As Minas de Prata/I/XIII

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O largo apresentava novo aspecto; as tochas acessas em volta e as luminárias suspensas nas janelas das casas, derramavam sobre as alcatifas cobertas de lantejoulas a claridade das luzes, menos brilhante que a do sol, porém mais suave e fascinante.

A um lado da teia, junto à tenda destinada aos mantenedores, tinham preparado um coxim com dossel; dois cavalheiros, D. José de Aguilar e Fernando de Ataíde, de pé no último degrau, pareciam esperar a pessoa que devia ocupar aquele trono oriental.

Tocaram os anafis na entrada da liça; todos os olhos voltaram-se para ver o novo espetáculo que se apresentava.

Vinha na frente um truão coberto de guizos, fazendo esgares e trejeitos que provocavam o riso da multidão; seguiam dois mouros arrastando as curvas cimitarras; outros dois caminhavam ao lado de um palanquim conduzido por negros vestidos como eunucos, sobre o qual vinha sentada uma mulatinha de dezoito anos.

Era um tipo brasileiro, cruzamento de três raças; americano nas formas, africano no sangue, europeu na gentileza. O moreno suave das faces, os grandes olhos negros e rasgados, os dentes alvos engastados no sorriso lascivo, o requebro lânguido e sensual do porte sedutor sob o traje oriental, davam-lhe ares de verdadeira sultana.

Véu branco e transparente, preso ao airão dourado, descia-lhe sobre o rosto, avivando mais o brilho dos olhos e o carmim dos lábios; as calças largas de tafetá, cerrando no artelho de uma perna bem torneada, deixavam admirar o pé delgado por entre o bordado da alparca de seda; o saiote de cassa da Índia, preso ao justilho de renda, desaparecia sob a cabaia amarela, semeada de aresta de prata, que lhe caía dos ombros.

Acompanhavam o palanquim oito moças vestidas igualmente à oriental; essas não tinham capa e traziam passados à cintura uns xales de lã de cores vivas; vinham duas a duas, dando as mãos e formando graciosas figuras de dança, que realçavam as formas esbeltas. Fechava a marcha a banda de música que tocava os anafis e outros instrumentos mouros.

Chegando junto do estrado onde se achavam os dois cavalheiros, os eunucos pousaram em terra o palanquim. A princesa moura no meio de suas escravas, ajoelhou sobre o tapete, que estendera um dos guerreiros do séquito.

— Ilustres cavalheiros, disse ela. Eu sou a Princesa Alzira, filha d'El-Rei da Pérsia, que trazida pelo grande esplendor de vossa fama e nomeada de vosso valor, venho pedir-vos amparo e proteção contra o mau fado que me persegue; pois tendo aceitado o esposo que meu pai me destinara, sou agora maltratada da sorte e havida como perjura por um príncipe que me queria.

Parece que a rapariga não recitou exatamente seu papel de comédia; porque D. José, surpreso, murmurou-lhe ao ouvido:

— Que me perseguia!

A princesa deu um muxoxo, e fingindo enxugar duas lágrimas rebeldes, que nem sequer umedeceram o canto dos olhos negros, abaixou a cabeça para esconder o riso brejeiro que frisava a ponta do lábio.

— Erguei-vos, formosa princesa, que não de joelhos, mas sobre um trono, deveis mandar a vossos leais cavalheiros. E secai esses belos olhos, que com fervor de Deus e vosso amparo, breve haveremos fronta e desagravo de vossa injúria.

Estas palavras foram proferidas por D. Fernando de Ataíde; e logo erguendo com toda a galanteria a fingida princesa, a fez sentar no coxim preparado sobre o estrado.

A odalisca deu sinal a suas escravas; estas imediatamente trançaram novas danças, ainda mais graciosas e originais que as primeiras; nos intervalos o histrião mouro divertia o povo com visagens e truanices.

Esta espécie de auto que acabavam de representar era naquele tempo o prólogo necessário do torneio; lembrava as tradições da cavalaria andante, que apesar da sátira homérica de Miguel Cervantes, ainda viviam no Amadis de Gaula, no Palmerim da Inglaterra, e na imaginação dos cavalheiros de vinte anos ou das meninas namoradas.

D. Fernando e D. José se haviam recolhido à tenda, onde se armavam para manterem a liça contra os aventureiros que a viessem disputar. Mal terminaram as danças, um arauto foi pregar no meio do campo, sobre a haste de uma lança, o cartel de desafio, que era assim concebido:

Os dois cavaleiros, escolhidos pela formosa Princesa Alzira para defenderem sua causa, dizem e farão conhecer a todos os que aceitarem seu gaje, e lhes provarão a três botes de pique e outros tantos de espada, que é justo que uma dama aceite de preferência o esposo que seu pai e senhor lhe destinou.

Como mestre Bartolomeu terminava o proclamo do cartel, lançando no meio da arena as manoplas, gaje do combate, os mantenedores saíram da tenda; ao mesmo tempo apareceram na extrema da estacada dois cavaleiros de armadura branca e morrião preto.

Traziam a viseira caída; era impossível conhecê-los; ambos adiantaram-se lentamente até o centro da liça; erguendo o gaje dos mantenedores em sinal de que aceitavam o desafio, descalçaram os guantes e os arremessaram aos pés dos adversários.

Os juízes deram o sinal; os justadores tomaram campo.

— Bem vedes, Sr. D. José, que sou dos primeiros! disse um dos cavaleiros de armas brancas colocando-se em face do alferes.

— Ah! em bem o resolvestes! respondeu o moço cujos olhos lampejavam.

— Descortesia grande seria não responder a tão gracioso invite, retrucou o outro com desdém.

Inesita, que reconhecera nos dois aventureiros Estácio e Cristóvão, sentiu renascerem os sustos, vendo seu amante colocar-se em frente de seu irmão; porém o mancebo pareceu adivinhar o que passava em seu espírito, porque antes de arrancar, pousou a mão aberta sobre a cruz da espada. Compreendeu ela o misterioso juramento? Talvez; um quer que seja serenara o soçobro de sua alma.

O combate começara; rotos os piques sem vitória decisiva de parte a parte, os cavaleiros desembainharam as espadas, e atacaram-se de novo.

D. José tinha cumprido sua palavra; desde o princípio do combate procurava por todos os meios fazer do jogo um duelo; porém a sua arma encontrava sempre a arma de Estácio, que defendia-se com o maior sangue-frio, resolvido a não tomar a ofensiva, nem derramar uma gota do sangue que para ele era sagrado, porque era o de Inesita.

O moço alferes, a pouco e pouco se ia enraivecendo com aquela resistência fria e invencível, que não esperava encontrar em um estudante; ignorava que as lições de Álvaro de Carvalho tinham criado um discípulo, digno do mestre na perícia, superior pela robustez do braço e pela calma inalterável do espírito.

O despeito o tomou a ponto que perdeu a prudência; precipitou-se sobre o contendor com tal sanha, que a multidão, surpresa da animosidade, excitada mais por estímulo de vingança que por brios de cavaleiros, fitou pasma esperando a peripécia do combate.

Então foi a vez de Inesita estremecer pela vida de Estácio, ameaçada a cada momento por seu irmão, cuja espada brilhando à luz das tochas semelhava nos rápidos volteios uma língua de fogo, e parecia, ora embeber-se no peito do moço, ora lamber-lhe o rosto.

Estácio não se alterou:

— Guardai-vos melhor, sr. alferes! dizia ele ao adversário desviando-lhe os botes.

— Curai de vós e não de mim, respondeu D. José, furioso.

— Pois me dais mais cuidado em não ferir-vos, que em defender-me, como quereis que faça? Pareceis ter antes em mente matar-vos a vós, que a mim mesmo!

De repente a espada do alferes, retraindo-se como uma cobra, distendeu-se com velocidade espantosa, e ia tocar o coração do seu adversário, quando a lâmina de Estácio vibrou com o rasgo que lhe imprimiu a mão ágil, e enleou-se na outra, atirando-a ao longe, e deixando desarmado o alferes que rugia de raiva e humilhação.

O moço ergueu a arma; tomando-a pela ponta, apresentoua de novo a D. José; mas os juízes interpuseram sua autoridade, e mandaram dar fim ao combate.

— Ficará para melhor ensejo, disse o alferes embainhando a espada; quando não haja testemunhas que nos olhem, e juízes que nos estorvem.

Estácio inclinou-se, e procurou o olhar de Inesita, para dizer-lhe que tinha cumprido seu juramento; nesse instante Cristóvão conseguia também desarmar o adversário. Os dois amigos, senhores do campo, mantiveram a liça contra os outros aventureiros que se apresentaram, até que por volta de oito horas fechou-se o torneio.

D. Diogo de Menezes e seus convidados recolheram-se a palácio, cujas salas estavam preparadas para um esplêndido sarau que devia pôr termo aos festejos do dia.

Diferentes danças e mascaradas começaram então a percorrer as ruas, armadas de uma extremidade à outra com arcos de luminárias e alamedas de coqueiros, de cujas palmas pendiam lampiões de várias cores.

Entre as ondas de povo, que enxameava na praça do Palácio, distinguia-se o vulto atlético de Bartolomeu Pires, que dominava a multidão com a estatura e com a voz. O mestre de capela, apesar de seus cinquenta anos puxados, não era de todo insensível ao efeito que produzia o seu vistoso traje de arauto sobre alguns mantéus que o cercavam nesse momento.

— Que ancho está mestre Bartolomeu! Nem dá pelos pobres! disse uma voz feminina.

O cantor voltou-se e viu a alguns passos uma comadre alta e esgrouvinhada, rastejando já pelos sessenta.

— Como queria que a visse, tia Eufrásia, no meio desta balborda? respondeu o mestre de capela, torcendo entre os dedos as falripas que lhe pendiam pelas faces rubicundas.

— Cruz! Que é uma confusão de dia de juízo! continuou a tia Eufrásia. Nunca me vi em semelhante entaladela! E para que, minha Mãe Santíssima? Para não ver nada, mesmo nada!

— Pois inda agora chega? perguntou mestre Bartolomeu.

— Prouvera que assim fosse, que não andaria por aí há boas duas horas aos empuxões! Que gentinha tão pífia! Credo!... Não há tir-te nem guar-te com ela! E se uma criatura solta um arre lá, engrifam-se todos! Olhe, mestre Bartolomeu, que se não fosse porque, fazia hoje uma estralada!...

E a matrona, fincando as mãos nos quadris e alongando a belfa, bamboleou o corpo, desafiando a peonagem.

— Alguma lhe aconteceu, que está assim tão arrenegada? disse o mestre de capela admirado daquele desempenho marcial.

— Pudera não! retorquiu a tia Eufrásia. Pois não vejam estes peralvilhos a faltarem com o respeito à gente para se derreterem com a bruxa da alfeloeira!...

— Quem? A Joaninha?

— Ela mesma. Quem mais há de ser senão a enjeitada da parteira, que a leve o demo? Porque fez de princesa moura, não se cuida já uma dona! Nanja eu, que com ser uma adela, com minha tenda afreguesada, me tenho em tamanha conta como aquela bisbilhoteira. Mas a culpa, fique com esta que lhe digo, é de quem lhe meteu um par de caraminholas na cabeça.

Nessa ocasião ouviram-se os assobios e apupos do poviléu:

— A bruxa!... Olha a bruxa!

— Avó torta de Satanás!...

— Pede ao teu louro que te estique a pele, engelhada do demo!...

A causa dessa vozeria era uma velha mulher coberta de andrajos, que mostrava todas as aparências de mendiga; mas o povo a tinha em conta de feiticeira.

A sua fisionomia provocava a atenção por uma singularidade incompreensível; a fronte coroada de cabelos grisalhos e revoltos era surcada de rugas profundas que lhe sarjavam também as faces crestadas de nódoas e cosidas de cicatrizes; o nariz disforme tinha as vermelhas protuberâncias que revelam o longo uso da embriaguez. Entretanto nesse semblante decrépito e corroído pelos anos e pelo vício, os olhos e a boca estavam respirando mocidade. Ninguém pode fazer uma ideia do aspecto repulsivo que tinha essa pupila negra nadando em leite, e esse lábio rosado sorrindo sobre alvos dentes, no meio daquela horrenda máscara.

Fugindo diante dos apupos, deixando na mão dos rapazes os farrapos de seus andrajos, a mendiga acertou de encaminhar-se para o lugar onde praticavam mestre Bartolomeu e a adela:

— Não deis ouvidos ao que ela diz, mestre Bartolomeu, é uma má mulher! gritou a bruxa.

— Sai-te, mendiga!

— Antes mendiga que ladra!... Cuidas tu, cadela, que és, e não adela, que te fazes... Cuidas tu que não se sabe do teu comércio danado com o judengo? E da tavolagem que dás no fundo da tenda? E do mais que por aí vai?...

— Vamo-nos daqui, mestre Bartolomeu, que hoje parece anda o diabo solto. Dia de festa é sempre isto!... Muito beberrico, por força que hão de vomitar quanta blasfêmia há!

— Vai, vai, cadela, para a pocilga, mas ouve o que te digo!... Estes olhos, que a terra há de comer, não se fechem sem que te vejam pendurada no Largo do Rosário de súcia com teu bonifrate!

Depois dessa praga a feiticeira perdeu-se outra vez na multidão, e deixou que a adela continuasse seu colóquio com o mestre de capela, que seguia um tanto ressabiado do que ouvira e desejoso de ver-se livre da companheira.

De repente soou a voz do licenciado Vaz Caminha; rompendo o cardume de povo que o submergia, conseguira ele afinal surgir na espécie de esteiro, que o Pires ocupava no meio das vagas revoltas desse mar agitado.

O mestre de capela, apenas o descobriu, estendeulhe sua proteção, afastando com um vigoroso arranco dos ombros a mó de gente que ameaçava esmagar o exíguo talhe do jurista.

— Que ideia foi a vossa de deixar-vos ficar neste aperto, senhor licenciado? Fazia-vos a esta hora em casa bem sossegado.

— Um dia não são dias, mestre Bartolomeu, respondeu Vaz Caminha sorrindo.

— Assim é, mas na vossa idade...

— Os velhos gostam às vezes de lembrar-se de seu tempo. Partia-me do Colégio, como principiava o torneio, e influí-me para ver o menino...

— Vistes então como ele desarmou o alferes! Que bote, heim!

— E não lhe achastes um belo parecer? perguntou o advogado satisfeito.

— Com perdão de Sua Mercê, acudiu a tia Eufrásia fazendo uma mesura ao doutor. Era o cavaleiro mais guapo de quantos se presentaram; eu sei de alguns cujos que se ralavam de inveja.

— Porém o melhor foi na cavalhada, disse o mestre de capela. Não assististes?

— Não, respondeu o licenciado.

— Pois eu vos conto.

— E a da argolinha? retorquiu a matrona.

Tomando seu ar grave e solene das grandes ocasiões, Bartolomeu Pires começou a narrar em voz de cantochão a cena, que passara por causa da distribuição do primeiro preço, e na qual ele representara o importante papel de pregoeiro.

Mal tinha concluído o exórdio, quando a tia Eufrásia, que o escutava com atenção religiosa, descrevendo uma elipse, veio-lhe de encontro ao abdome volumoso e proeminente que repercutiu como um adufe.

— Jesus! Valei-me!...

O mestre de capela acompanhou este grito da matrona com um grunhido surdo, arrancado pela dor que sentira e o obrigara a dobrar a respeitável corpulência.

O acidente desagradável, que atalhara de um modo tão desastroso a eloquência de mestre Bartolomeu, era produzido por uma revolução súbita que se operava na multidão. Em meio da praça fora ouvido um clamor; de repente um torvelinho de homens, deslocando as massas de povo, precipitou para as extremidades, esmagando quanto se opunha à sua passagem.

O coro de lamentações e gemidos, o choro do mulherio que se encomendava a todos os santos do calendário, as imprecações e juras do poviléu, e algumas vozes de ameaça que destacavam-se na confusão geral, formavam o ruído da torrente impetuosa, que transbordava de seu leito, escoando pelas ruas adjacentes.

Passado o primeiro momento de entalamento, mestre Bartolomeu percebendo o que sucedia, endireitou-se; filou pela gola da garnacha o licenciado que já garrava arrastado pelo turbilhão, e dispôs-se a resistir ao combate furioso das ondas do povo que se encapelavam umas sobre outras.

Firme e impávido como rocha, com a tia Eufrásia que lhe agarrava as panturrilhas, e o licenciado metido embaixo do braço, jogando ao mesmo tempo os ombros hercúleos e a pesada manopla habituada a bater o compasso do fabordão, opondo à enxurrada que o envolvia, as formidáveis ancas, mestre Bartolomeu Pires oferecia um grupo digno de uma estátua, que não teria inveja à de Laocoonte.

Com pouco a multidão rarefez-se; no centro da praça, via-se uma pinha de gente, que falava a um tempo e aos empuxões como para descobrir alguma coisa que passava no meio do ajuntamento; entre a vozeria e o burburinho que fervia sobre tantas cabeças encandecidas, distinguia-se um rugido, que parecia antes de fera que de homem.

O mestre de capela tinha-se aproximado, seguido pelo licenciado sempre calmo e sereno e pela matrona, que já restabelecida do susto estava com a curiosidade aguçada ao último ponto, tanto que foi metendo o nariz pela primeira aberta que o acaso lhe deparou.

Ia-lhe custando caro a sofreguidão, porque sem o socorro de Bartolomeu, que ainda desta vez lhe valeu, era muito provável ficasse de menos com a rodilha do toucado, que se embaraçara nos colchetes de um gibão; mas o cantor, vendo-a naquelas aflições, quase de rastos, com a melena esticada sobre o occipício, recorreu a um meio sumaríssimo: livrou-a, arrancando o colchete e com ele um punhado dos cabelos grisalhos da tia, que estrebuchou de dor.

Vaz Caminha voltava-se então:

— Mestre Bartolomeu, acudi se é tempo, que talvez poupeis algumas vidas! disse o advogado. Sinto não ter forças para ajudar-vos.

— Como quereis que afaste este poder de gente? Não vedes que estou a esforçar tanto há?

— Por isso não; meios nunca faltam, respondeu Vaz Caminha com sua mansidão ordinária.

— Pois se o sabeis, servi-me com o vosso conselho.

O licenciado chegou-se ainda mais ao grupo, e alçando a voz, bradou:

— O alcaide e seus homens!

Imediatamente, como por uma influência mágica daquelas palavras, o grupo se abriu, e os espectadores voltaram-se, interrogando com os olhos e com a fala, para saber onde apareciam as personagens anunciadas, a quem competia velar sobre a segurança pública.

Aproveitando a primeira aberta, o advogado barafustou por entre o povo; após ele o mestre de capela e a matrona em quem a curiosidade podia mais do que o receio de uma segunda descabelação; porém os três pararam diante do espetáculo horrível que se apresentou às suas vistas.

Um mariola trigueiro, com a fisionomia decomposta pela raiva, a fronte golpeada, os cabelos em desordem e o olhar inflamado, brandia na mão direita uma larga adaga já escorrendo sangue, e com o braço esquerdo cingia pelo talhe uma pobre moça, que ele meneava como um escudo, contra aqueles que o atacavam; mantendo assim imóvel, ou pelo receio de ser ferida ou pelo receio de ferir a rapariga, a multidão que o cercava.

Apesar disto, porém, tinha em frente um competidor que não lhe deixava um momento de repouso.

Era homem ainda moço, de pequena estatura, mas de uma construção vigorosa; tinha pescoço de touro, ombros largos e quadrados como o plinto de uma coluna, braços curtos e grossos, quase sem formas, terminando em duas manoplas formidáveis, cujo peso bastaria para vergar o infeliz sobre quem se abatessem.

Vestia escarlata grosseira; na cinta de couro branco que apertava o pelote ao corpo, via-se um largo manchil de carniceiro, que indicava a sua profissão de magarefe ou cortador de reses nos açougues.

Desprezando aquela arma temível e servindo-se dos braços nus, parecia cuidar unicamente de arrancar das mãos do seu adversário a rapariga, que se debatia já quase a desfalecer. Insensível às feridas que rasgavam-lhe o ombro e o pescoço, indiferente ao sangue que lhe escorria pelas vestes, o carniceiro não toscanejava; toda sua atenção estava concentrada na luta e todos os seus esforços eram para livrar a vítima do conflito, sem contudo ofendê-la. Depois de conseguido esse fim, quando já o não tolhesse o receio de tocar com sua arma o corpo delicado da moça, então ninguém sabe o que aconteceria.

Vendo este combate do primeiro lanço de olhos, a tia Eufrásia vacilou sobre os joelhos, levando as mãos às repas e bradando misericórdia:

— Filho! Anselmo!... Quem me acode!... Ai! meu Jesus de minha alma!

Vaz Caminha com risco iminente de vida adiantou-se erguendo a cana de Bengala, ao passo que mestre Bartolomeu procurava tomar de esguelha o filho da tia Eufrásia, que arrastava a rapariga, e facilmente se conhecia ser o causador da desordem.

Percebeu isto o Anselmo; afastou a tia Eufrásia e fez girar a adaga com tal força e agilidade, que obrigou a multidão a recuar.

— Arredo! gritou ele. Arredo!...

Então foi horrível a confusão; o povo que em princípio, impelido com o pânico, escoara pelas ruas vizinhas, voltava excitado pelo desejo de conhecer a causa do tumulto. De novo arremessando-se para o centro da praça, como fluxo de maré, comprimindo o estreito círculo do combate, enovelou espectadores e adversário num só remoinho.