As Minas de Prata/I/XII
O burburinho de festa, que enchia o Terreiro do Colégio, e o entusiasmo da população baiana iam quebrar-se de encontro à mudez austera e sombrio aspecto do Convento dos Jesuítas.
Grave e silencioso, como o espírito que o dominava, o vasto edifício quedava no meio da alegria e contentamento, que fizera sorrir todas as habitações vizinhas, guarnecidas de colchas e alcatifas. Assim grave e recolhido, se julgaria estranho ao espetáculo representado em face dele.
Tal não era: por detrás da grade que vestia uma das janelas, dois frades, enfiando os olhos pelas frestas, seguiam desde o começo os incidentes do festejo, praticando em voz baixa, para não perturbarem o provincial e o licenciado Vaz Caminha, que continuavam a partida de xadrez, valentemente disputada de parte a parte.
— V. Paternidade conhece sem dúvida aquela donzela com quem fala o governador neste momento? perguntou o P. Molina.
— É D. Inês, filha de D. Francisco de Aguilar, um dos mais ricos senhores de engenho da Bahia.
— Quem é o confessor da casa?
— Fr. Carlos da Luz, do Patriarca São Bento.
— Como! Deixaram que nos preterissem?
— Não ignora V. Paternidade, que os senhores de engenho nos são adversos, por causa do negócio da servidão dos índios.
— Embora! Há sempre meios de insinuar-se. E tenho para mim como um grande erro que cometeram, abandonarem a outros a direção da consciência daquela menina.
— Por que motivo assim pensa o P. Molina?
— Li algures, P. Inácio, que as mulheres governam metade dos homens; e essa metade governa a outra. Quem tivesse o poder de dirigir a consciência desse ente frágil, dominaria o mundo!
— É possível que tenha razão!
— Diga-me; essa menina já não tem mãe?
— Tem-na; porém enferma de uma paralisia.
— É filha única?
— Não; ali está o irmão, D. José de Aguilar; é o segundo cavaleiro de escarlate.
— Vejo! A casta de homem que é esse D. José?
— Dizem ser dado ao jogo e perdulário. Segue a milícia; é alferes do piquete do governador.
— Despachado por D. Diogo de Menezes?
— Pelo próprio.
— Ah! murmurou o P. Molina.
— De que se admira?
— De coisa alguma. Repare o P. Inácio quanto o governador se enleva com a prática daquela menina.
— Quase não dá atenção ao mais.
— Quer saber V. Paternidade o que me está passando pela ideia?
— Diga o P. Molina. De tão agudo engenho nunca serão demais os avisos.
— V. Paternidade me acanha... É bondade extrema para o mínimo dos servos de Cristo. O que disse não passa de humilde reparo.
— Não é razão para privar-me dele.
— Ora pense o P. Inácio... Não seria bem possível que a mão frágil de uma donzela quebrasse a soberbia do governador poderoso, que pretendem ser de tão rija têmpera? Tem-se visto destes milagres. Davi matou Golias, e bastou para tanto uma pequena pedra.
— Faz mau juízo de D. Inês o P. Molina: é donzela de muito recato que estimam quantos a conhecem pelas prendas e virtudes.
— Nem digo o contrário; mas o P. Inácio há de concordar comigo que no fundo do coração da mulher mais virtuosa, lá existe um átomo de vaidade, como brasa em borralho. Um sopro, e verão a chama atear-se.
— Quer com isto dizer que a julga capaz de galanteios tais!
— Quero dizer que o confessor de D. Inês seria um mau servo de Deus, se dentro em quinze dias não tivesse o governador em sua mão.
— E a virtude dessa donzela, P. Molina, não a leva em conta?
— Que entende V. Paternidade por virtude?
O frade embatucou com a pergunta; fitou os olhos surpresos no companheiro, que sorria com a maior beatitude:
— A prática do justo ainda com sacrifício do bem-estar, o cumprimento dos deveres que se resumem todos no amor de Deus, não será a virtude?
— Não decerto, P. Molina.
— Pois decida entre estas qual seja a virtude de mais preço. A virtude de Susana, esposa de Joaquim, que resistiu aos juízes de Babilônia somente para não pecar diante do Senhor, in conspectu domini; e a virtude de Judite, que Deus abençoou na sua força para vencer os inimigos de Israel?
— O caso é difícil. Segundo o voto do P. Molina é a última dessas virtudes a mais agradável ao senhor?
— Segundo o voto dos mestres, em cuja lição nos devemos formar, P. Inácio. A virtude é robustez do ânimo: a beleza da mulher, como a força do homem, são instrumentos na mão do operário de Cristo.
P. Inácio curvou a cabeça diante daquela filosofia perigosa, que assentava a religião sobre as ruínas de todas as crenças e dos sãos princípios da moral; havia nessa argumentação tal cunho de energia e tom de convicção profunda, que subjugava a seu pesar o espírito do jesuíta.
— Não consta que aquela menina ame algum cavalheiro? perguntou de repente o P. Gusmão.
— Não curo das coisas mundanas, P. Molina. O que soa é que seu irmão D. José de Aguilar protege os afetos de um Fernando de Ataíde, de quem é amigo.
— Esse Fernando é o primeiro cavaleiro à direita do alferes?
— Justamente.
Nesse momento soaram as trombetas anunciando a investida; os dois jesuítas continuaram este exame, trocando de vez em quando as suas observações, até a ocasião em que a voz do arauto publicou a sentença dos juízes, e Cristóvão de Ávila proclamou Estácio Correia como o vencedor da justa.
Ouvindo o nome de seu discípulo, repetido pelas aclamações entusiásticas do povo, o licenciado sentiu uma comoção violenta, que paralisou-lhe os movimentos: a mão direita, que havia tomado o rei, com a intenção do rocar, parou suspensa sobre o tabuleiro. Assim ficou um instante, com o ouvido atento e a alma dilatada para receber os ecos da ovação que saudava o moço cavalheiro.
Por fim voltando ao jogo e vendo que tinha ainda suspensa a peça que devia mover, sem reparo colocou-a quatro ou cinco casas além. O provincial, estremecendo com o caso nunca visto, deu um salto no tamborete; logo um grito de dor partiu dos lábios pálidos e convulsos de Fernão Cardim.
Catástrofe horrível, capaz de enlouquecer um enxadrista, provocara o grito. Os joelhos do jesuíta, movendo-se imprudentemente na ocasião do seu espanto, tinham virado o bufete e atirado no meio da sala o tabuleiro com as peças, que ainda rolavam no soalho, perseguidas pelo licenciado, cujas perninhas custavam a alcançá-las.
O provincial, de braços cruzados, cabeça caída e cãs em desordem, contemplava os destroços da partida de honra. Mário sobre as ruínas de Cartago não tinha decerto nem mais eloquência na expressão, nem mais tristeza no olhar, do que Fernão Cardim nesse instante solene.
Mas não eram quaisquer enxadristas os dois parceiros que disputavam havia duas horas a mais renhida batalha que tenham pelejado os trebelhos chineses; o licenciado tomando imediatamente a resolução pronta que exigia o caso, ergueu o tabuleiro, e começou a reconstruir de memória o seu jogo tal como ele se achava na ocasião do desastre.
— Que fazeis, doutor? perguntou o provincial com a voz trêmula.
— Não vedes? Ponho as coisas no estado em que se achavam ante bellum.
— E podeis lembrar-vos? acudiu o frade desanuviando o rosto.
— Do meu jogo perfeitamente, como vos deveis recordar do vosso.
— Oh! estou vendo-o como se ainda aí estivesse! Sou capaz de refazê-lo a olhos fechados.
Os dois parceiros puseram mãos à obra; em breve a partida foi restabelecida; não afiançamos que o frade não aproveitasse o ensejo para melhorar a sua posição; e que o licenciado se visse abarbado com algum xaque improvisado ameaçando de novo o seu rei. Como porém nenhuma das partes beligerantes pôs a menor dúvida sobre a posição estratégica do inimigo, o jogo continuou, e sem mais acidente.
No entanto a conversa prosseguia entre os dois jesuítas.
— É esforçado aquele cavaleiro, dizia o P. Molina; como se chama?
— Estácio Dias Correia; é filho do célebre Robério Dias, possuidor do segredo das minas de prata.
— Tem bela presença! Deve ser capaz de grandes coisas, se tiver bom conselho!
— Não lhe falta; o licenciado Vaz Caminha que V. Paternidade já conhece, é seu pai espiritual; e o Alcaide-Mor Álvaro de Carvalho, que ali está entre os juízes, o estima em muito; e ele o merece, posso assegurar.
O P. Inácio do Louriçal lia durante o tempo que passava na Bahia uma cadeira de Ética. A ele encarregara Vaz Caminha a direção de Estácio, logo que o menino, então na idade de quinze anos, começara de cursar as aulas do colégio. O velho sacerdote se afeiçoara a seu aluno, em quem descobria muitas qualidades, mas nenhuma inclinação para a vida claustral.
Tornou o P. Molina:
— Que faz ele?
— Deve acabar este ano os estudos neste colégio; pelo desejo do doutor, professaria; porém o alcaide opõe-se com todas suas forças e espera que se lhe depare ocasião de seguir a carreira das armas.
— E os haveres? Poucos?
— Nenhuns; é pobre como Jó.
— Ignora o segredo de seu pai?
— Robério Dias morreu com ele.
— É o que reza a tradição; mas podia ser boato para adormecer a vigilância dos governadores.
— Sabe V. Paternidade alguma coisa a este respeito? perguntou o P. Inácio com vivacidade.
— O que se repete; ouvi contar uma vez essa história, e quer-me parecer que tais minas nunca existiram.
— Estou que se engana o P. Molina.
— Pode ser. Tem razões para pensar o contrário, P. Inácio?
— Talvez.
O P. Molina sorriu:
— Ainda vive a mulher de Robério Dias?
— É morta há cinco anos.
— Com quem vive o filho?
— Com uma tia velha, D. Mência.
— P. Inácio é confessor da dama?
— De que tira essa conjetura?
— É dela naturalmente que houve certeza da existência das minas de prata, respondeu o frade.
O P. Inácio perturbou-se:
— Errado vai o P. Molina: não abuso do segredo da penitência. O que ouço no confessionário entrego-o a Deus, e só trago comigo a satisfação de ter ajudado a remir da culpa uma alma arrependida.
— Mas suponha que um penitente revela um crime que vai cometer-se, homicídio, verbi gratia: deixaria que se consumasse podendo prevenir?
— Suplicaria ao Senhor que iluminasse o espírito desse homem; mas não trairia o segredo da confissão.
— E julga que o Senhor exalce a súplica de uma alma criminosa, porque o era, participando com o seu silêncio ao crime que ia perpetrar-se?
— Tem uma lógica terrível, P. Molina.
— Quanto sei, digo-o a V. Paternidade, aprendi dos que durante dois séculos engrandeceram a nossa ordem para a maior glória de Deus. Eles me ensinaram, P. Inácio, que os companheiros de Jesus desde que prestam voto de obediência passiva aos superiores, não têm vontade sua.
O frade encarou com o companheiro, como para ver se era o mesmo homem que lhe falava, tão grave lhe pareceu a entonação daquela voz há pouco doce e insinuante; mas o P. Molina já não lhe dava atenção e estava completamente embebido em ver a festa.
Houve uma pequena pausa durante que o P. Molina contemplava a festa, e o P. Inácio contemplava seu estranho companheiro.
O mais velho dos dois jesuítas estava surpreendido do caráter audaz e do espírito arguto que revelara nesta conversa o frade chegado aquela manhã de Espanha.
O tom humilde e tímido com que às vezes falava o P. Molina indicava o homem habituado à obediência; outras vezes a sua voz acentuava a palavra com energia e firmeza, e o seu olhar caía incisivo e penetrante.
Decorreu algum tempo ainda; de repente ouviuse a vozinha frautada do provincial, gritando:
— Xaque-mate!
— Tinha de ser vossa a partida! acudiu o licenciado com ar contrito.
— Xaque-mate! repetiu Fernão Cardim triunfante. Custou-me! Mas enfim... Oh! podeis gabar-vos de que me destes que fazer, doutor.
— É o que me consola, padre provincial; há derrotas que honram aqueles que as dão, e também os que as sofrem.
— Para quando a desforra?
— Domingo; tantas vezes hei de perder, que uma virá em que lograrei a melhor.
O licenciado dispôs-se a partir, deixando Fernão Cardim ainda enlevado diante do lance admirável com que terminara a partida; lance que Vaz Caminha tinha previsto, e não evitara por ser tempo de dar fim ao jogo.
— Já nos deixa o senhor doutor? perguntou o P. Molina com amabilidade.
— São horas, padre-mestre; ruit nox, respondeu o licenciado mostrando o sol que se escondia no horizonte.
Despedindo-se do provincial e dos dois jesuítas, Vaz Caminha ia transpor a porta da livraria, quando a voz do P. Molina o fez voltar.
— Doutor, olhai que vos esqueceu a bengala!
— É verdade! disse o licenciado mordendo os beiços; ia tão distraído.
Tomando a bengala e despedindo-se de novo, o velhinho desceu enfim a escadaria do convento; o P. Inácio tinha-se retirado à sua cela. Ficando só com Fernão Cardim, o P. Gusmão de Molina deu uma volta pela sala deserta, sondando com o olhar os escuros recantos, e parou junto do bufete, onde o provincial estava ocupado em recolher as peças do jogo.
— Fareis reunir esta noite o capítulo, padre provincial! disse em voz baixa, examinando um dos trebelhos de marfim.
— O capítulo? replicou Fernão Cardim como homem que não compreende o que se lhe diz.
— O capítulo, sim, padre provincial, respondeu o jesuíta sorrindo.
— P. Molina, chegastes hoje; isso releva a falta que acabais de cometer. Talvez nas outras províncias se pratique de maneira diversa, embora tal não me conste; mas nesta governo eu, e não admito que nenhum irmão, ainda mesmo professo, se ingira nas minhas atribuições.
O provincial tinha perdido a sua bonomia habitual e revestira-se da rigidez e dignidade própria do superior, quando se quer fazer respeitar.
— V. Reverência à vista disto não está resolvido a reunir o capítulo esta noite? disse o P. Gusmão friamente.
— Não, P. Molina, reunirei quando me aprouver.
— Neste caso alguém o convocará.
— Quem? E com que autoridade?
— Breve o saberá V. Reverência.
A noite caía, como dissera o advogado citando Horácio; o sol mergulhava no oceano, coroado de luz e majestade, sempre rei, no ocaso como no momento da ascensão.
As sombras do crepúsculo desdobravam-se já e vestiam a natureza; o silêncio plainando no espaço, descia lentamente sobre a cidade há pouco tão agitada e ruidosa; todos sentiam a influência da hora mística, breve pausa entre a luz e a treva, imagem da vida oscilando entre berço e túmulo.
Soavam trindades.