
A musica do Cancioneiro da Ajuda tambem foi abandonada, por que foram substituidos nos costumes outros instrumentos e outras tonadilhas; no poema francez de Bertrand Du Guesclin, fala-se de cantores bretãos na côrte de D. Pedro I de Portugal. Foi já n'esta nova corrente poetica e com o fervor que ella despertara que se começou a formar o vasto cancioneiro, de cuja existencia se sabe por quatro apographos. Crêmos que o compilador que trasladou ou organisou o texto authentico d'onde saíu o apographo do Vaticano, não soube da existencia do Cancioneiro da Ajuda, apezar das cincoenta e seis canções communs a ambos. Este facto será mais amplamente explicado.
Notas
[editar]Na sua Carta ao Condestavel de Portugal, escripta antes de 1449, o Marquez de Santillana, no § XV, diz que se recordava de ter visto, quando era bastante menino, em poder de sua avó Dona Mecia de Cisneros, entre outros livros, um grande volume de cantigas.... O Marquez de Santillana nasceu em 1398, e sua avó Dona Mecia, na companhia da qual passou a sua infancia, morreu em Dezembro de 1418, em Palencia. Em primeiro logar "o grande volume de Cantigas, e outros livros" citados na carta, existiam em casa de D. Mecia de Cisneros por que provinham de Garcilasso de la Vega, e de Pero Gonzales de Mendoza, como claramente o affirma Amador de los Rios: "passo su infancia en casa Doña Mencia de Cisneros, su abuela, donde hubo de aficionar-se à la lectura de los poetas en los codices que poseyeron Garcilasso de de la Vega y Pero Gonzales de Mendoza..."[1] Garcilasso de la Vega, bisavó do Marquez, morrera em 1351, e esta data, e as suas relações de parentesco com a aristocracia portugueza explicam como a elle ou a Pedro Gonzales de Mendoza chegou o volume das cantigas. Portanto esse grande cancioneiro não existia em Hespanha antes poucos annos de 1351 e foi pouco antes de 1418 que o joven Marquez de Santillana o consultou. Pedro Gonzales de Mendoza era tambem poeta do côrte de Don Pedro e de Don Enrique (Amador de los Rios, op.cit., p. 623), e isto mostra o interesse que o levaria pelo seu lado a conservar o grande cancioneiro portuguez.
A descripção que faz o Marquez de Santillana d'esse codice, coincide com o que existe na Bibliotheca do Vaticano em copia do seculo XVI: "un grande volume de Cantigas serranas e dizeres portuguezes e gallegos". São ao todo mil duzentas e cinco cantigas compostas no genero descripto por Santillana, e os poetas são em grande numero galegos. Em seguida accrescenta: "dos quaes a maior parte eram do rei D. Diniz de Portugal". Effectivamente o trovador que mais canções appresenta no codice da Vatícana é el-rei D. Diniz, cujas composições estão compiladas entre o numero 80 e 208, sendo ao todo cento e vinte nove. Accrescenta mais o Marquez de Santillana: "cujas obras aquelles que as liam, louvavam de invenções subtis, e de graciosas e doces palavras". Esta affirmação, sobendo-se que o Marquez escreve sobre uma recordação da sua infancia, não podia resultar se não dos gabos ouvidos a Pero Gonzales de Mendoza, poeta do Cancioneiro de Baena, gabos que fizeram com que o livro se conservasse em casa de D. Mecia de Cisneros, e d'onde se tirara por ventura essa outra copia que hóje existe em poder de um grande de Hespanha, segundo uma affirmação de Varnhagem. N'esta mesma carta ao Condestavel de Portugal, allude o Marquez aos talentos poeticos de seu avô e cita varias das suas composições: "E Pero Gonzales de Mendoza, meu avô, fez boas canções". Crêmos que por esta via é que o cancioneiro foi copiado para Castella, copiado dizemos nós porque se conforma com um grande cancioneiro já organisado, de que o de Roma é um apographo terciario. O Marquez de Santillana cita de memoria os principaes trovadores que vira transcriptos n'essa vasta collecção: "Havia outras (sc. canções) de Joham Soares de Paiva, o qual se diz que morrera em Galiza por amores de uma infanta de Portugal; e de outro Ferrant Gonçalves de Senabria". Pela referencia a estes dois trovadores se vê qual o estado do cancioneiro manuscripto ou volume de Cantigas de D. Mecia de Cisneros. No apographo da Vaticana se acha uma canção de João Soares de Paiva, quasi no fim da collecção, (n°. 937) ao passo que no cancioneiro que pertenceu a Colocci e de que apenas resta o indice dos trovadores (cod. vat. n°. 3217) se acha logo sob o numero 23 o nome de João Soares de Paiva com sete canções successivas. Em seguida a este trovador cita Ferrant Gonçalves de Senabria, porem no Codice de Colocci acha-se sob o numero 384 citado Gonçalves de Seaura com dez canções a seguir. Isto concorda com a phrase do Marquez, referindo-se a essas canções: "Havia outras....." O motivo d'esta referencia especial seria por ter este trovador o apellido de Gonçalves, de seu avô, e por isso ainda pertencente á sua linhagem. No Codice da Vaticana agora publicado, acha-se um fragmento de canções de Fernão Gonçalvis, e só sob o numero 338 outra canção de Fernão Gonçalves Gonçalves de Seavra, a qual corresponde segundo Monaci ao numero 737 do Codice perdido de Colocci.
Portanto, o Cancioneiro de D. Mecia de Cisneros era completo pelo que se deduz da citação d'estes dois trovadores, cujas obras se achavam antes da folha 42 do actual Codice Vaticano, na qual começa. No Cancioneiro de Colocci, em vez de cento e vinte nove canções, el-rei Dom Diniz é representado com setenta e outo; mas ainda assim era uma grande collecção para o Marquez poder dizer d'ella em relação ao volume das Cantigas uma maior parte. Em seguida a estas preciosas referencias cita tambem na sua carta Vasco Peres de Camões, poeta do Cancioneiro de Baena e contemporaneo de Pedro Gonçalves de Mendoza por cuja via seria conhecido em casa de Dona Mecia de Cisneros, e pelos eruditos que tinham o cuidado da educação do Marquez. Por ultimo, infere-se que o Codice de D. Mecia era uma copia castelhana, por que transcreve o nome de Fernão em Ferrant, e o de Seavra em Senabria, o que se não pode attribuir a vicio de ortographia do Marquez de Santillana. Estes topicos bastam para considerar a copia de D. Mecia mais proxima do texto autographo do que a da Vaticana.
Notas
[editar]- ↑ Obras del Marquez de Santillana, p. XX.
O illustre editor Ernesto Monaci ao estudar o manuscripto do Cancioneiro da Bibliotheca do Vaticano, n°. 4803, pelas referencias do texto e paginação de um outro codice ali intercalladas, reconheceu que deveriam ter existido duas fontes para este apographo. Nas suas investigações na opulenta Bibliotheca do Vaticano teve a felicidade de descobrir o Catalogo dos Trovadores portuguezes no manuscripto 3217, o qual combina na maior parte com o dos Trovadores do Cancioneiro n°. 4803, sendo as emendas d'este ultimo codice da mesma letra do indice escripto pelo philologo Angelo Colocci, erudito italiano do seculo XVI. É certo que o Cancioneiro da Vaticana pertenceu primeiramente a Colocci antes de vir a ser propriedade da Bibliotheca vaticana; Colocci era um d'esses distinctos eruditos italianos do fim do seculo XV, que colligiram manuscriptos de todos os paizes e cuja opulencia se distinguia pela formação de ricas livrarias, taes como Leão X, Bembo, Orsini, e outros tantos. Colocci morreu em 1549, tendo a sua livraria soffrido bastante no saque de Roma pelo Condestavel de Bourbon em 1527. Por tanto, entre estas duas datas é que se teria perdido esse grande cancioneiro, do qual apenas resta o Catalogo dos Autores portuguezes, e que a Bibliotheca do Vaticano adquirira o cancioneiro n°. 4803, apographo de um outro perdido, mas emendado pela mão de Colocci sobre o exemplar hoje representado unicamente pelo indice.
Antes de examinar qual a riqueza da Livraria de Colocci em manuscriptos portuguezes, surge a questão mais difficil de resolver: Como vieram estes varios cancioneiros portuguezes para as Livrarias italianas?
Sabe-se que os pontifices mais instruidos mandavam procurar em todos os paizes os mais preciosos manuscriptos; de Leão X escreve Ginguené: "Não poupava despezas nem rodeios junto das potencias estrangeiras para fazer procurar nos paizes mais remotos e até nos estados do norte livros antigos ainda ineditos."[1] O modo como estes rodeios eram efficazes, explica-se pela prohibição de certos livros e pela instituição da censura, que já no século XV se exercia em Hespanha e em Portugal, como vêmos pelo Leal Conselheiro de El-rei D. Duarte. Os livros eram entregues á auctoridade ecclesiastica para serem examinados, e sob qualquer pretexto de escrupulo não eram mais restituidos. Basta vêr a quantidade de canções obscenas e irreligiosas que o Cancioneiro portuguez da Vaticana encerra para se conhecer como veiu a caír na mão da auctoridade ecclesiastica e como sob ordem superior esse livro antigo ainda inedito foi remettido para Roma. Alem d'isto, a paixão pela Renascença da antiguidade, que começou no seculo XV, fez com que nos diversos paizes decaísse repentinamente o amor pelos seu monumentos nacionaes. D'esta falta de amor pelo proprio passado proveiu para Portugal a perda de muitos manuscriptos, como o da novella Amadis de Gaula, de muitos cancioneiros manuaes, como relata Faria e Sousa, pelo que dizia o Dr. João de Barros no principio do seculo XVI, que estas cousas se secavam nas nossas mãos. D'esta falta de estima pelos monumentos nacionaes, veiu o dispersarem-se pelas bibliothecas da Europa muitos thezouros da nossa litteratura, como se prova pela existencia da Demanda do santo Greal na bibliotheca de Vienna, dos livros de Valentim Fernandes na bibliotheca de Munich, do Leal Conselheiro de D. Duarte, Chronica de Guivé de Azurara, e Historia geral de Hespanha na bibliotheca de Paris, do Roteiro de D. João de Castro no Museu britanico, e do Cancioneiro do Conde de Marialva, da Satyra de infelice vida do Condestavel de Portugal em Madrid. A saida do grande Cancioneiro de Portugal pertence a esta forte corrente de dispersão. No fim do seculo XV alguns portuguezes eruditos se distinguiam na Europa pelas suas riquezas litterarias; em uma Memória sobre as relações que existiam antigamente entre os flamengos de Flandres, especialmente os de Bruges e os Portuguezes, cita-se: "João Vasques, natural de Portugal, mordomo de D. Isabel de Portugal, Duqueza de Borgonha: — Vasques possuía uma Bibliotheca, ou pelo menos diversos manuscriptos de valor."[2] Entre esses livros figuravam Histoire de Troie la grant, e alguns tinham as armas de Portugal na encadernação, como o velino Horae beatae Mariae Virginis. Tambem no seculo XV figuravam no estrangeiro os eruditos Diogo Affonso de Mangaancha, Vasco Fernandes de Lucena, Achilles Estaço, e outros muitos amadores bibliophilos. Cuidava-se em comprar livros impressos, por meio das Feitorias portuguezas, mas os manuscriptos sobre tudo os da litteratura medieval perdiam-se com a mais censuravel incuria. Sabe-se por uma carta de João Rodrigues de Sá dirigida a Damião de Goes, que el-rei D. Affonso V mandou vir de Italia Frei Justo, a quem fez bispo de Ceuta, com o fim de escrever em latim a historia dos antigos reis de Portugal, e que todos os documentos que lhe foram entregues se perderam na sua mão, por ter repentinamente fallecido da peste. É natural que estes subsidios historicos constassem tambem de varios cancioneiros, por que a poesia fôra um facto importante nas côrtes de D. Affonso III, D. Diniz e D. Affonso IV; alem d'isso o espolio d'este bispo italiano seria arrecadado pela auctoridade ecclesiastica e remettido para Roma. Por todos estes factos parece justificar-se a hypothese de existir na bibliotheca do Vaticano, antes do saque de Roma em 1527, um d'esses cancioneiros portuguezes, e que d'aí se dispersaram por essa causa: "A bibliotheca do Vaticano, tão liberalmente enriquecida por Leão X, foi saqueada; os livros mais preciosos foram preza de um furor ignorante e barbaro, como os da bibliotheca dos Medicis em Florença."[3] Pelo codice 4803, publicado por Monaci, se vê que este Cancioneiro foi copiado de um outro cancioneiro ja bastante truncado, como observou o critico editor pelas siglas antigas: "Manca da fol. II infino a fol. 43"; e na pagina 10: "Fol. 97 desunt multa"; e pela ultima pagina, na qual se vê que ficou interrompida a copia.
Alem d'esta deducção, tira-se uma outra, isto é, que o Codice 4803 foi comparado por Colocci com um outro mais rico e completo do qual só resta agora o catalogo dos trovadores. Os biographos de Colocci tambem consignam o facto de parte da sua opulenta bibliotheca ter sido destruida no saque de Roma, em 1527. Este philologo italiano possuia um decidido gosto pela poesia vulgar italiana, e conhecia a importancia do estudo das litteraturas novolatinas, como se vê pelo interesse com que procurava as Canções de Foulques de Marseille, e pela posse de varios codices com os titulos Libro spagnolo di Romanze, e De varie Romanze volgare, por ventura alguns d'elles provenientes da acquisição de manuscriptos das collecções de Bembo e de Orsini; seria algum d'estes livros o Cancioneiro da Vaticana, ou esse outro cancioneiro de que apenas resta o catalogo dos auctores. N'este catalogo precioso descoberto por Monaci, sob o numero 44 — Bonifaz de Jenoa segue-se esta referencia a manuscriptos de Bembo: "vide bembo Ms. bonifazio Calvo de Genoa." E sob o numero 456 — il Rey don Affonso de Leon, segue-se esta nota: "bembo, dice di Ragona, figlio di Berenghieri." A variante do Codice de Bembo di Ragona seria d'Aragone em vez de Leon, isto é, um dos codices parciaes d' onde se formou o grande cancioneiro parece fixar-se por esta circumstancia. Sob este mesmo numero segue-se: "Alia lectio i Portugal, rey Don Sancho deponit." Quer esta observação de Colocci significar, que este rei D. Affonso em outro codice é citado como rey de Portugal, o que depoz D. Sancho, facto que caracterisa el-rei Dom Affonso III, que depoz seu irmão D. Sancho II. N'este caso este monarcha tambem fôra trovador, o Colocci possuia algum cancioneiro parcial. No mesmo Indice dos Trovadores, sob o numero 467 onde se continha as canções de El-rei Dom Affonso rei de Castella e de Leão, accrescenta-se: "vide nel mio lemosino", no qual se attribuem as mesmas cantigas de preferencia ao rei de Leão, isto é, em harmonia com o titulo di Ragona, do numero 456. Em uma outra nota que o illustre Monaci achou no Codice n°. 4817, de letra d'este erudito, se acha a seguinte referencia a um codice portuguez: "Messer Octaviano di messer barbarino, ha il libro di portoghesi, quel da Ribera l'ha lassato." Sabendo-se pela bibliographia, que o manuscripto da Menina e Moça de Bernardim Ribeiro, foi na primeira metade do seculo XVI levado para a Italia, imprimindo-se em Ferrara em 1544, cinco annos antes da morte de Colocci, parece que a phrase quel (libro) da Ribera se refere a esta novella portugueza. Seria por este tempo que o cancioneiro portuguez se tornou conhecido em Roma, como dá noticia Duarte Nunes de Leão, nas palavras "que em Roma se achou", mas sem dizer que já pertencia á Bibliotheca do Vaticano. A epoca em que este codice entrou n'esta rica bibliotheca pode fixar-se depois de anno de 1600, por que os livros e manuscriptos de Colocci foram adquiridos pelo erudito Fulvio Orsini, que os deixou em testamento á Vaticana.[4] Esta é a opinião de Monaci; não concordamos porém com a sua interpretação do trecho de Duarte Nunes de Leão quando este escriptor portuguez diz: "segundo vimos por um cancioneiro seu, que em Roma se achou, em tempo de el-rei Dom João III..." deduzindo que Nunes de Leão chegara a vêr esse cancioneiro; em primeiro logar, Nunes de Leão refere-se a um Cancioneiro seu, isto é unicamente de el-rei Dom Diniz, e não geral, como o de que resta noticia pelo Indice de Colocci e pelo apographo da Vaticana; isto já é uma prova da informação vaga do chronista, e alem d'isso a phrase segundo vimos, significa: como se prova, como se deduz. Nunes de Leão conhecia o codice das canções de D. Diniz que no principio de século XVII se guardava na Torre do Tombo, como elle diz: "e per outro que está na Torre do Tombo..." ou talvez pelo que pertencia aos Freires de Christo, de Thomar. Vivendo no meado do seculo XVII, já o cancioneiro grande havia sido recebido na Bibliotheca do Vaticano e poderia ter noticia da existencia do Codice; porém o chronista refere-se principalmente a um Cancioneiro de Dom Diniz, e as referencias de Sá de Miranda, de Ferreira e de Camões são unicamente aos talentos poeticos de D. Diniz. Como chegou a Portugal noticia do apparecimento em Roma? Sá de Miranda demorou-se na sua viagem á Italia, entre 1521 e 1526, e conviveu com os principaes eruditos italianos, Lactancio Tolomei e João Ruscula, e dava-se tambem por parente da casa dos Colonas; é possível que, regressando a Portugal en 1526, quando havia já cinco annos que D. João III reinava, désse a noticia da descoberta de um cancioneiro em Roma, quando visitara as principaes livrarias; o facto dos poetas da eschola italiana alludirem ao talento poetico de D. Diniz, leva a induzir esta noticia como communicada pelo que trouxe a Portugal esse novo gosto litterario.
Em 1527 foi o saque de Roma, e a livraria de Colocci tambem soffreu com essa devastação; por ventura algum dos cancioneiros acima citados se perdeu, ou foi talvez adquirido algum d'entre os livros roubados por esta occasião da Vaticana. É de presumir que o Libro di Portoghesi fosse o Cancioneiro de que só resta o Indice, e sendo assim, perder-se-hia em poder de Messer Octaviano de messer Barbarino; se o libro da Ribera é o manuscripto de Bernardim Ribeiro, impresso mais tarde em Ferrara, então pode fixar-se a perda do Cancioneiro n'esse mesmo anno em que morreu Colocci. O inventario dos seus livros, feito a 27 de Outobro de 1558, nove annos depois da sua morte, explica-nos como os livros que estavam emprestados ficaram perdidos. Pelo Indice d'este Cancioneiro, achado por Monaci, vê-se que elle constava de mil seiscentas e setenta e cinco canções, mais quatro centas e setenta, omissas no apographo da Vaticana, hoje publicado.
Notas
[editar]Desde 1847, que o brasileiro Lopes de Moura publicou em Paris um excerpto do grande Cancioneiro portuguez da Vaticana, contendo as canções de el-rei Dom Diniz. Como se veiu a conhecer a existencia d'este precioso codice em Roma? Desde o principio do seculo XVII que elle entrara na Bibliotheca do Vaticano pela doação dos livros de Fulvio Orsini; no seculo XVIII, segundo Varnhagem, era citado por um bibliophilo hespanhol junto com outros codices de poesias catalans e valencianas; o facto de existir com encadernação moderna e com a insignia papal de Pio VII (1800 — 1823) explica-se pela reparação e ao mesmo tempo pelo interesse que houve em conservar o cancioneiro formado de cadernos differentes e incompletos, e escriptos com tinta corrosiva que o pulverisa. Wolf, por intervenção do slavista Kopitar, mandou fazer as primeiras investigações no Vaticano para descobrir este codice de que tinha vago conhecimento pela vaga allusão de Nunes de Leão; foram infructuosas as tentativas; o visconde da Carreira, embaixador em Roma, avisado por um franciscano (por ventura o P. Roquete, como se sabe pelo prologo da edição de Moura) conseguiu a copia da parte publicada em Paris por Aillaud. Desde 1847 até hoje, nunca o governo portuguez, nem a Academia real das Sciencias comprehenderam o valor d'este monumento. A reproducção das nossas riquezas litterarias têm sido sempre feita por estrangeiros, e a publicação d'este importantissimo cancioneiro foi agora realisada por um rapaz desajudado de subsidios academicos, mas animado pelo amor da sciencia. A edição feita em Halle, appresenta todo o rigor diplomatico, de modo que os erros do copista italiano do seculo XVI podem restituir-se á leitura do portuguez do codice primitivo; apesar d'este subsidio, Monaci tentou com um seguro tino critico uma tabella dos principaes erros systematicos, e um indice das necessarias restituições que se podem fazer em cada canção; em fim, tudo quanto é preciso para a intelligencia do texto, existe ali. Monaci conservou a disposição do manuscripto na reproducção typographica, já a uma ou a duas columnas, com todos os vestigios das differentes numerações e siglas referentes a outros codices analogos e mais antigos. Pelo seu prologo, de uma precisão rigorosa, se vê toda a historia externa do Cancioneiro. O Codice da Vaticana está em papel de linho, com trez marcas de agua differentes, tal como se empregava nas edições do Varisco; a letra é italiana, tal como a dos documentos do fim do seculo XV e principio do seculo XVI, proveniente de dois copistas, um que escreveu as poesias, algumas rubricas e notas, outro a maior parte dos nomes, as numerações e algumas postillas, contando ao todo 210 folhas. Da descripção d'este cancioneiro conclue-se, pelo estado em que se acha, que outro ou outros cancioneiros foram n'elle copiados ou confrontados. A primeira nota que se depara ao abril-o é: "Manca da fol. IJ a fol. 43;" isto quer dizer, que o cancioneiro foi copiado de um outro codice que já se achava assim fragmentado, mas que mais tarde foi confrontado com outro que estava completo, como veremos na relação com o Indice de Colocci.
Ao começar o texto acha-se outra referencia: "A fogli 90" e segue-se a canção de Fernão Gonçalves, o que parece significar, que n'este cancioneiro existia outra disposição das poesias á qual se refere este numero, que continúa a cotar successivamente outras canções, entremeiando-se com numeros romanos, que parecem estabelecer referencia a outro cancioneiro. Separemos estas duas ordens de numeros, por onde deduzimos o confronto com dois cancioneiros; para se localisar melhor a referencia que era de folhas e verso, indicaremos a numeração actual das canções: Fol. 91 (canc. 8), 92 (canç. 11); Fol. 97 desunt multa (canç. 43 fine); junto da canção 61, vem a sigla Desunt; junto da 63 vem car. 106; junto da canção 299: "Fol. 141 Al vo" (del volumen?); junto da canção 507 vem: "173 a tergo" e algumas canções com dois nomes de auctores, como Martin Campina ou Pero Meogo, como forme a attribuição de um ou outro texto (canc. 796.). Por fim termina com esta outra rubrica: "A fol. 290 è cominciata una Rubrica e non è finita di copiare". Tudo isto prova, que se fez o confronto d'este apographo existente cum um codice mais completo, seguindo-se o confronto até á folha 300 d'esse codice perdido.
O confronto do Codice por meio da numeração romana não prosegue até ao fim; apenas se acha LXXXVJ junto da canção 4; LXXXVIIJ junto da Canção 14; LXXXVIIIJ junto da canção 26 fine; XCVJ junto da canção 39 a 45; XCVIIJ coincide com a referencia anterior, junto da canção 49; XCVIIIJ á canção 55; CXII á 62; CXIIIJ á canção 70; CXVIJ á canção 77. Esta numeração romana adianta-se aqui mais do que a arabe, signal de que havia divergencia entre os dois codices que serviam para confrontação com o apographo publicado. É certo porem, que a numeração romana termina antes do corpo das canções de el-rei Dom Diniz, d'onde se poderá inferir, que até esta parte contribuiu um cancioneiro parcial, e que de Dom Diniz só entrava no que era numerado em algarismos. Que existiam diversos cancioneiros, pelas mesmas canções d'este codice se pode conhecer, como pela canção de D. Affonso de Castella (canç. 76) em que allude ao Livro dos Sons, que era um cancioneiro com que o Dayão de Cales seduzia as mulheres. Na sua edição Monaci deixou apontados em um indice fundamental todas as canções repetidas no cancioneiro, ou aquellas que mutuamente se plagiavam. Da sua comparação se podem tirar poderosas inducções, para se estabelecer quantos pequenos cancioneiros haviam servido para formarem o cancioneiro grande, do qual o apographo publicado é uma copia. É o que vamos tentar.
Pequenos Cancioneiros que entraram na formação do Cancioneiro da Vaticano. — A canção 4, de Sancho Sanches, apparece repetida com mais duas estrophes e assignada por Pero da Ponte, sob o numero 569; a 2ª e 3ª strophes da versão de Pero da Ponte, faltam na canção de Sancho Sanches. As strophes communs têm as seguintes variantes:
- Sazom foi já, que me teve em desdem (n°. 4)
- Tal sazom foi, que me teve em desdem (nº. 569).
- Que com'é mais j'agora seu amor (n°. 4)
- Quando me mays forçava seu amor. (n°. 569).
- E ora já que pes'a mha senhor (n°. 4)
- E ora mal que pes'a mha senhor (n°. 569).
Evidentemente estas duas canções foram colligidas de dois cancioneiros parciaes, e elles mesmos escriptos em grande parte de memoria.
A canção 13, de Mem Rodrigues Tenoyro, têm apenas uma estrophe, mas repete-se sob o numero 319 com o nome do mesmo trovador e com mais duas estrophes que a completam. Deve attribuir-se essa divergencia ao ter sido colligida de dois cancioneiros, formado por diversos collecctores.
A canção 29, assignada por João de Guilhade, repete-se sob o numero 38 com o nome do trovador Stevam Froyam; existem entre ellas leves variantes, mas como estão immensamente deturpadas, só pelos dois textos se reconstruem. Por este facto se vê, que houve compilação de dois cancioneiros, e que o copista mal percebia a letra e fazia selecção das canções.
A canção 116 e 174, do cancioneiro de Dom Diniz, são uma e mesma, havendo entre estes dois numeros variantes, e sobretudo a 2ª e 3ª estrophe alternadas. Não proviria isto dos originaes, escriptos por esmerados copistas, que se guardaram na Bibliotheca de el-rei Dom Duarte; este facto prova-nos, que o corpo das canções de Dom Diniz, que na collecção Vaticana occupa dos n.'os 80 até 208 proveiu de copias avulsas de differentes palacianos, e talvez do proprio Conde D. Pedro.
A canção 241, do trovador Payo Soares, apparece com o numero 413 repetida sob o nome de Affonso Eanes de Coton (Cordu); tem apenas uma rapida variante ortographica, mas tanto o facto da repetição, como o da attribuição a dois trovadores differentes accusam duas colleções parciaes.
A canções 457 e 469 pertencem a Ayres Nunes Clerigo e são uma unica, com a differença que as trez strophes de que constam, tem os versos baralhados sem systema; o que se explica pelo caracter jogralesco, isto é, que foram duas vezes colligidas no tempo em que eram cantadas a caprixo de Ayres Nunes ou de qualquer outro jogral, que as sabia de cór; ou então, que provieram de dois cancioneiros onde as duas canções se differenciavam pela razão acima indicada.
A sirvente 472 de Martim Moxa apparece sob o numero 1036, em nome de Lourenço, jograr de Sarria, com variantes fundamentaes, que provam compilação de dois cancioneiros diversos. O caracter sirventesco fez talvez que varios jograes regeitassem a paternidade d'essa canção que verbera os privados da côrte de D. Affonso III.
O numero 613 e 639 são uma mesma canção de João Ayres, burguez de Santiago; abundam as variantes entre estas duas composições, signal de que provieram de duas copias resultantes da monomania dos cancioneiros particulares. E sob o nome d'este mesmo trovador andam as duas canções repetidas 634 e 138, tendo esta ultima alem das variantes mais uma estrophe e um Cabo.
Em nome do jogral João Servando apparecem repetidas as canções 738 e 749 com variantes fundamentaes entre si:
- Ora vou a Sam Servando,
- donas, fazer romaria,
- e nom me leixam com elas
- hir, cá logo alá hiria
- por que vem hy meu amigo. (738)
- Donas vam a Sam Servando
- muytas hoje em romaria,
- mais nom quiz oje mha madre
- que foss' eu hi este dia
- por que vem hy meu amigo. (749)
As outras variantes nas demais strophes são menos reparaveis, mas no numero 738 ha uma strophe a mais. A pequena distancia a que ficam uma da outra estas canções, provam-nos que o copista italiano transcreveu materialmente uma compilação já formada; e por tanto tudo quanto se pode concluir sobre estas canções identicas liga-se á formação d'esse cancioneiro perdido d'onde se trasladou o codice da Vaticana.
Dois casos especiaes se davam n'essa formação do antigo cancioneiro: 1° ou as canções se attribuiam na repetição a dois trovadores differentes taes como Sancho Sanches e Pero da Ponte, João de Guilhade e Stevam Froyam, Pay Soares e Affonso Eanes do Cotom, Martim Moxa e Lourenco Jograr; 2° ou se repetiam em nome do mesmo trovador, como Mem Rodrigues Tenoyro, el-rei D. Diniz, Ayres Nunes Clerigo, João Ayres, e João Servando. Para o primeiro caso conclue-se que contribuiram para a formação do grande cancioneiro pequenos cancioneiros trasladados de cantares dispersos, por curiosidade, ou tambem apanhados na corrente oral, porque um só collector notaria os plagiatos. Para o segundo caso poderiam os jograes terem contribuido com os seus cadernos de cantos e assim com lições differentes de um mesmo texto que se alterava pelas continuadas repetições.
De todo este confronto se conhece a necessidade de estabelecer por todos os meios possiveis ás relações entre este apographo da Vaticana e os dois cancioneiros de Colocci, perdido, e o da Ajuda.
Relações do Cancioneiro da Vaticana com o Cancioneiro de Angelo Colocci. — Antes de Monaci haver descoberto no Ms. n°. 3217 o Indice do Cancioneiro perdido do erudito quinhentista italiano Angelo Colocci, ja elle determinara pela forma por que está escripto o Cancioneiro da Vaticana, que deveria ter existido um original mais antigo e mais completo. A descoberta do Indice veiu authenticar a existencia d'esse Cancioneiro perdido e explicar pela letra do proprio Colocci, quem é que tinha feito o confronto. O illustre Monaci comprehendeu logo quanto util seria para a critica o comparar a lista dos trovadores do Cancioneiro perdido com a dos trovadores do Cancioneiro existente (Appendice I, p. XIX a XXIV); por uma simples inspecção fica o leitor habilitado a conhecer as profundas relações entre os dois cancioneiros; o de Colocci continha mil seis centas e setenta e cinco canções, e o da Vaticana contem mil duzentas e cinco, isto é, quatrocentas e setenta canções a menos, por ventura as que occupavam até a fol. 90. O numero das canções de cada trovador pode tambem ser confrontado, porque no Codice de Colocci as canções de Colocci eram numeradas por algarismos e cada nome de trovador é precedido pelo numero que limita as canções do antecedente. Assim, como já acima vimos, as canções de D. Diniz são no Codice da Vaticana cincoenta e uma a mais do que no de Colocci. Apezar d'isso as notas desunt multa provam-nos que o Cancioneiro de Colocci era muito mais rico, como se vê pelos nomes dos seguintes trovadores que faltam no da Vaticana:
Diego Moniz, que tinha ali uma canção; Pero Paes Bazoco, com sete canções; João Velaz, Dom Juano; Pero Rodrigues de Palmeyra; Dom Rodrigo Dias dos Conveyros; Ayres Soares; Osorio Annes; Nuno Fernandes de Mira-Peixe; Fernam Figueiredo de Lemos; Dom Gil Sanches; Ruy Gomes o Freyre; João Soares Fomesso; Nuno Eanes Cerzeo; Pero Velho de Taveirós; Pay Soares de Taveirós; Fernam Garcia Esgaravunha, do qual existiam dezessete canções; João Coelho; Pero Montaldo; duas canções do trovador genovez Bonifacio Calvo; o Conde D. Gonçalo Garcia; Dom Garcia Mendes de Eixo; El rei Dom Affonso IV, filho de el-rei D. Diniz, com quatro canções. No Codice de Colocci, as canções de D. Diniz não estavam em um corpo isolado, apresentando mais quatro composições destacadas no fim do cancioneiro. Esta parte tambem é omissa no Cancioneiro da Vaticana, por que aí se encontram outra vez trovadores dos supracitados, como João Garcia, D. Fernam Garcia Esgaravunha, Pero Mastaldo, Gil Peres Conde, Dom Ruy Gomes de Briteiros, Fernam Soares de Quiñones, etc. Pelo confronto do Indice de Colocci se conhece, que embora se sigam ao texto do Cancioneiro da Vaticana quatorze folhas em branco, nem por isso ficou muito distante do fim, por que só deixaram de ser copiadas algumas sirventes de Julião Bolseyro. D' este confronto se conclue: 1°. que o codice d'onde se extraíu a copia da Vaticana differia no numero das canções e na sua disposição do de Colocci; 2º. que as relações mutuas accusam fontes communs, mas colleccionação arbitraria no agrupamento dos differentes cancioneiros parciaes.
Relações do Cancioneiro da Vaticana com o Cancioneiro da Ajuda. — Lopes de Moura foi o primeiro que encontrou na collecção da Vaticana a canção de João Vasques, Muyt'ando triste no meu coraçom, que existe anonyma no Cancioneiro da Ajuda. Logo depois, Varnhagem achou mais quarenta e nove canções communs aos dois codices, e nós mesmo ainda viemos a encontrar mais seis canções repetidas. São ao todo cincoenta e seis canções communs, facto importante para estabelecer as relações, que existiram entre os dois cancioneiros. Em primeiro logar, o Cancioneiro da Vaticana foi já copiado de um codice truncado, como por exemplo: a canção 43 tem a rubrica final: "Fol.97 desunt multa" e a canção seguinte está truncada no principio; porem estas canções de João Vasques completam-se pelo Cancioneiro da Ajuda, canção n°. 272 e 273 (ed. Trovas e Cantares). Isto prova, que embora o Cancioneiro da Ajuda esteja truncado e por seu turno se complete com algumas canções do codice de Roma (y, das Trovas == n°. 38, Canc. da Vat.) ambos provieram de fontes differentes, porque tambem nas cincoenta e seis canções communs existem notaveis variantes:
- Nostro senhor, que lhe bom prez foi dar. (Vatic.)
- Deus que lhe mui bom parecer foi dar. (Ajuda)
N'esta variante o original do codice vaticano mostra-se mais archaico na linguagem. Na canção 46, de Fernão Velho (no codice da Ajuda, n°. 92) no primeiro verso da 2ª strophe vem uma variante que denota erro do copista portuguez conservado inconscientemente pelo antigo copista italiano:
- E mha senhor fremosa de bom parecer (Vatic.)
- E mia senhor fremosa de bom prez. (Ajud.)
Prez é uma contracção de preço, e d'aqui resultou que o copista portuguez traduziu inconscientemente; como organisado no paço, o Cancioneiro da Ajuda seria formado directamente da contribuição dos muitos trovadores que o frequentavam; o Cancioneiro de Roma era já derivado de um apographo secundario, truncado no principio, meio e fim, e em certos pontos mais archaico.
Na canção 47 da Vaticana (93 da Ajuda) pertencente a Fernão Velho, vem:
- Quant' eu, mha senhor, de vós receei... (Vatic.)
- Quant' eu de vós, mia senhor receei (Ajud.)
- E vos dix'o mui grand'amor que ei (Vatic.)
- E vos dix'o grande amor que vós ei (Ajud.)
A canção 48 da Vaticana, apesar das imperfeições da copia italiana, pode ser reconstruida pelo typo strophico, porem a nº. 94 da Ajuda ficou incompleta:
Lição da Ajuda: | Lição da Vaticana: |
E mal dia naci, senhor, |
E mal dia naci, senhor, |
A canção 53 da Vaticana (Ajuda, nº. 99), tem uma strophe mais imperfeita do que no codice da Ajuda; mas en compensação tem o Cabo, que falta no codice portuguez:
Ajuda: | Vaticana: |
Meus amigos, muito me praz.... |
Meus amigos muyto mi praz d'amor. |
A canção 395, de Payo Gomes Charrinho, repetida no cancioneiro da Ajuda, n°. 276, tambem revela duas fontes diversas:
- e nom lh'ousey mays d'atanto dizer (Vatic.)
- e nom lh'ousey mais d'aquesto dizer. (Ajud.)
- nem er cuidey que tam bem parecia (Vatic.)
- nem cuidava que tambem parecia (Ajud.)
- mays quand'eu vi o seu bom parecer (Vatic.)
- mais u eu vi o seu bom parecer. (Ajud.)
No codice da Vaticana tem esta canção apenas trez estrophes; porem no da Ajuda termina com uma quarta:
- E por esto bem consellaria
- quantos oyrem-no seu bem falar
- nom a vejam, e podem-se guardar
- melhor ca m'end'eu guardei, que morria,
- e dixe mal, mais fez-me deus aver
- tal ventura, quando a fui veer
- que nunca dix'o que dizer queria. (Ajuda)
Evidentemente as alterações de linguagem não foram do copista italiano, porque, comparativamente, a expletiva er é mais archaica; e por tanto a omissão da 4ª strophe não foi casual, mas resultante do estado d'outra fonte.
A canção 400, da Vaticana, tambem de Payo Gomes Charrinho, tem leves variantes na canção 278 da Ajuda, mas importantissimas omissões; assim no Codice de Roma, falta na primeira strophe o verso:
- me quer matar e guaria melhor (Vat.)
e tambem faltam duas strophes completas com o seu Cabo.
A canção 428, ainda de Charrinho, tambem no Codice da Ajuda, n°. 285 offerece leves variantes; porem no Codice da Vaticana alternam-se a segunda com a terceira strophe, e falta este Cabo da lição da Ajuda:
- E entend'eu cá me quer a tal bem
- em que nom perde, nem gaano en rem.
A canções 485, 486 e 487 da Vaticana, do trovador Ruy Fernandes, acham-se nos pequenos fragmentos legiveis nas folhas do Cancioneiro da Ajuda, que serviram de guardas á encadernação do Nobiliario; esses fragmentos, seguindo a edição do Varnhagem são m, n, o; ainda assim se conhece por elles que existiam divergencias entre os dois codices:
Ajuda, (m): | Vaticana, n°. 485: |
A guisa de vos elevar |
a forza de vos elevar |
As canções de Fernão Padrom, n'os. 563, 564, 565, a que achámos as analogas nos numeros 126, 127 e 128 do codice da Ajuda, tambem apresentam variantes.
As canções n°. 566, 567, 568, 569 e 570, que andam em nome de Pero da Ponte no codice da Vaticana e apparecem anonymas no Cancioneiro da Ajuda, n'os. 112, 113, 114, 115 e 116 não appresentam mais variantes que a simples modificação ortographica em mha e mia, que poderia provir das differentes epocas das copias. Esta conformidade entre o texto da Vaticana e o da Ajuda, leva-nos a concluir que pequenos cancioneiros entraram na coordenação de um grande cancioneiro, e que as canções mais conformes são aquellas que andaram em menor numero de copias antes de se agruparem na collecção geral.
Já com relação ás Canções de Vasco Rodrigues de Calvelo, apparecem variantes e deturpações que não provêm do copista do seculo XVI, mas de codices diversos ja corruptos; a canção 580 comparada com a 265 da Ajuda tem uma lição menos pura, incompleta, mas differente:
Lição da Ajuda: | Lição da Vaticana: |
Per uma dona que quero gram bem |
..... que quero gram bem. |
A lição da Ajuda termina com este Cabo, que falta no codice da Vaticana:
- Com'a mim fez, e nunca me quiz dar
- Bem d'essa dona, que me fez amar.
A canção 581, tambem de Vasco Rodrigues de Calvelo, sob a designação e da lição da Ajuda (ed. Trov. e Cant.) alem das mutuas variantes, tem a 2ª e 3ª a strophes alternadas:
- E se soubess'em qual coyta d'amor (Vatic.)
- Se lh'eu dissess'em qual coita d'amor (Ajud.)
- per nulha guisa, pero m'ey sabor (Vatic.)
- Per nulha guisa, ca ey gram pavor. (Ajud.)
- De mais no Codice de Roma falta este Cabo:
Mais de tod'esto nora lhi dig'eu rem, Nem lh'o direy, cá lhe pesará bem.
Na Canção 582, do mesmo trovador, ha esta divergencia:
- E rogo sempre por mha morte a deus (Vatic.)
- Et rogo muito por mia morte a deus (Ajud.)
Na Canção 584, tambem de Calvelos, falta esta terceira estrophe, que vem no codice da Ajuda:
- Como vós quiserdes será
- De me fazerdes mal e bem
- E pois é tod'em vosso sen
- Fazed'o que quizerdes já...
A canção 677, de Pero de Armêa, acha-se imitada no codice da Ajuda, nº. 56, por forma que a da Vaticana apresenta um caracter de maior vulgarisação, e por isso de proveniencia jogralesca:
Lição da Ajuda: | Lição da Vaticana: |
Muitos me veem preguntar, |
Muytos me veem preguntar, |
Duas canções de Pedro Solás, confrontadas com as do codice da Ajuda, acabam de separar definitivamente estes dois cancioneiros:
Lição da Ajuda (nº. 123): | Lição da Vaticana (nº. 824): |
Nom est a de Nogueira Se eu a freira visse o dia |
E nom est a de Nogueira E se eu aquella freyra |
Estas duas variantes são elaborações differentes do mesmo trovador em epocas diversas, e por tanto os dois cancioneiros provêm effectivamente de duas fontes. A canção 825 da Vaticana, que se acha sob o numero 124 do Codice da Ajuda, apenas tem a terceira e quarta estrophes alternadas. O ultimo paradigma entre estes dois cancioneiros, apresenta uma composição (1061 da Vaticana, 253 da Ajuda) que pertence a João de Gaya, escudeiro da côrte de D. Affonso IV, por onde se fixa não só a epoca da colleccionação do codice de Lisboa, mas em que a fonte do Codice de Roma nos apparece mais completa:
Lição da Ajuda: | Lição da Vaticana: |
Conselho, e quer-se matar |
Conselho e quer-me matar. |
Conselho, e quer-se matar Conselho e quer-me matar. E assi me tormenta amor de tal coyta, que nunca par ouv'outr'ome, a meu cuydar, assy morrerey pecador, e, senhor, muyto me praz en que prazer tomades por en non no dev'eu arrecear.
E bem o podedes fazer E bem o devedes saber, etc.
Por todos estes factos se vê, que umas vezes o Codice de Roma é omisso com relação ao de Lisboa, o que se poderia impensadamente attribuir a incuria do copista; esta hypothese não pode ter logar, porque o Cancioneiro da Ajuda por muitissimas vezes apresenta eguaes omissões. Por tanto essas cincoenta e seis canções communs aos dois codices, entraram n'essas respectivas collecções provindo de codices parciaes e de differente epoca.
Relações do Cancioneiro da Vaticana com o apographo actualmente possuido por um Grande de Hespanha. — No Cancioneirinho de Trovas antigas, Varnhagem dá noticia no prologo, de ter encontrado em 1857 na Livraria de um fidalgo hespanhol um antigo cancioneiro portuguez, que, pela canções de el-rei D. Diniz que elle continha, lhe suscitou o procurar as analogias que teria com o Cancioneiro da Vaticana n°. 4803; tirou copia do citado Cancioneiro, e em 1858 procedeu em Roma ao confronto do codice madrileno com o da Vaticana. Começavam ambas as copias com a trova de Fernão Gonçalves, seguindo-se-lhe as duas canções de Pero Barroso; ambos os codices combinam nos mesmos nomes de trovadores, na ordem das canções, e em geral nos erros dos copistas. Poder-se-ha concluir que estes dois apographos se derivam ambos do mesmo original? Não; apezar de Varnhagem não ser mais explicito na descripção do codice madrileno e guardar no mysterio o nome do possuidor, comtudo pelas cincoenta composições do Cancioneirinho se descobrem profundas variantes, que se não podem attribuir a erro de leitura, ainda assim tão frequente em Varnhagem.
Copiamos aqui essas variantes, para que se conclua pela existencia de um outro codice mais antigo, tambem perdido. Na canção II, a strophe 3ª (Cancioneirinho) acha-se assim:
- Os cavalleiros e cidadãos
- d'aqueste rey aviam dizer
- e se deviam com sas mãos poer
- outrosi donas e escudeiros
- que perderam a tam bem senhor
- de quem poss'eu dizer, sem pavor,
- que não ficou dal nos christãos.
Pelo codice de Roma vê-se a strophe construida da outro modo:
- Os cavalleiros e cidadãos
- que d' este rey aviam dinheiros
- e outrosi donas e escudeiros,
- matar se deviam por sas mãos ... (Canç. n°. 708.)
Na canção VI, a strophe segunda e terceira (Cancioneirinho) estão incompletas e interpolladas d'esta forma:
Cancioneirinho: | Codice da Vaticana: |
E as aves que voavam |
E as aves que voavam |
(Canc. nº. 554.)
Pela lição da Vaticana, onde se vêem as duas strophes completas se infere que o defeito no Cancioneirinho provem de um texto imperfeito e differente, porventura tirado do apographo hespanhol.
Na canção XV (Cancioneirinho) vem uma strophe imperfeita, porque é formada com duas, que lhe alteram o typo:
Cancioneirinho: | Codice da Vaticana: |
E foi-las aguardar |
E fui-las aguardar |
A canção XVII do Cancioneirinho tem só trez strophes; na lição do Codice da Vaticana, ha mais esta:
- Estas doas mui belas
- el m'as deu, ay donzelas,
- nom vol-as negarey;
- mas cintas das fivelas
- eu nom as cingirei.
Com certeza esta deficiencia proveiu do apographo madrileno. Na canção XXI, a strophe 4ª está interpollada, e segundo a lição da Vaticana é que se conhece a proveniencia de outro codice:
Cancioneirinho: | Codice da Vaticana: |
Cá novas me disserom |
Ca novas me disserom |
Os versos sublinhados do Cancioneirinho, são visivelmente d'outra canção, porque tem outro typo strophico, e essa interpolação não se pode attribuir a erro de leitura de Varnhagem.
Na canção XXV, ha uma 4ª strophe, que é repetição da 1ª; na lição da Vaticana não existe esta forma; evidentemente o editor do Cancioneirinho seguiu aqui o codice madrileno.
Na canção XLV falta esta strophe, que pela lição do texto da Vaticana se vê que é a segunda:
- Nom ja em al d'esto som sabedor
- de m'algum tempo quizera leixar
- e leix'e juro nom a ir matar
- mays poys la matam, serey sofredor
- sempre de coyt'em quant'eu viver,
- cá sol y cuido no seu parecer
- ey muyto mais d'outra rem desejar.
Na canção XLVI, falta esta 4ª strophe da lição da Vaticana:
- Por en na sazom em que m'eu queixey
- a deus, hu perdi quanto desejei
- oy mais poss'en coraçom deus loar;
- e por que me poz em tal cobro que ey
- por senhor a melhor de quantas sey
- eu, que poz tanto bem que nom ha par.
A canção XLVIII encerra a prova definitiva de que o codice madrileno serviu de base da edição do Cancioneirinho, e que esse codice proveiu de uma fonte diversa do da Vaticana; aí se acham essas duas strophes, que faltam no codice de Roma:
- O que se foi comendo dos murtinhos
- E a sa terra foi bever os vinhos,
- Nom vem al Maio.
- O que da guerra se foi com espanto
- E a sa terra se foi armar manto
- Nom vem al Maio.
Por outro lado no codice madrileno tambem faltam cinco strophes, por que são omissas no Cancioneirinho:
- O que da guerra se foi com'emigo
- pero nom veo quand'a preyto sigo
- nom vem al Maio.
- O que tragia o pendou a aquilom
- e vendid'é sempr'a traiçom
- nom vem al Maio.
- O que tragia o pendou sen oyto,
- e a sa gente nom dava pam coyto,
- nom vem al Maio.
E no final da canção:
- O que tragia pendom de cadarço
- macar nom veo no mez de Março,
- nom vem al Maio.
- O que da guerra foy por recaùdo
- macar em Burgos fez pintar escudo,
- nom vem al Maio.
Indubitavelmente o codice madrileno provém de uma outra fonte, por que tem omissões e accrescentamentos, que o differenciam do Codice da Vaticana; mas a ordem das canções e os nomes dos trovadores, communs aos dois, provam-nos que ambos foram copiados de cancioneiros já organisados dos quaes um era já apographo. A circumstancia de começarem ambos pela trova de Fernão Gonçalves, e de se lêr no codice do Roma a nota: "Manca da fol. ij in fino a fol. 43" provam-nos que o original primitivo já andava truncado e é isto o que dá a mais alta importancia ao Indice de Colocci do Cancioneiro perdido que era a cópia mais antiga, por que o monumento diplomatico estava ainda completo. Monaci não desconheceu o valor das variantes do Cancioneirinho.
Depois de toda esta discussão sobre os diminutos vestigios que restam de alguns cancioneiros portuguezes dos seculos XIII e XIV, a aproximação de numerosos factos secundarios, e as inducções que se formam sobre elles, exigem uma recapitulação clara para que se possam tirar a limpo algumas conclusões geraes. Representamos os cancioneiros que são conhecidos por letras maiusculas, e aquelles cuja existencia se pode inferir pelas variantes são notados por letras minusculas; com estes signaes formaremos uma tentativa de filiação de todos esses cancioneiros em um schema, que poderá, ser modificado á medida que se descobrirem novos subsidios:
A.] O Livro das Cantigas do Conde de Barcellos, — citado no seu testamento, e deixado a Affonso XI, tambem trovador. Tendo em vista o genio compilador do Conde e o andar ligado ao seu Nobiliario o Codice da Ajuda, cancioneiro de varios auctores, pode-se inferir que o Livro das Cantigas não era exclusivamente do Conde, mas sim uma compilação sua. No Cancioneiro da Vaticana encontram-se canções do Conde, de Affonso XI e grupos de canções do Codice da Ajuda em numero de cincoenta e seis assignadas por fidalgos da côrte de D. Diniz.
B.] O Cancioneiro de D. Diniz (Livro das Trovas de Elrei Dom Diniz; existiu separado em volume pelo que se sabe pelo Catalogo dos Livros de Uso de el-rei Dom Duarte. Foi encorporado no codice da Vaticana depois da canção 79. B¹.] Outro, dos Freires de Christo de Thomar.
C.] O Cancioneiro da Ajuda, começa em folhas 41, a parte anterior está perdida e o final não chegou a ser terminado. Isto explica as pequenas relações com o Codice de Roma. — As 24 canções achadas na Bibliotheca de Evora e as guardas da encadernação do Nobiliario provam o muito que se perdeu d'este cancioneiro. Não se chegou a escrever a musica das canções, nem a inscrever-lhes os nomes dos auctores que as assignavam, e por isso conclue-se que não chegou a servir para a collecção de Roma, que é assignada. Não chegaram a entrar n'elle canções de el-rei D. Diniz, e portanto entre este e o Cancioneiro de Roma pode fixar-se a existencia de outro cancioneiro hoje desconhecido.
D.] O Cancioneiro de D. Mecia de Cisneros, grande volume de cantigas visto pelo Marquez de Santillana, que o descreve; já continha o cancioneiro de D. Diniz, e os trovadores do Codice de Roma citados pelo Marquez. Seria a primeira compilação geral, feita mesmo em Hespanha?
E.] O apographo de Colocci, perdido talvez pela occasião do saque de Roma em 1527, e do qual só se conserva o Indice dos Autores. Tinha intimas relações com o codice de D. Mecia. No principio apresentava varios lais no gosto bretão e pelos Nobiliarios, vemos que o Conde Dom Pedro se refere ás tradições bretãs, e tambem el-rei Dom Diniz. Seria esta parte assimilada do Livro das Cantigas do Conde de Barcellos?
F.] Cancioneiro da Vaticana, nº. 4803; este é menos completo do que o antecedente, o que prova que foi copiado de outra fonte. Colocci por sua letra o emendou pelo codice hoje perdido. Tem este cancioneiro 56 canções similhantes no Cancioneiro da Ajuda, com variantes notaveis, signal que ambos os Codices se derivam de duas fontes diversas. Tem uma parte relativa a successos da côrte de Dom Affonso IV, que provem de cancioneiros extranhos e posteriores ao Cancioneiro da Ajuda. A ordem dos trovadores não é a mesma do Indice de Colocci.
G.] Copia ms. de um Grande de Hespanha. — Em cincoenta canções reproduzidas por Varnhagem acham-se variantes fundamentaes com relações á lição do codice de Roma, signal de que a copia alludida provém de uma fonte extranha e de epoca differente.
Os cancioneiros desconhecidos, mas intermediarios aos supracitados são hypotheticamente:
a, b.] Cancioneiros anteriores ás collecções da côrte de D. Diniz, com que se formou e, d'onde se trasladou o Cancioneiro da Ajuda, como se justifica pelas variantes dos 56 canções reproduzidas no de Roma.
c.] Cancioneiro perdido, d'onde se não chegou a copiar nem a musica das canções nem o nome dos trovadores para o Cancioneiro da Ajuda.
d.] Cancioneiro onde se encorporaram o Livro das Cantigas e Cancioneiro de D. Diniz, o que justifica as differenças entre o Codice de Dona Mecia e o de Colocci.
e.] Cancioneiro perdido, cuja existencia se induz das variantes entre o Cancioneiro da Vaticana, o de Colocci e o do grande de Hespanha.
Eis por tanto a nossa tentativa de schema de filiação dos cancioneiros portuguezes dos seculos XIII e XIV:
a b \-------/ c C ABB¹ \---------/ D d /---------\ E e \-/ G F
É provavel que esta connexão ache contradictores, porém aí ficam todos os elementos que pudemos agrupar, para que outros estabeleçam uma filiação mais verosímil. Só depois de estudada a historia externa do Cancioneiro da Vaticana é que se pode entrar com desassombro no desenho da grande epoca litteraria que elle representa. Bem o desejaramos fazel-o diante dos que estudam as producções do fim da edade media, para reconstruirmos de novo o livro dos Trovadores galecio-portugueses, escripto antes da posse de tamanhas riquezas. Á medida que em Portugal fôr renascendo o amor pela tradição nacional, o nome de Ernesto Monaci figurará como de um benemerito, que restituiu a este paiz um dos mais bellos monumentos do seu passado historico.