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As Minas de Prata/III/VII

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Tornemos a São Sebastião.

Seriam já sete horas. A presença de homens armados na Rua de São José começava a atrair a atenção pública. Os passantes, que iam à obrigação diária, retardavam o passo e voltavam o rosto para ver; os curiosos paravam a distância e praticavam do caso. Diziam os bem informados que se tratava de uma prisão importante de pessoa moradora naquela rua; mas quem ela fosse, por ora estava em segredo. Os soldados do governador para derrotar a curiosidade tinham feito correr este boato; e como eles estavam espalhados por quase toda a rua, ninguém podia com certeza saber que porta guardavam.

Por este tempo um homem do povo coseu-se à rótula da Mariana, a qual já apercebida do que ia pela rua, estava a espreitar pelas frestas. D. Aníbal não deu atenção alguma a este incidente. Não tinha ordem de guardar aquela porta; nem o indivíduo lhe inspirava suspeitas como o frade.

— Venho do P. Molina! disse o sujeito baixo.

A beata abriu logo a rótula e recebeu o recado que o visitador lhe mandava. Devia ela fingir um ataque, dando altos gemidos, e despachar incontinenti o mesmo emissário a chamar o jesuíta para confessá-la, pois o serviço da Igreja assim o exigia. Isso foi tão depressa dito, como feito.

Mariana estendeu-se sobre o catre a estrebuchar e gemer; o homem abriu arrebatadamente a rótula, e deitou a correr para o fim da rua onde o esperava Molina; acudiu o frade a toda a pressa, caminhando atrás do guia, que, no açodamento em que ia, encontrava os passantes:

— Entre, padre-mestre! Depressa, que está a decidir.

Mas D. Aníbal tinha bispado o hábito preto de sua quijila, e logo após reconhecido o frade apesar do bioco com que buscava se disfarçar.

— Alto lá, rapaz. Entre você, mas cá o reverendo é meu amigo velho; temos que trocar duas palavras.

Chegando então ao ouvido do frade:

— O reverendo é teimoso; eu também sou; e o senhor governador, que aqui me mandou, ainda mais. Portanto melhor é que se desengane, antes que alguma lhe suceda.

O P. Molina fez um gesto de desprezo; depois erguendo a voz de modo a ser ouvido por dois sujeitos que passavam, interpelou o soldado:

— Mas, senhor soldado, veja bem o que faz. Não se deixa morrer assim impenitente uma mísera pecadora, que pede confissão!

Os passantes pararam para escutar. D. Aníbal procurou em seu espírito embotado alguma coisa para responder, e não achou mais que uma jura mal cabida na ocasião. O jesuíta continuou:

— Aos mesmos condenados nunca El-Rei negou confissão, por mais feio e horrendo que fosse o seu crime; e sobem à forca acompanhados de um sacerdote que os exorta na fé do Senhor!... A uma enferma, sem culpa, há de negar-se o consolo da religião, e por autoridade de quem? De um soldado!...

— Soldado!... Soldado!... murmurou D. Aníbal em talas.

Aos dois passantes se haviam reunido outros, que a um e um já formavam grupo, e inquiriam-se mutuamente da causa da altercação, escutando ao mesmo tempo o jesuíta. O homem do recado tivera o cuidado de soprar ao ouvido de cada um o caso do ataque, de modo que os murmúrios descontentes e os gestos de ameaça começaram a despontar no ajuntamento. De seu lado Molina, sentindo que tinha um fragmento de povo ao alcance de sua mão, dispôs-se a empunhá-lo como uma alavanca. A palavra vibrante fluiu de seu lábio, crespo pela indignação, e esparziu sobre aquelas cabeças as centelhas que deviam produzir a combustão. O tumulto popular rugia já no peito do apóstolo, como a tormenta, antes que desabe, ruge ao longe no seio da nuvem, ou como o leão ainda em repouso ruge no seio da selva.

— Fora o herege!...

— Se o cão é mouro!... Não lhe veem o focinho!

— Qual mouro! Judeu arrenegado, que é a pior besta.

— À fogueira com ele!...

D. Aníbal empalideceu; metade com medo do povo que o podia espatifar; metade com medo do governador, que talvez o castigasse por ter excedido suas ordens, promovendo o tumulto. Foi pois como homem prudente encolhendo-se, depois de alinhavar algumas desculpas. O P. Molina penetrou sem obstáculo em casa da Mariana; e foi direito ao quintal para assegurar-se da possibilidade da passagem para a casa do fidalgo. Um instante depois apareceu na rótula para serenar o povo e dispersar o ajuntamento.

— Podeis ir tranquilos, irmãos. A enferma vai melhor depois da confissão; do que precisa é do maior sossego. Curada a alma, pode sarar o corpo.

Fechada a rótula, subiu à água-furtada; e prosseguiu com ardor na tarefa começada. Descoberto o buraco, apareceu o fundo do armário de cedro. Aplicou o jesuíta o ouvido, e pareceu-lhe que ninguém havia no gabinete; era então a hora do almoço, e o fidalgo naturalmente estava à mesa. Sem perda de tempo insinuou pela broca da madeira a serra fina e estreita, e continuou a cortar o tampo começado. Apesar da cautela de untar constantemente o instrumento de óleo com o fim de amortecer o rangido, tinha ele o ouvido atento ao menor sinal.

Dois terços do círculo estavam cortados, quando sentiu ele abrir a porta do gabinete. Ficou imóvel. Era D. Diogo, que terminada a refeição matinal, voltava aos seus papéis, nos quais trabalhava desde a madrugada. Preparado para sofrer as consequências de sua lealdade e rigidez de caráter, escrevia o fidalgo suas últimas disposições, e consolava a esposa em uma carta que lhe dirigia. Já na sua casa se haviam apercebido da presença de gente armada na rua; mas só o fidalgo compreendeu a verdadeira razão.

— Não me conhece! murmurava dentro de sua alma nobre.

Agora sentando-se outra vez à poltrona, afastou docemente a mulher que o acompanhara até o gabinete:

— Ide à vossa lida, e ficai tranquila. Quando vier o padre, o que tem vindo estes dias passados, mandai à caseira que o guie aqui.

— Se vier! acrescentou mentalmente.

O fidalgo lembrara-se que estando sua porta guardada, não poderia o jesuíta acudir ao seu chamado.

— Ao meio-dia também hão de vir a mandado do governador. Que me avisem logo.

Molina, ouvindo da água-furtada as últimas palavras de D. Diogo, conheceu que tinha calculado bem a respeito da exigência do governador.

— São oito horas apenas! pensou ele. Tenho tempo de ir saber o que pretende e voltar.

Desceu pois a íngreme escada; quando chegou abaixo, ouviu do lado da rótula uma altercação. Era D. Aníbal que, desconfiado com a demora do frade, insistia para entrar e ver a enferma; o acólito do jesuíta opunha-se ao seu intento com razões de boca e de ombros. O visitador acudiu e chegou a tempo, porque já os soldados estavam senhores da entrada.

Postando-se diante, opondo às armas o peito inerme e só couraçado com a lila preta, Molina conteve o primeiro ímpeto; depois atirando à rua uma daquelas apóstrofes valentes que ele manejava, formou em pouco um ajuntamento e o concitou em nome de Deus a defender a religião, que ameaçavam profanar tais ímpios, perturbando a última confissão de uma moribunda.

O povo agitou-se e tomou o partido do padre; a porta foi novamente fechada e um muro de gente ergueu-se diante dela! Os soldados, segunda vez batidos recuaram.

Molina dirigiu-se ao quintal, e pela cerca passou à casa de D. Diogo, onde a caseira o viu aparecer com grande pasmo.

— Foi vosso amo que assim ordenou. Levai-me já à sua presença.

A velha obedeceu.

D. Diogo recebeu o frade com sua calma e habitual gravidade.

— Já não contava ver hoje V. Paternidade. Como chegou até aqui?

— Sua Mercê não ignora que para este hábito não há portas fechadas! respondeu o frade iludindo a pergunta.

— É certo. Na suposição porém de que não lhe pudesse falar, tinha longamente escrito. Queira o P. Mestre ler, enquanto de minha parte termino certos negócios da maior importância para mim.

O fidalgo passou ao frade a carta selada. Era a exposição do que ocorrera na véspera em palácio entre o governador e ele. Molina teve tempo de a ler duas vezes e meditar sobre a intenção do provedor, enquanto este escrevia rapidamente.

Afinal D. Diogo acabou o trabalho, e voltou-se para o jesuíta:

— Estou às ordens de V. Paternidade.

— À vista do que me refere Sua Mercê nesta carta, só me resta saber qual é sua intenção.

— Minha intenção?

— Eu me explico! Pretende o sr. Provedor ceder à autoridade do governador?...

D. Diogo o esmagou com o olhar.

— V. Paternidade devia já conhecer-me bastante para ter a certeza de que não há poder que me desvie do cumprimento de um dever de honra.

— Então está ainda disposto a entregar-me o roteiro?

— No momento em que me for exigido por quem de direito.

— Mas sempre mediante quitação?

— Agora, menos que nunca, posso dela prescindir.

Molina hesitou. Que lhe convinha mais, receber já o roteiro, deixando contra si uma prova da sua falsidade, ou apossar-se daquele papel pelo meio violento do roubo?... Se o primeiro meio era perigoso, o segundo era incerto; ele preferiu o risco à dúvida.

— Vou passar a Sua Mercê a quitação!

— Bem! disse o fidalgo cedendo-lhe o lugar na banca. Seus papéis?

— Aqui estão! Esta é a certidão de casamento de Robério Dias com D. Clara Dias Correia; segue-se a de batismo do filho único desse legítimo matrimônio, Estácio Dias Correia, menor de 20 anos; depois duas do óbito dos dois cônjuges; em quarto lugar o auto do noviciado do moço escolar no Colégio da Bahia, o que o constitui em tutela legal da Companhia; quinto finalmente o pleno poder do provincial conferido a mim Gusmão de Molina para este fim.

O fidalgo leu e examinou minuciosamente os papéis, enquanto o jesuíta rastreava nas suas feições o menor gesto de suspeita:

— Está tudo em regra.

O P. Molina correu a pena sobre o papel, e o fidalgo, caminhando para o fundo do aposento, ia abrir o armário.

Ouviram-se no corredor passos rápidos de cavaleiro, a julgar pela rijeza do som, que indicava o salto da bota, e pelo trilhar das esporas.

O jesuíta ergueu a cabeça de sobressalto.

— O governador?... murmurou.

O fidalgo respondeu com um gesto.

Não foi porém o governador que assomou à porta e sim o vulto nobre e gentil de Estácio, corado pela salsugem do oceano e pelos raios do sol.

Donde chegava ele tão imprevistamente?

No momento em que a tempestade o arrebatava nas asas, sobre o abismo das ondas revoltas, o mancebo vendo a nau que ia sumindo-se no horizonte, pensou:

— Mais um que corre após a herança de meu pai!

Ele teve ímpetos de seguir em direitura ao Rio de Janeiro para defender seus bens; mas era um espartano esse jovem: primeiro a pátria, depois o interesse.

— Se a justiça é por mim, Deus me há de amparar.

Com efeito a Providência parecia guiá-lo pela mão. Nessa mesma noite, no meio da horrível tempestade, o bergantim arrojou-se sobre a escuna, como uma águia sobre a presa, e meteu-a a pique. Olhando o casco em chamas, que fugia arrebatado pelo vento, disse o Antão:

— É pena que não haja mais!... Será para outra vez. Agora à Bahia.

— Ao Rio de Janeiro! disse Estácio que o escutava.

Naquele mesmo dia ao romper d'alva tinham fundeado fora da barra para não causar suspeita. Deixando o bergantim guardado por Esteves e Pedro, embarcara com Antão na chalupa tripulada pelos oito índios. O contramestre conhecia a cidade de São Sebastião, e sabia a casa de D. Diogo de Mariz, pois fora o portador da carta do fidalgo à mãe de Estácio; ele guiou pois a chalupa para a praia deserta onde século depois assentou D. Luís de Vasconcelos o Passeio Público.

Ali saltaram em terra os dois, e se encaminharam à Rua de São José; chegaram justamente na ocasião em que o P. Molina vinha à rótula para impedir a entrada dos soldados.

Estácio perdido na multidão vira e reconhecera o frade. A presença desse homem na vizinhança da casa de D. Diogo, o aspecto tumultuoso das ruas, a esquadra de soldados, a proibição que sofreu querendo entrar a porta do fidalgo; todas estas circunstâncias deram-lhe uma intuição rápida do que sucedia.

— Antão, creio que teremos necessidade de gente.

— Assim estava me parecendo! respondeu o contramestre que examinava D. Aníbal como o entreconhecendo.

— Se, quando voltardes, já eu não estiver aqui, esperai com o ouvido alerta, porque devo estar lá dentro.

— Na casa do provedor?

— Sim. Outra coisa; vistes aquele frade que há pouco arengava ali na rótula?

— Vi; e eu conheço aquele frade!...

— Pois se acaso o virdes sair de uma das duas casas sem mim, segui-o, e apoderai-vos dele antes que fale com qualquer pessoa.

— Um sacerdote!... disse Antão com escrúpulos.

— Um sacerdote que pretende apossar-se do bem alheio! Julgais que mereça respeito?...

— Basta; vou buscar a gente.

Antão deitou a correr para a Praia do Boqueirão. Estácio foi direito à rótula e bateu de leve; apareceu pela fresta o rosto desconfiado do servente.

— Abri depressa!

— Para quê?

— Este papel que o reverendo mandou buscar, respondeu Estácio tirando do bolso a carta de D. Diogo a sua mãe.

— Dai-mo que lho entregarei!...

— Por forma alguma. A ordem que me deu é que lho trouxesse eu mesmo.

— Mas quando vos falou ele? perguntou o sujeito cada vez mais suspeitoso.

— Há pouco em casa de D. Diogo, onde se acha. Qualquer demora pode deitar a perder o negócio que sabeis; e sereis vós a causa.

Estácio assim dizendo ia empurrando a porta, que o homem indeciso só frouxamente já sustinha; apenas dentro, ganhara ele o quintal, penetrara em casa do fidalgo; e foi guiado ao seu gabinete pela velha caseira, que subia de espanto em espanto.

O mancebo circulou o aposento com um olhar rápido, que afinal foi cravar-se na fisionomia do jesuíta; este já havia dominado o seu primeiro pasmo, e impassível abaixava a vista para o papel onde continuava a escrever.

O fidalgo esperava um tanto surpreso da inesperada visita.

— O Senhor D. Diogo de Mariz?

— Aqui o tendes, senhor.

— Sou o filho de Robério Dias; venho receber o papel que nesta carta Sua Mercê anunciava anos há à minha falecida mãe achar-se em seu poder.

O mancebo passou ao fidalgo a carta aludida.

— Ouvistes, padre-mestre?

— Perfeitamente! Eu vos tinha prevenido na minha carta.

— Então supondes?

— Tenho plena certeza!

O fidalgo adiantou um passo:

— Vedes-me, senhor, em uma posição difícil. Não desejo por forma alguma ofender vosso melindre; mas não vos conheço; é a primeira vez que nos achamos em presença; e portanto me permitireis uma observação.

— Falai, senhor provedor.

— Dizeis que sois filho de Robério Dias, mas essa pessoa, se não me engano, deixou um filho único.

— E esse sou eu, Estácio Dias Correia, que tem a honra de falar-vos.

— Entretanto aqui está o Rev. P. Molina, que se me apresentou como procurador de Estácio Dias Correia, noviço da Companhia de Jesus no Colégio da Bahia. Eis os documentos que justificam essa qualidade.

Estácio leu:

— A pessoa de quem tratam estes papéis sou eu próprio; apenas há um pequeno engano, e é que não sou, e nunca fui noviço da Companhia; porém apenas estudante nas aulas públicas que os padres da Bahia, em falta de escolas, franqueiam a todos.

Voltando-se para o P. Molina, o mancebo o interrogou:

— É isso ou não verdade, Senhor P. Molina?

— O único filho de Robério Dias, que eu conheço, é o de que rezam estes documentos; não sei de outro.

— Basta! Vejo, Senhor D. Diogo de Mariz, que nada me resta a fazer aqui. Vim à vossa presença, como um homem leal e sincero se devia dirigir a um fidalgo do vosso nome e caráter, com verdade e fé; pareceu-me que vossa carta era suficiente documento, e a minha palavra de cavalheiro prova maior de toda a exceção. Encontro porém aqui o embuste e a mentira trajando as vestes respeitáveis da religião; não estou munido de armas para combatê-las, nem mesmo sei, como as fuinhas de cartório, pesquisá-las. Eu me retiro, senhor; e embora o papel, cuja restituição me negais, seja a reparação da memória de meu pai e toda minha esperança de futuro, dou-vos plena quitação desta dívida de honra.

O mancebo dobrou a carta do fidalgo e rasgando-a em cruz, jogou de si os fragmentos.

O fidalgo empalideceu:

— Esta ação é um insulto, senhor.

— Igual ao que me irrogastes duvidando de minha palavra. Se pois o quereis, apelemos para o juízo de Deus, e decida ele o pleito de honra e o pleito judiciário!...

— Seja!

— Mas eu protesto contra qualquer resolução vossa, senhor provedor, que ofenda o meu direito! Se por virtude de um desafio entregardes um depósito sagrado a outrem que não a seu dono, não ficareis desobrigado nem perante as leis da justiça, nem perante as leis da cavalaria.

O fidalgo tornou-se perplexo. O olhar de Estácio brilhou de repente:

— Deus protege o direito, senhor!... Observai! Este homem se vos apresenta munido de provas para disputar-vos o que é meu; eu venho só acompanhado com a verdade e a justiça, sem outro documento além de vossas letras. Pois bem, naquelas mesmas provas, produzidas contra mim, está o meu reconhecimento!

— Explicai-vos melhor.

— Aí está, dissestes, um auto com a minha assinatura, com a assinatura de Estácio Dias Correia. Ainda não o vi. Mas a assinatura é esta!...

O mancebo tomou a pena e escreveu o seu nome.

— É verdade! exclamou o fidalgo.

— Que prova isto?... acudiu o frade. Quem munido de uma carta alheia se apresenta simulando aquela pessoa, naturalmente se prepara para de alguma forma provar sua falsa identidade. De mais eu tenho ainda um documento, que destrói toda a dúvida e que não apresentei por não supor necessário. Se o senhor provedor me promete esperar!...

— Ide; mas voltai breve.

O frade desapareceu.

Ficando sós, o fidalgo interrogou Estácio acerca de sua família; o mancebo contou-lhe da sua história o que dizia respeito aos seus estudos no Colégio da Bahia, e ao roteiro das minas de prata, inclusive sua temerária empresa contra os holandeses e a viagem ao Rio de Janeiro.

Quando Estácio terminou, o fidalgo estendeu-lhe a mão com fervor.

— Desejo a vossa amizade, mancebo! Sois um digno e valente coração! Me recordais um amigo, que perdi há cinco anos.

O fidalgo lembrou-se de Álvaro:

— Já não me resta a menor dúvida; nem quero outra prova além da vossa palavra. É passado o quarto de hora; vou restituir-vos o que vos pertence.

D. Diogo abriu o armário e buscou o embrulho lacrado; já ali não estava; o tampo de madeira, cerrado em círculo e outra vez colocado no seu lugar, explicou logo o desaparecimento do papel.

O fidalgo rugiu de indignação.

— Eu compreendo!... exclamou Estácio.

— Foi o maldito padre!

— Não há tempo a perder. Nós nos veremos, D. Diogo, no céu ou na terra.

O mancebo ganhou a porta, e achou-se face a face com D. Francisco de Sousa; o governador tremeu, ao encará-lo, de ira e espanto.

— Apoderai-vos deste mancebo! exclamou voltando-se para um oficial que o acompanhava.

— Senhor Governador, segunda vez peço vênia para passar, disse Estácio inclinando-se.

Ergueu depois a fronte com audácia:

— Senhor D. Francisco de Sousa, lembrai-vos de quem sou filho, e sabei que há vinte dias brinco com a morte a cada instante.

Proferindo estas palavras, desembainhou a espada; o governador e o oficial recuaram para fazer outro tanto. Aproveitando-se dessa aberta, o ágil mancebo de um salto ganhou o corredor, fechou sobre ele a porta para não ser perseguido, e em um instante achou-se na casa da Mariana. Correndo o edifício de relance e certificando-se que já ali não era o frade, ganhou a rua.

Já os soldados advertidos pelo governador estavam em alvoroto; mas não conhecendo o homem que perseguiam, deitaram-se a correr rua abaixo, quando ainda Estácio estava na casa da Mariana; iam longe quando o moço, metendo-se entre o povo, ganhou sem obstáculo a Praia do Boqueirão.

— Só me resta uma esperança! Que Antão haja executado o que ordenei.

Ao chegar à praia viu o mancebo a chalupa, a algumas braças da terra, com os remos a pique. Molina estava sentado à popa. O mancebo não esperou que lhe viessem ao encontro; meteu-se pela água.

— Chegais a tempo, Senhor Estácio! disse Gonçalo destapando os ouvidos. Este homem não é gente, é uma tentação de meus pecados! Apre! que se a coisa dura mais um credo, não respondia por mim.

E o contramestre bufava como se acabasse de safar ele só a âncora de uma nau.

Estácio saltando a bordo estendeu a mão ao jesuíta sem dizer palavra. Molina, compreendendo o gesto e a situação, tirou do peito do hábito o embrulho, que não tivera tempo de abrir, e entregou-o resolutamente ao mancebo com estas palavra:

— Fugi sem demora, que o governador vos persegue.

Posto o frade em terra, a chalupa resvalou sobre as ondas.