As Minas de Prata/III/X

Wikisource, a biblioteca livre


O sacerdote, perito médico d'alma, fez sangrar o golpe, para adoçar as dores e cauterizar a ferida. Contou ao advogado que Estácio estivera em São Sebastião, na casa de D. Diogo, onde ele também era, e apesar de seus esforços conseguira obter do fidalgo o roteiro. Passou a narrar a perseguição do governador até à catástrofe, e rematou com louvores à intrepidez e alto engenho do infeliz mancebo, tão prematuramente roubado à pátria.

Houve nessa narrativa uma lacuna relativa ao rombo da parede e ao sequestro dele P. Molina pelo Antão; o narrador tinha suas razões para não tocar por enquanto nesses pontos.

A narração deixou Vaz Caminha mergulhado em lucubrações profundas; tão ocupado estava em revolver no íntimo as palavras do jesuíta, que não se recordava mais da presença deste, nem se apercebia dos olhos com que ele investigava na sua fisionomia as sombras das imagens interiores. De repente fez-se um lampejo naquele espírito, que luziu fora:

— Então!...

O jesuíta compreendeu a necessidade de soprar a chispa.

— Não vos resta esperança!

— Mas uma voz secreta me diz que ele vive!...

Molina abanou a cabeça:

— Na eternidade!

— Neste mundo, padre! exclamou o advogado inspirado. Pois não vedes que ele não usaria do meio supremo de imolar-se ao fogo com sua fortuna, enquanto lhe restasse um vislumbre de esperança?... Estácio é mancebo de grande força de ânimo, para não precipitar-se estouvadamente. Com uma noite escura, tendo ainda duas horas de avanço, não havia de tentar escapar-se ao abrigo das trevas, antes de chegar ao desespero?

O P. Molina palpitou; mas logo reprimindo essa íntima pulsação, cobriu com um sorriso incrédulo a leve turbação do rosto:

— Grande é o vosso amor por esse jovem, doutor, a julgar pela vossa fé!... Onde quereis que ele tenha escapado, sobre a imensidade dos mares?

O advogado tornara a si do primeiro anelo, e logo conheceu a imprudência que cometera:

— É verdade! murmurou inclinando a fronte.

Quando esses dois homens se olharam de novo, ambos sentiram que já não eram os mesmos, que há poucos instantes comungavam a hóstia de caridade; um sofrendo, outro consolando; um aflito, outro ungido. O pai e o sacerdote haviam desaparecido, deixando em seu lugar dois engenhos superiores, de elevada esfera, dois gladiadores rivais nas lutas da inteligência, os máximos representantes da civilização do século dezoito — o frade e o advogado.

O P. Molina derrubou a fronte, sinal de que se armava com o escudo de Palas para entrar na liça:

— Foi um erro nosso, Doutor Vaz Caminha, não termos há quinze dias sido francos um com o outro; dois espíritos como os nossos não devem nem carecem de lutar à sombra e de emboscada, mas em pleno dia e campo aberto. De quem proveio a culpa? De vós ou de mim, não sei; talvez de ambos, se é que não foi minha só. Eu que vos vi primeiro na arena, antes que me enxergásseis, devia ter mandado soar trombetas, e reptar-vos cortesmente. Não o fiz, somos ambos punidos; o segredo, após o qual ambos corremos, jaz para sempre sepultado no fundo do mar.

— Devo dizer-vos, P. Molina, que vos enganais. Nem corri jamais após algum segredo, nem dele ouvi falar, além do que acabastes de me referir, senão as vozes do povo em outro tempo.

— Estácio não vos confiou a existência do roteiro de seu pai? perguntou o jesuíta.

— Dou-vos minha palavra que Estácio não me confiou semelhante coisa; e quando tal sucedesse, padre-mestre, este homem que vos fala não havia de enchafurdar setenta anos de uma pobreza honrada e laboriosa na lama de uma riqueza sórdida, senão criminosamente adquirida!

— Longe de mim tal pensar, doutor! Quando a vós me referi, foi como tutor e pai espiritual de Estácio.

— Tutor não o sou, mas Álvaro de Carvalho; pai, sim, porém espiritual, que bem sabeis não herda do filho. A respeito pois de bens da fortuna, nunca tomaria a mim o encargo de os gerir.

O P. Molina acreditou que Vaz Caminha se encerrara em uma negativa formal, a menos que realmente Estácio não tivesse calado dele o segredo. Tudo é possível ao egoísmo desconfiado da perversidade humana.

Ido o licenciado, foi a vez do P. Figueira, já cansado de esperar à parte. O negócio grave que o confessor de D. Luísa de Paiva tinha a comunicar, não era outro senão a situação melindrosa a que chegara o negócio daquela deixa pia, em princípio tão habilmente agenciada pelo padre.

As coisas tinham um aspecto desagradável.

Tornemos à fatal alvorada. Elvira, depois da brusca partida de Cristóvão, ficou pasma e gelada. Mas afinal o sangue inflamou-se e incendiou-lhe o cérebro; ela ergueu-se esvairada. Sua mãe entrava nessa ocasião, prevenida pelos fâmulos; vinha decomposta ainda do traje e da fisionomia. Uma pavorosa ira demudara seu semblante em máscara de fúria. Ela precipitou-se no aposento com a ferocidade da loba que penetrasse no redil de uma ovelha.

Mas essa donzela frágil e submissa, que ela pensara ter escravizado à sua vontade, macerando-lhe a carne com o jejum e flagelando-lhe o espírito com o terror, ergueu-se em frente como já o fizera uma vez, na noite em que o punhal erguido ameaçava o peito de seu amante. Cruzando com o olhar feroce da mãe seu olhar ardente, soltou numa golfada de riso sardônico estas palavras pungentes:

— Agora!... Pertenço a ele eternamente neste mundo e no inferno!... Eis vossa obra, mãe!

Pensava a mísera donzela, em sua inocência, que só as virgens podiam ser esposas do Cristo; na sua veemente paixão se condenara de bom grado às penas eternas contanto que estas a encadeassem para todo o sempre àquele a quem amava! Não sabia que sublime é o Deus do cristianismo, o Deus do perdão, para quem o arrependimento afina a boa têmpera da virtude!

O golpe aturdiu a viúva; por algum tempo ela não viu mais que o lado temporal da desgraça que a acometia, a desonra de sua casa, à qual, não obstante seu beatismo, ela era sensível. Foi depois, que as consequências do mal se desdobraram a seus olhos com aspecto assustador. Elvira caiu com uma febre abrasadora; essa enfermidade súbita, transtornando a viagem concertada, demorava a realização de seus projetos. De repente surgiu-lhe no espírito a ideia da maternidade. Se Elvira trouxesse no seio o fruto do louco amor, sua raça não se extinguiria; o sangue judeu que lhe corria nas veias continuaria a reproduzir-se apesar do voto feito de extingui-lo na sua geração, consagrando-o à religião.

O que passou então no espírito dessa fanática mulher, ninguém o sabe. A verdade é que nas crises em que a filha piorava, seu semblante tomava um aspecto de doce resignação, na qual, se não aparecia contentamento, havia consolo; quando ao contrário a enfermidade declinava, seu rosto se anuviava, e os olhos tinham sinistros lampejos.

O estado de Elvira ainda era melindroso; o jesuíta tremendo das consequências de um fanatismo que insuflara, julgou acertado descarregar desse peso a consciência, consultando voto mais autorizado, e colocando-se à sombra do superior.

— Padre Figueira, disse o visitador com severo aspecto, penso que seu zelo excedeu-se. O serviço, que trabalhava em prol da Companhia, era sem dúvida importante. Carecemos dos avultados bens temporais, porque também grande é a cópia de privações que temos a suprir neste mundo. Mas não devia baratear assim a virtude de uma donzela e talvez a salvação dessa alma transviada!

O jesuíta vergou a cabeça:

— Não foi minha a culpa, P. Visitador. Queria que V. Reverência visse meus esforços para conter a impaciência da mãe.

— Sim?... Então a viúva é a mais empenhada?

— Não sei até onde pode chegar um dia o fervor de sua devoção. Às vezes quando está sentada à cabeceira da filha enferma, e vejo os olhos que lhe tem cravados nas feições desbotadas, asseguro-vos, P. Visitador, que essa mulher me faz tremer!...

— Quero vê-la!... disse o P. Molina erguendo-se com autoridade.

Instantes depois os dois jesuítas seguiam caminho da casa da viúva, onde chegaram às seis horas da tarde.

D. Luísa veio abaixo recebê-los, muito honrada com a visita do Padre-Mestre Molina, o insigne pregador, que ela ouvira com tanta beatitude na festa da Epifania. A pedido do P. Figueira, levou-os ambos até à câmera, onde jazia prostrada a mísera Elvira, tão desfeita de seu belo e gentil parecer, que o mesmo Cristóvão talvez a não reconhecera.

O visitador chegou à borda do leito, e debruçando-se sobre a enferma, tomou-lhe a mão transparente de magreza.

— Como vos sentis hoje, minha filha?

O semblante de Elvira, que ao avistar o hábito preto dos jesuítas se velara de ódio e terror, esclareceu-se de repente com um raio de esperança. Aquela voz cheia de unção e doçura, e o sorriso paternal que a orvalhava, insinuaram-se no coração desolado da aflita donzela. Ela sentiu que naquele instante era realmente o ministro do Senhor que lhe falava, e aproximando dos lábios a mão venerável, beijou-a contrita.

D. Luísa que não compreendera, trocou um sorriso de contentamento com o P. Figueira.

— Esperai em Deus que não desampara a sua criatura, filha!

— Só dele espero, padre, o perdão ou o castigo de minha culpa!...

— O perdão!... murmurou o visitador.

Afastou-se então com a viúva e o companheiro para o outro canto da espaçosa câmera, onde tomaram assentos:

— Sei, irmã, pelo P. Figueira das vossas pias intenções e da escolha que fizestes de nossa humilde casa para realizá-las; o que me excitou o desejo de ver-vos.

— Realizadas já estariam elas se dependessem unicamente de mim; mas obstáculos sobrevieram, de que haveis de estar bem informado.

— Sem dúvida; e também é esse um dos motivos da minha vinda aqui. Vosso fervor pela religião é muito louvável, e vos será levado em conta; mas não vos parece que a força de vontade, rara em uma frágil donzela, e em vossa filha levada ao ponto de imolar a honra e talvez a vida, são avisos do céu e mostras de que Deus se opõe ao sacrifício que lhe ofereceis?

— Mostras são, padre, de que o cancro já criou duras e fundas raízes, e não poderá ser extirpado sem cruas dores. Mas sinto-me com ânimo bastante para o martírio!...

O visitador contemplou com severidade a exaltação fanática daquela mulher:

— Estou acreditando que não é o espírito de religião quem fala pelos vossos lábios, senão o mau espírito que para melhor tentar a criatura, se disfarça com ares de devoção. Cuidais vós, insensata mulher, que o Deus dos cristãos, o Deus de clemência e misericórdia, exija o sacrifício de vítimas humanas, como os ídolos pagãos?

— Exige o sacrifício do fogo, pois para isso mandou instituir a Inquisição.

Duas rugas profundas se abriram ao longo das faces pálidas do visitador, como os surcos de duas lágrimas ausentes; ali sumiu ele as amargas ideias que lhe borbotaram aos lábios:

— A Inquisição foi instituída em um tempo em que a palavra de Deus não germinava, ou porque a terra era sáfara, ou porque a semente estivesse eivada; e foi, para castigar os que abandonavam o grêmio da Igreja, não para punir na inocente geração a infelicidade dos pais. Se apesar das gotas de sangue judeu que vos corre nas veias, vos anima o verdadeiro amor de Cristo, a Igreja vos abre o seu regaço, como a qualquer descendente de mouros ou deste gentio da América.

Pôs a viúva os olhos surpresos no P. Figueira; este de cabeça baixa, desde o princípio, parecia querer sumir-se pelo hábito adentro. Não achando apoio no seu confessor, a fanática tirou da sua consciência a réplica:

— Ah! que mal conheceis este sangue judeu, padre! Nem o podeis, vós que não o sentis correr em vossas veias! Uma só gota dele é a faísca acesa, que ao menor sopro levanta a labareda, e requeima a vida. Tendes prova nesta carne rebelde, que apesar dos anos, da abstinência e do cilício, se revoltara, se a não tivesse eu constantemente refreada pela contemplação de Deus. Também a tendes no recente exemplo daquela mísera, que nem meus severos preceitos, nem o natural recato, impediram de se perder tão cedo!... Quem sabe onde a levará ainda a impetuosidade desse sangue danado?

— Vossa filha foi e é uma virtuosa donzela, incapaz de semelhantes desregramentos!

— Não sabeis então? exclamou a viúva.

— V. Reverência a conhecia? perguntou o P. Figueira.

— Sei tudo! respondeu o visitador. Não conhecia esta donzela a quem vejo pela vez primeira; mas o que não for cego há de ver, que é preciso o heroísmo da virtude e a candura da inocência para fazer como ela, ao amante, o sacrifício de seu amor!

A viúva quis replicar; Molina a interrompeu:

— Vossa criminosa insistência já custou a inocência à vossa filha; vai custar-lhe ainda a vida. Que seria de vós, infeliz mulher, mãe desnaturada, se aquela vítima de vossa crueldade, confundindo vosso fanatismo com a verdadeira e santa religião, a renegasse cheia de horror na sua última hora, e expirasse descrente?... Quem responderia ao Senhor por essa alma perdida, senão vós?...

Esmagando a devota com a ameaça tremenda, o visitador deixou-a sob o peso de suas palavras, e outra vez aproximou-se do leito. Elvira, entreabrindo os olhos lânguidos, e pondo-os naquele semblante, como os poria no céu, achou em sua alma, estanque de prazeres e alegrias, um sorriso para trazer aos lábios.

— Restabelecei-vos depressa, para a ventura, minha filha. Sereis esposa daquele a quem amais; e eu mesmo abençoarei vossa feliz união.

Quem dissera que era esse o mesmo frade que na igreja do Colégio durante o sermão fulminara com sua imprecação a infeliz mulher, que outro crime não tinha senão amá-lo?