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As Minas de Prata/III/XI

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É tarde da noite.

Vaz Caminha prolongou mais a costumada vigília; ainda ele rabisca no seu telônio, à luz mortiça da candeia. Sentia o bom velho que a vida se lhe escapava rapidamente, e esforçava terminar a correção de sua obra para deixá-la concluída por sua morte, legando-a a algum rico patrono, que a fizesse imprimir e a amparasse com seu valimento. Outrora destinava ele essa herança para seu afilhado; mas Deus o tinha chamado primeiro, dando-lhe assim aviso de que se apressasse em reunir-se aos seus que já eram todos idos.

No dia em que fora ao Colégio, três havia, o advogado ao ouvir a narração do P. Molina, tivera realmente um pressentimento de que Estácio ainda era vivo; e mais se fortalecera na esperança observando a tática do jesuíta para tirar dele pormenores acerca do roteiro das minas de prata. Mas aos setenta anos a alma tem perdido o calor, e já não vicejam nela as rosas, senão as pálidas e rápidas anêmonas, que ao menor sopro se desfolham. Assim a esperança murchou no coração do velho com as primeiras sombras da noite.

Continuava o laborioso escritor sua vigília, quando no princípio da escura rua soaram passos ligeiros, acompanhados do tinir da espada ao longo do quadril. A pessoa, que era, tinha elevada estatura, e vinha embuçada em manto de amplas dobras e cores escuras. Dirigiu-se direito à porta do advogado; mas vendo as réstias de luz que filtravam pelos interstícios da janela, bateu de leve nas grades. Vaz Caminha interrompeu o trabalho um tanto surpreso, mas não muito; pois não era a primeira, nem segunda vez que lhe batiam na porta a tais desoras.

— Quem bate? perguntou de dentro da rótula.

— Uma pessoa que vem de parte de D. Fernando de Ataíde sobre negócio urgente! respondeu voz desconhecida, que vibrou uma corda íntima no coração do velho.

Ele correu a abrir. O desconhecido entrou rápido, fechou a porta sobre si, e enlaçou o advogado com os braços, apertando-o ao peito.

— Vitória, mestre!... murmurou ele.

— Estácio!... Filho!... exclamou o velho trêmulo de comoção.

E não pôde dizer mais. Abraçou o mancebo, e calcando a mão ao seio, parecia querer ampará-lo contra a súbita e tamanha alegria que ameaçava despedaçar as arcas do peito.

Ao tempo que isto acontecia no corredor da casa do advogado, a rótula quase fronteira se abria, e dois vultos saíam; um partiu de corrida rua acima, o outro se agachou junto à porta do advogado e depois à janela para escutar.

É ocasião de remontar os acontecimentos até o instante em que ficou Estácio desamparado no meio do oceano, exposto às iras de D. Francisco de Sousa.

As ilhas dos Abrolhos haviam surgido, e uma centelha brilhara nos olhos de Estácio.

— Quando julgais que estaremos fronteiros às ilhas? perguntou o mancebo ao contramestre.

— Com este maldito vento que nos atrasa? Lá pelo quarto da prima!

— Em quanto tempo pensais que possa uma chalupa fazer a travessia das ilhas à terra firme?

— Conforme a maré.

— Com o preamar?

— É negócio para oito ou dez horas.

— Então esperemos ainda.

— Bravo! Destas falas gosto eu!

Raquel levou do rosto do mancebo ao céu os lindos olhos plenos de graça, e de lá os trouxe embebidos em eflúvios para ungir a quem amava em silêncio.

Estácio afastara-se com o Antão para lhe falar em segredo.

— É pena! disse o contramestre com um suspiro porque já queria bem a este diabo de navio!

Eram dez horas do dia. O tombadilho transformou-se em uma oficina de carpinteiro, onde toda a maruja trabalhava com ardor extraordinário. Entretanto as galés se aproximavam rapidamente impelidas pela força dos remos; a cada instante o vulto dos navios crescia sobre as águas como um fantasma. Ao cair da noite já se descobria a olho nu o casco e o movimento compassado dos remos.

Apenas foi escuro bastante, arreou-se pelo flanco esquerdo do bergantim uma grande balsa ou jangada, em que os marujos haviam trabalhado todo o dia. Imediatamente transportaram para ela viveres, armamento e munições, e todos quantos objetos de valor pôde ela conter. No centro estava colocada a gaiola de ferro de bordo, que reforçada convenientemente, serviu de prisão aos três judeus. Por prudência foram todos amordaçados.

— Quisera poupar a vosso pai, disse Estácio a Raquel, essa medida violenta; mas vós mesma me tirastes a confiança em sua palavra.

A donzela abaixou a cabeça, acabrunhada de tristeza.

— Fazei o mesmo a mim para que não me fique o remorso do que pratiquei!

— Remorso de quê? Se fostes vós que o salvastes! O seu perverso intento fora a sua perdição, e mais tarde há de ele bendizer a coragem com que arrostastes sua ira.

Às onze horas o bergantim estava fronteiro com os três rochedos dos Abrolhos. Foi ordenado o embarque da gente na balsa, que apartou-se do bergantim, presa porém com uma espia. A chalupa, ao portaló com o resto da maruja, esperava o comandante. Raquel durante todo esse dia não tinha saído de perto do mancebo; no momento do embarque lhe travou ela da mão:

— Eu vos suplico uma graça!... Vós ma deveis em paga da sombra de felicidade, que dissestes, vos dei pouco há.

— Que desejais de mim?

— Se eu tive a fortuna de representar ao vosso pensamento, no instante solene do perigo, a imagem daquela que adorais, reclamo nesta qualidade o direito que lhe coubera, se aqui estivesse, de acompanhar-vos em todos os transes desta noite aziaga.

Estácio achava tudo isto estranho; mas a instância do momento não lhe deixava pausa para demorar o espírito neste incidente. A suavidade daquela voz maviosa, repassada por um hálito perfumado, e a tépida pressão da mão acetinada, influíram docemente em sua alma. Eram as primeiras carícias de amor que libava seu coração; e como para ele Inesita simbolizava o amor, fazia-se em seu espírito uma doce alucinação, pensando que vinham da formosa donzela esses bafejos de ventura.

— Seja como quereis! balbuciou o mancebo.

Ficaram eles dois sós a bordo do bergantim. Estácio desceu ao paiol. Raquel viu sem estremecer o mancebo entrar naquele vulcão de pólvora com uma mecha acesa. Supôs que ele mudara sua primeira resolução de atirar-se ao mar, e preferira a explosão do navio, que lhe assegurava a vingança. Nem um músculo de seu rosto contraiu-se; não fez um gesto para conter a mão que ia vibrar o raio; apenas se aproximou do mancebo para que a morte os unisse.

Mas Estácio não nutria esse projeto; colocou a mecha em cima de um barril de pólvora, como uma vela no tocheiro. Outra mecha de estopa fora aplicada ao ouvido do rodízio.

— Daqui a quatro horas!... disse ele.

Sorriu à judia, e tomando-a pela mão, levou-a para a chalupa, que afastou-se rapidamente do navio. Antão, a quem fora confiada a balsa, cortou a espia e mandou remar para os rochedos. Continuou o bergantim, cujo leme fora amarrado para conservar-lhe o rumo, a singrar placidamente no bordo do mar, impelido pelas rajadas da brisa.

A chalupa e a balsa breve se esconderam por detrás dos rochedos. Quando teve lugar a explosão, já iam longe bastante para não serem alcançados pelo grande clarão, e descobertos.

No dia seguinte abicou à costa Estácio com sua gente. Resolveu o prudente mancebo prosseguir a jornada por terra durante alguns dias, dando tempo de afastar-se a frota do governador daquelas paragens. Antão com alguns índios ficaram para conduzir a chalupa e a balsa a fim de continuar a viagem costa a costa.

Na tarde daquele dia chegara Estácio ao Recôncavo da Bahia, no lugar da Sapucaia, assim chamado de uma grande árvore dessa família que ensombrava o terreiro de uma palhoça.

Tomou o bando posse da choupana onde morava uma pobre gente, que se achou bem paga do agasalho com alguns trastes do bergantim. As ordens de Estácio eram positivas e terminantes. Ninguém da companhia devia comunicar com a gente da terra, para se não divulgar quem eram e donde vinham os recém-chegados.

Se acaso, na ausência do mancebo, viesse contra o bando gente armada em força maior, de modo a tornar a resistência impossível, nesse caso deviam meter-se pelo mato e evitar assim o reconhecimento e captura até que Estácio voltasse da cidade.

Em suma, o estudante não queria que os prisioneiros holandeses fossem entregues à gente de El-Rei antes de entender-se ele com D. Diogo de Menezes. Era o meio de obter o perdão de Samuel por ele prometido à linda judia.

Bem recomendado tudo ao zelo do Antão, partiu-se Estácio em canoa acompanhado unicamente de Esteves. Horas havia que chegara à ribeira.

— Esteves, adivinho quanto haveis de estar impaciente por abraçar vossa mãe; é preciso porém que esta noite não vos veja ninguém.

— Ninguém me verá, Estácio; se for preciso, passarei a noite embaixo d’água.

— Basta que vos deiteis no fundo da canoa, mas não aqui junto à praia. Amarrai àquela boia que ali vejo, e dormi tranquilo.

Com pouco chegara à casa de Vaz Caminha.

Entretanto o velho advogado passara com o estudante ao cartório e daí à câmera de dormir, aposento interior, servido apenas por uma porta.

— Aqui estaremos melhor para conversar! disse o advogado à puridade. Mas falai, como se nos vissem e escutassem, ao meu ouvido e sem gesto.

— O roteiro está enfim em meu poder!

— Ainda o trazeis sobre vós?

— Tenho-o à cinta.

— Grande imprudência, Estácio! É expordes, além do segredo, vossa existência.

— Trouxe-o mesmo para confiá-lo à vossa guarda.

— Segredos há, filho, que se não confiam, porque eles levam consigo um verme que ataca o coração, a desconfiança.

— Desconfiar eu de vós? É isso jamais possível.

— Ninguém sabe que vozes soarão amanhã em sua consciência. Acredito que nunca viésseis a suspeitar de vosso mestre e padrinho, quaisquer que fossem as coincidências fatais; mas se esse objeto de tanto valor vos fosse roubado estando em minha mão, todo vosso amor e abnegação não bastariam para reprimir este queixume que vossa alma havia de murmurar um dia: “Talvez não me sucedesse essa desgraça se eu mesmo velasse sobre meu tesouro”. Eu não quero que entre o vosso e meu coração se interponha nem essa tênue sombra. Acrescentai que em minha mão mais exposto que em parte alguma estaria o roteiro. Neste momento sem dúvida já vossa chegada à cidade é sabida; amanhã talvez não haverá canto de minha casa que não tenha sido corrido.

— É impossível, mestre; acabo de desembarcar só com Esteves, e da ribeira até aqui não fui encontrado por viva alma.

— Deveis conhecer o tino e previdência dos jesuítas, Estácio; pois lutastes já com um dos mais perigosos!

— O P. Molina!... Mas lembrais-me que é tempo de vos contar o muito que passei desde o recebimento de vossa carta até este instante!...

— Sacrifico com mágoa à vossa segurança o prazer imenso de ouvir-vos agora, e fartar-me de vossa conversação, da qual tanto há que estou privado. Antes de tudo, Estácio, cumpre pôr a bom recado o roteiro, de modo que possais zombar da astúcia de vossos perseguidores.

— Esqueci-me dizer-vos que o roteiro já o tenho de cor! Se o tirarem desta cinta, não o tirarão daqui, da memória. Quando o decorava, as ondas rugiam, e eu lembrei-me de Demóstenes ensaiando nas praias de Atenas a sua coragem de orador contra as tempestades populares. Eu preparava o meu espírito contra as emoções da vida!...

— Tivestes uma feliz lembrança, Estácio. O P. Molina acha em vós contendor digno dele!

— Oh! não, mestre. Não sou mais que noviço nos trabalhos da existência em que sois professo.

Vaz Caminha refletia:

— Decorando o roteiro, Estácio, adquiristes grande vantagem sobre vossos adversários; mas não estais de todo seguro contra suas maquinações. Suponde que vos roubam eles o manuscrito, e se desfazem de vós para legitimar a sua propriedade e evitar que os inquieteis?... De que vale o que trazeis na memória? Suponde ainda que apossando-se do roteiro, destroem sobre o terreno certas indicações que assinalam o rumo... Não ficará inutilizado quanto sabeis? É preciso defender vosso segredo, mais que nunca. E na maneira de o fazer não pedi conselho de ninguém...

— Nem de vós, mestre?

— De ninguém, senão de vosso engenho, que não vos há de faltar, porque Deus justo o inspira. Sois portador de um germe, que pode ser o da morte ou da grandeza. Mostrai-vos digno dessa situação em que a Providência vos colocou.

— Cuidais então, mestre, que meu primeiro cuidado seja pôr em segurança o roteiro?

— Quanto antes. Já devíeis ter partido.

— Oh! mestre, lembrai-vos que há apenas instantes que vos abracei depois de cerca de dois meses de ausência!...

— E não me lembro mais do que devera! Pois se ouvisse minha consciência, antes que meu coração, já não estaríeis aqui! Cada átomo daquela areia que vaza, é talvez um ano de vossa felicidade a escoar-se! Quem sabe!

— Parto já; mas antes queria falar-vos de uma coisa, que bem sabeis.

— De vosso amor?

— De meu amor, sim, mestre! Dessa esperança que alimentastes no princípio, e que no momento de apagar-se para sempre, ressurgistes do desespero onde se afundava! Dessa luz que me guiou todo esse tempo através dos mares revoltos e dos mil perigos que me cercavam! Pela declaração que me enviastes de D. Fernando, Inesita é livre!...

— Ainda não é; mas será no instante em que o exigirdes. Assim combinamos para evitar novos compromissos.

— Então rogo-vos seja vosso primeiro cuidado aplainar essa dificuldade, como será o meu, amanhã, decidir do meu destino.

— Parece-me que tendes de vos apresentar ao governador.

— Certamente; devo dar-lhe conta do que obrei em seu nome e no serviço d'El-Rei.

— Não vos parece que deva essa obrigação preceder ao que vos diz respeito individualmente?

— Assim devera ser; mas razões fortes me obrigam a adiar para depois a obrigação. Apesar das coisas importantes que trabalhei em bem do Estado, não sei como pretende dispor de mim D. Diogo de Menezes. Se tenho de ser novamente sepultado em uma masmorra, que ao menos leve o desengano que me há de matar de uma vez sem penar, ou a esperança viva que outra vez me ressuscite.

Estácio travou das mãos do velho, a impô-las sobre o coração:

— Sim, mestre; este coração estua com a sede de felicidade que o devora. Como a desgraça, o amor foi nele precoce; veio com a infância. Há tanto que ama longe das vistas dela, não tendo para alimento mais que um olhar de ano em ano! Viveu até agora da própria seiva, e sente-se exaurido de tanto afeto dado, e nenhum recebido em volta. Se novas esperanças o não encherem, há de estalar! Sim, pois me sinto como o viajante extenuado pela longa e árdua jornada: quando lhe arrancam dos lábios o licor generoso que lhe deve restituir as forças, desmaia e sucumbe!... Só ela pode dar têmpera a esta alma!

Estácio dizia a verdade; ele sentia essa ardente sede de amor, e o que ainda mais a excitara foram as palavras e os gestos da linda judia. A beleza amante e sedutora tinha despertado em sua alma o sabor das carícias, como o perfume da manga prure o paladar.

— Tendes o direito a essa felicidade por que almejais. Ide pois em busca dela, Estácio. Amanhã espero que D. Fernando de Ataíde tenha desligado de sua palavra a D. Francisco; logo que isso suceda, podeis apresentar-vos em casa do fidalgo.

— Abreviai o mais possível.

— Até lá ocultai-vos, que não saiba o governador de vossa chegada. Não torneis aqui.

— Onde vos verei?

— Procurai na Rua de Santa Luzia uma casa que ali há de terraço e cercada de um bananal. É a única. Entrai afoitamente e procurai D. Marina de Peña, de minha parte. Lá me esperareis!

— Até lá, mestre!

— Deus vos acompanhe!

Estácio encaminhou-se à porta; mas o advogado o reteve um instante enquanto com o olhar sondava a rua. Nada aparecia de suspeito; o mancebo pois subiu a rua com passo seguro e ligeiro. Mal tinha ele andado uma toesa, descobriu um vulto que se movia diante na sombra; tirou a espada da bainha, sobraçou-a por cima da capa, e continuou tranquilo seu caminho. Ao sair no Largo da Sé, ouviu assobios e logo depois o som de muitas pisadas; desviou à direita, porém receosa de que escapasse, a quadrilha correu-lhe sus.

Voltou-se então denodadamente para seus agressores, e encostando-se à parede da igreja, pôs-se em guarda. Os assaltantes, em número de dez, foram-se aproximando; um indivíduo ficara de parte, simples espectador, e Estácio ouvira que fazia em voz baixa uma recomendação aos companheiros.

— Não o matem: firam só quanto baste para segurá-lo!

Esse cabo noturno não era outro senão mestre Brás, avisado em tempo por seus espias da chegada de um vulto suspeito à casa do advogado. Fiel às ordens do visitador, o taberneiro enviara o Anselmo com a gente em busca do corpo de Estácio. Depois de inúteis pesquisas pela costa, voltara a expedição à cidade. Não se fatigou a pertinácia do P. Molina; incumbiu ao Brás de vigiar dia e noite a casa do advogado.

Como diante da bizarra e audaz atitude do mancebo, os assaltantes sofrendo o ascendente que a verdadeira coragem exerce sobre o atrevimento de mercenários ignóbeis, hesitassem no ataque, Estácio, disfarçando a voz, lhes enviou esta intimativa:

— Vamos a isso! Estou com pressa!...

— Avancem! Que vergonha!... soprou o Brás.

Os bandidos avançaram, e ouviu-se o rangir das espadas. Estácio sempre coberto com uma parada vigilante e impenetrável, só abria-se quanto tinha o golpe infalível. Então caía um corpo. Contudo o número dos assaltantes acabaria por fatigá-lo.

Por esse tempo desembocou no Largo da Sé um vulto, que logo reconhecia, quem uma vez o tivesse visto, pelo passo desgarrado e pelas guinadas do corpo. O tinir do ferro feriu-lhe imediatamente o ouvido; lançou os olhos para o lugar do ruído, e percebeu o grupo de pessoas que se movia desordenadamente na sombra.

— Han! han!... Briga-se por aqui!...

João Fogaça saía àquelas horas de casa de Cristóvão, onde estava agasalhado. Depois da ceia os dois amigos tinham estendido a prática pela noite adiante. Vários e interessantes foram os assuntos. Primeiramente conversaram de Estácio, sobre quem não cessavam de fazer conjeturas. Cristóvão já tinha como Vaz Caminha chorado perdido o irmão d'alma: o capitão de mato conservava a fé inabalável de seus caboclos, e julgava-se obrigado a esperar até que aparecesse uma testemunha de vista.

Esgotado este tema, Fogaça puxou a palestra para Elvira, de quem notava que seu amante evitava de falar. A tristeza de Cristóvão, que a recordação de Estácio aumentara, chegou à maior intensidade; seu rosto carregou-se de sombras sinistras. Depois de ter respondido vagamente, mudou por sua vez o assunto, distraindo a atenção do forasteiro com a lembrança da Mariquinhas dos Cachos, cuja história exigiu lhe contasse. Já no tempo de sua convalescença, quando a viúva do tendeiro o velava à cabeceira com tanta solicitude, Cristóvão, interrogando-a, adivinhara a mútua afeição dessas duas almas, que sua própria timidez separava, e jurou que breve as havia de reunir.

João Fogaça contou balbuciando e enrubescendo, como um namorado de quinze anos, os seus afetos pela formosa Mariquinhas. E tinha razão de corar; porque neste corpo rompido aos trabalhos, neste organismo robusto e válido, quando todos os órgãos se tinham desenvolvido, o coração ficara enganado. Seu amor era núbil apenas.

Ao terminar, disse-lhe Cristóvão:

— Sois um cobarde, João!

O capitão de mato olhou-o pasmo.

— Não percebo!

— Pois vós morreis de amores por uma donzela que vos retribui com extremo igual; e quando ela corre a vós para que a arranqueis a uma união forçada, fugis abandonando-a ao marido, a quem a vendem?

— Que dizeis, Cristóvão?...

— A verdade. E ainda mais, a Providência vos envia de novo essa mesma mulher livre dos primeiros laços e sempre amante e boa, e vós, que ainda lhe quereis como outrora, a deixais consumir na tristeza e solidão os melhores anos da vida?

— Por que não me disse ela que tal era seu gosto?

— Se não tivestes a coragem de perguntar-lhe!

João Fogaça começou a assobiar entre dentes. Essa alma pachorrenta e preguiçosa tinha raras e surdas, mas terríveis tormentas; as paixões que acordavam nela eram tempestades impetuosas e medonhas como as que vêm no fim do inverno, depois do frio. As palavras de Cristóvão e o tom severo, com que as proferiu, foram condensando a procela. As chagas deixadas pelo casamento de Mariquinhas e agora magoadas; o remorso e a vergonha de ter causado a infelicidade da moça e a sua própria; o ridículo desse silêncio de quatro anos de um amor partilhado; tudo isto revolveu na vasa daquele coração. Cristóvão o percebeu.

— Muito há que estou para dizer-vos isto, João; chegou o momento. Bem vejo que vos aflijo; mas cedei à razão.

— Eu dera o resto de minha vida para que outro que não vós, Cristóvão, me tivesse dito o que proferistes.

O capitão de mato ergueu-se e ganhou a rua. Ele sentia a necessidade de brigar, ou pelo menos de andar dez léguas naquela noite; lamentava não achar-se no sertão em frente de alguma das mais ferozes tribos selvagens. Foi nestas disposições guerreiras que apareceu no Largo da Sé. Apenas percebeu o que passava do outro lado, caminhou direito ao grupo e foi espadeirando de alto a baixo ao som deste singular estribilho:


Larari-tari-tatá
Tororu-loru-

totu.


O compasso era marcado pela espada na pele dos sicários. Mestre Brás, satisfeito com a pranchada que lhe administrara o longo braço do capitão de mato, disparou a corrida e evaporou-se; atrás dele seguiu a gente do Anselmo, que já conhecia o homem desde a noite de Ano-Bom.

— Corja de poltrões!... gritou João Fogaça vendo-os fugir.

Voltou-se então para Estácio que se embuçava cuidadosamente com receio de ser por ele reconhecido.

— Quereis vós brigar comigo, já que os poltrões nos deixaram a ambos com água na boca?

— Outra vez! Agora vou apressado! respondeu uma voz de entre as dobras do manto que lhe vendavam o rosto.

Bem desejos tinha Estácio de lançar-se aos braços do homem a quem devia em grande parte os sucessos de sua empresa e agora por cima o serviço de livrá-lo da matilha de salteadores; mas a prudência exigia que moderasse os ardentes impulsos de sua gratidão. Continuou pois seu caminho e desceu à praia.

Defronte uma canoa amarrada à boia embalava-se brandamente à arfagem da onda.

— Naturalmente Esteves dorme! pensou o estudante.

Tirou a roupa da qual fez uma trouxa que amarrou na nuca e deitou-se a nado para a canoa. O pescador estava de feito adormecido; saltou dentro o nadador tão sutilmente que não o despertou, e ali, sentado à proa, com os olhos derramados pela superfície do mar, afundou-se nas cogitações de seu espírito.

Onde ocultaria seu tesouro que o pusesse a abrigo da ambição dos jesuítas e da cobiça dos governadores?

— Se o oceano mo restituísse!...

Desatou a corda que prendia a canoa e deixou-a vogar mansamente à flor dos mares. Então seus olhos correndo a alva fita de areias que se desdobrava até o sítio do Bonfim, divisou o negro contorno de um bosque espesso, que demorava a alguma distância da praia, na direção do monte Calvário.

— A cruz da Expiação! balbuciou dentro d'alma.

Deixando a canoa boiar à discrição da maré que a impelia docemente para a ribeira, Estácio nadou para a praia. Aí chegando, buscou um lugar onde havia pedras, para tomar terra e ganhar o gramado, sem que ficasse impresso na areia o vestígio de seus passos. Encaminhou-se direito ao arvoredo sombrio e nele penetrou sem hesitação.

Uma vereda cortava esse bosque ao longo, e servia aos que transitavam do Forte do Rosário para a cidade. Um claro havia a meio dele, onde se erguia sobre um tosco pedestal de alvenaria uma cruz preta de pau-santo, à qual dava o popular o expressivo nome de Cruz da Expiação.

Rezava uma antiga tradição que poucos anos depois da fundação da cidade, ali aparecera certa manhã o corpo de um homem empalado na pele de uma mulher. Muitas versões correram então a respeito desse horrível acontecimento, que indicava uma vingança bárbara; mas não se soube nunca nem o nome do autor nem os das vítimas. Os corpos foram enterrados no mesmo lugar, onde tempos depois apareceu levantada aquela cruz sobre o pedestal de alvenaria.

Como todos os lugares que foram teatro de um acontecimento terrível e misterioso, era aquele cercado do pavor e respeito popular. Durante a noite os mais corajosos evitavam por aí passar, preferindo fazer uma grande volta pela praia. Mesmo com o sol alto o que ali se arriscasse, transpunha o sítio com passo rápido, levando os olhos no chão e o Credo na boca.

Em sua infância muitas vezes Estácio levara até lá suas correrias. Já naquele tempo, impelido pelo seu caráter a afrontar o perigo, ele passava por aí frequentemente, tomado de certo respeito e tristeza pela recordação fúnebre, porém sem vislumbre de temor; ao contrário com alguma curiosidade de sondar o mistério dessas abusões populares.

O mancebo conhecia pois perfeitamente o sítio para onde caminhava.

O pedestal da cruz estava carcomido pelo tempo; as escaras do reboco deixavam a descoberto alguns tijolos já vacilantes pela queda do cimento; com a ponta do punhal Estácio conseguiu arrancar dois deles; cavando no fundo um pequeno vão, introduziu o cossolete onde estavam guardados os papéis, e restituiu os tijolos à sua antiga posição. É escusado dizer para quem lhe conhece a prudência, que antes de efetuar esse trabalho, percorreu os arredores sondando a treva da noite; e durante ele tinha o ouvido alerta e o olho vigilante.

Terminado o trabalho retirou-se; mas o espaço arenoso que mediava da cruz à beira do bosque, atravessou-o retrocedendo de joelhos, e apagando com as mãos os traços que ali deixara na ida e agora na volta. Tornou pelo mesmo caminho à praia, que foi beirando por dentro d’água até frontear a canoa. Em poucos instantes a alcançou a nado; acordou Esteves e remaram para o lado da Vitória. Ali desembarcara ele para ir amanhecer em casa de D. Dulce, enquanto o pescador ganhava a ribeira.

Estácio ficou então perfeitamente tranquilo em relação a seu tesouro.

Vinha rompendo a madrugada. Ele aproveitou as últimas trevas para ganhar a casa de D. Dulce.

Prevenida pela criada, a dama se compôs para vir receber a matutina visita que lhe enviava seu advogado; dando com os olhos em Estácio, estremeceu de surpresa e contentamento; uma onda de púrpura derramou-se pelo seu belo semblante, roseando até à nascença do colo, enquanto os olhos afogavam em uma lânguida meiguice.

— O Doutor Vaz Caminha enviou-me à vossa casa, senhora, com recomendação de aqui esperá-lo.

— Eu tinha pedido ao meu velho amigo que vos trouxesse a esta vossa casa, logo que fôsseis de volta. Felizmente eis-vos são e salvo. Vossa ausência já nos causava bem cruéis receios!...

— Também a vós, senhora? Pensava não vos ser conhecido.

— A primeira vez que deparou-me o acaso ver-vos, as feições lembraram-me a pessoa a quem mais amei neste mundo... Um filho, que se fosse vivo, teria a vossa idade e vossa gentil presença. Depois soube pelo Dr. Vaz Caminha vosso nome e muitas particularidades da vossa vida; meu interesse aumentou, porque ao primeiro motivo juntou-se outro, o da gratidão.

— Como é isso possível, se agora vos vejo pela primeira vez!

— Vosso pai Robério Dias prestou ao meu relevantes serviços; e como sejam ambos falecidos, nós herdamos seus títulos, vós a minha gratidão, eu a vossa benevolência.

— Quais serviços foram esses, se vos praz, senhora? É justo que não ignore eu uma nobre ação de meu pai.

— Heis de sabê-lo mais tarde, vos prometo; agora dispensai-me desse dever.

Estácio inclinou-se.

— Sois órfão de pai e mãe; o Doutor Vaz Caminha, sei eu que pelo seu amor substituiu o primeiro; mas vossa tia é bastante idosa, e seu pensamento, já todo voltado para o céu, pouco tempo tem para dar-vos. Uma amizade verdadeira me liga hoje a vosso mestre; esse título, junto aos outros de que vos falei, não pensais que me autorizem a pedir-vos a graça de substituir a mãe que perdestes?

— Oh! senhora!...

— Não me julgais digna desse encargo?

— A mim é que faltam títulos para merecer a vossa solicitude!

— Então aceitais?... E eu entro já no exercício de minhas doces atribuições. Sei Estácio que amais uma donzela, de quem sois retribuído, mas de quem vos trazem afastado. Não posso eu fazer nada para vossa felicidade?

— Podeis fazer muito com os vossos votos, que Deus não deixará de exalçar!

— Esses vos acompanharão sempre. Se vosso amor vos der algum desgosto ou mágoa, prometei vir desabafar em meu seio. Dizem que o coração da mulher é insondável; mas no meu, que tanto já sofreu e vos está aberto, aprendereis a conhecer esse abismo. Prometeis-me isso?

— De bom grado, senhora; doces devem ser as mágoas tratadas por vossas mãos.

— Outra pergunta ainda tenho o direito de fazer-vos. Não vos escandalizeis com ela. A desgraça de vosso pai deixou-vos na miséria; haveis de carecer de meios para manter-vos como deveis à vossa pessoa?

Estácio empalideceu; sua resposta foi glacial.

— De muito careço, senhora; mas nada preciso.

— Atendei, antes de dar-vos por ofendido. Meu pai deixou-me rica, imensamente rica; mas houve tempo em que estivemos na miséria, e quem dela salvou-nos foi Robério. Por que não pagarei agora, que mudaram as sortes, esta dívida sagrada!

— Não herdei nenhum crédito ou escrito de tal dívida, senhora; e pois não me julgo com direito de cobrá-la.

— Mas o título, que me deixastes tomar, dá-me a autoridade...

— Supus que o tomava uma pessoa, como eu, privada de bens da fortuna, e só a respeito da afeição. A uma dama rica não o posso consentir!

— Pois serei pobre para vós, pobre como Jó, ouvistes? exclamou Dulce inquieta. Prometo nunca mais falar de semelhante coisa.

— Eu vos renderei graças.

— Mas se não posso repartir convosco do meu, posso informar-me de vossas esperanças de futuro. Que contais fazer?... O segredo de vosso pai ficou realmente perdido? Nunca tivestes notícia dele?

Estas perguntas despertaram a desconfiança no ânimo do mancebo e o tornaram reservado.

— Não sei a tal respeito mais do que diz o vulgo; e peço-vos, senhora, desviemos a conversa deste triste assunto, que me penaliza sempre pelas recordações amargas que desperta.

— Desculpai-me se magoei vossa alma, Estácio. É preciso que a mãe saiba onde se dói o filho para dar-lhe alívio.

Chegou Vaz Caminha. Acompanhava-o Gil carregando uma pequena maça com roupa de gala para Estácio; no quintal estava um cavalo ajaezado. O pajem atirou-se aos braços do seu cavalheiro chorando de alegria; e jurou que nunca mais se separaria dele.

O advogado pediu vênia à dama pela liberdade de que usava em sua casa. Enquanto em uma câmera próxima Estácio se trajava com apuro para a visita que tinha de fazer, o advogado ficara conversando com sua formosa cliente, e lhe dizia o ato importante que o mancebo ia praticar naquela manhã. Dulce sentiu uma tênue sombra de melancolia toldar-lhe o espírito, e emudeceu pensativa.

O mancebo apareceu galhardo e gentil sob as vestes pretas que trazia no dia de Ano-Bom. Vaz Caminha saiu fora no quintal para fazer chegar o cavalo. Dulce, aproveitando esse momento, arredondou os formosos braços em torno da cabeça do mancebo, e pousou-lhe um beijo na fronte. Ao olhar surpreso e interrogador respondeu um sorriso meigo:

— Vossa mãe vos beijaria neste instante. Ide, e sede feliz, Estácio, como vos eu desejo!...

Ele beijou as mãos da gentil senhora, e partiu a galope para Nazaré. Levava por cima das roupas a capa escura e com ela rebuçava-se para não ser conhecido.

Minutos depois apeava à porta do fidalgo. Atravessando os corredores para chegar à sala onde o pajem o conduzia, passou diante de uma porta lateral entreaberta. Inesita, sentada no aposento, ao rumor dos passos ergueu os olhos, e encontrou os do mancebo fitos nela. A alma de ambos no primeiro movimento precipitou-se, uma para a outra, com tal força de atração magnética, e tão grande ímpeto que abandonou o invólucro, deixando os corpos imóveis como estátuas de mármore em atitude de surpresa. Foi depois que essas duas almas se abraçaram longa e estreitamente, que tornando a animar o corpo ermo, lhe imprimiram a ação da vontade.

Os dois amantes deram o primeiro e tímido passo um para outro, retidos pelo pudor e por um vago receio; suas mãos estendidas iam reunir-se, quando a porta da sala abriu-se no fundo do corredor, e D. Fernando de Ataíde apareceu no limiar acompanhado pelo castelhano.

D. Fernando acabava de renunciar à mão de Inesita, apresentando, como justa e digna escusa, não ser amado pela donzela; e apesar de todas as razões produzidas pelo fidalgo, manteve-se firme e inabalável em sua resolução. O terrível segredo de sua família bradava-lhe na consciência.

Os dois rivais cruzaram um olhar diverso: o de Estácio foi doce e de gratidão, o de Fernando amargo e de rancor.

Inesita, ouvindo a voz de seu pai, deixara-se cair sobre a poltrona, e quentes lágrimas orvalharam o pungente sorriso com que ela se despedia do amante. Estácio, desprendendo-se do seu êxtase, caminhou à presença de D. Francisco, que ficara no limiar da porta, ouvindo o aviso do pajem:

— Que buscais nesta casa?

— Precisando falar-vos, senhor, pareceu-me que nela vos devia procurar.

— Para que, se não tenho negócios convosco?

— Tenho-os eu com o Senhor D. Francisco de Aguilar.

— Dir-me-eis quais sejam?

— Ides saber, Senhor D. Francisco. Uma fatalidade pesou sobre minha casa, que não só roubou a vida de seu chefe, como os haveres abastados e as honras adquiridas por seus ascendentes. Uma sentença de El-Rei manchou a memória de meu infeliz pai como traidor. Deus porém me inspirou a força de reparar a injustiça dos homens. A minha casa vai ser restaurada, e terá outro esplendor maior do que nunca teve. Suas riquezas serão incalculáveis; nenhuma fruirá no Brasil tão grandes honras como as que eu saberei conquistar. A memória de meu pai solenemente reabilitada vestirá novo lustre. Isto ainda não está feito, senhor, mas breve se fará, eu vos juro. Suponde pois que não é o mísero deserdado por uma injusta sentença quem agora vos fala; mas um cavalheiro rico de haveres e nobreza.

— Costumam embalar com esses contos de fada as crianças. Muito estranho, pois, que tenhais vindo para tal fim a uma casa respeitável.

— Não duvidareis do que vos digo, senhor, quando souberdes que o segredo das minas de prata, que tão fatal foi a meu pai, e que se julgava perdido, acha-se em meu poder!...

— Ah!

— Um miserável o tinha roubado, mas não conseguiu lográ-lo. Depois de mil vicissitudes foi-me restituído. Brevemente o depositarei nas mãos de El-Rei, e o prêmio desse serviço, junto a um nome honrado e a uma mão leal, peço-vos permissão, senhor, para depor aos pés de vossa filha, a mui nobre Senhora D. Inês de Aguilar.

O fidalgo sorriu de compaixão.

— Minha filha está prometida!

— Não acaba D. Fernando de Ataíde de vos desligar de vossa promessa?

D. Francisco rugou o sobrolho:

— Já o sabíeis?... Há porém engano de vossa parte. D. Fernando de Ataíde solicitou de mim que o desligasse da sua palavra e eu consenti, porque à minha filha não faltarão os melhores partidos. Há tempo que foi sua mão pedida por um fidalgo do mais ilustre sangue, o Comendador D. Lopo de Velasco; e como se previsse o que tinha de acontecer, obteve de mim uma promessa condicional, que acaba de se tornar positiva.

— Mas D. Inês não o ama, senhor!

— Minha filha não carece de um estranho para intermediário de seus sentimentos entre mim e ela.

Estácio conheceu que pelo coração o fidalgo era inabalável.

— É possível, senhor, que a segunda promessa fique sem efeito como a primeira! Poderei eu esperar...

— Evitei até agora de responder-vos diretamente. A vossa insistência força-me à franqueza. E melhor é para ambos que nos entendamos de uma vez; para vós, porque, desassombrado desta vertigem, podereis caminhar direito e seguro na vida; para mim, porque, apelando para a vossa lealdade, talvez consiga restabelecer a tranquilidade de minha casa.

O fidalgo pôs os olhos firmes no mancebo.

— Sr. Estácio Dias, digo-vos que em tempo e caso algum obtereis a mão de minha filha!

Estácio ficou um instante fulminado sob essa recusa formal e terminante; mas logo recobrando a calma:

— Poderei saber a causa de uma tão dura condenação?

— Melhor fora calar; mas por ela julgareis de minha sinceridade. D. Inês de Aguilar pertence à melhor nobreza das Espanhas para se aliar com a descendência bastarda de um simples cavalheiro português, em cujas veias corre uma mistura de sangue gentio. Quanto às honras que possam vir em troca das minas, serão, caso se realizem, nobreza de mercador, e não verdadeira fidalguia de linhagem.

A altivez de Estácio revoltou-se:

— Essa mistura de sangue gentio que corre em minhas veias, Sr. D. Francisco, é a dos senhores primeiros desta terra, onde viestes enriquecer. Quem tanto despreza a nobreza dos mercadores, também devera desprezar o seu ouro.

— E a prova de que o desprezo é que recuso vossa aliança apesar das imensas riquezas que vos esperam. Demais El-Rei pode restituir à vossa casa aquilo de que a privou; mas não pode a sua autoridade destruir o passado e a lembrança da vergonha que algum tempo pesou sobre ela.

— Pois, Sr. D. Francisco de Aguilar, disse Estácio lento e grave, se a infâmia de um crime de traição é tal, que ainda mesmo reconhecida a inocência do acusado, uma nódoa pesa sobre a sua memória e o nome de sua família, devo dizer-vos que sou Estácio Dias Correia, inquinado de bastardia e descendente de gentio, quem derrogo de minha nobreza oferecendo-vos aliança a vós, D. Francisco de Aguilar, neto de reis godos!

— Que loucas palavras são estas, mancebo?

— Lede este papel!

E apresentou ao fidalgo a obrigação passada por D. José de Aguilar ao judeu Samuel. O orgulhoso castelhano rugiu de cólera sabendo da infâmia do filho; suas mãos robustas tremiam segurando o papel, que desaparecia ante a névoa de seus olhos inflamados.

— Apresentado ao governador este papel, a condenação de vosso filho não se fará esperar. Vós, altivo fidalgo, não sereis pai do mancebo órfão e honrado, mas sereis pai do traidor que vendeu a pátria e seu rei ao estrangeiro.

O fidalgo ficou imóvel na sua angústia. Estácio o contemplava sobranceiro.

— Julgais ainda, senhor, que a minha aliança vos seja desonrosa?

A resposta do fidalgo foi romana e digna de Fabrício:

— Não me deslumbrou há pouco a vossa riqueza; não me abala agora a vossa ameaça. Fazei desse papel o uso que vos aprouver; eu saberei evitar a desonra de uma condenação, punindo eu próprio meu sangue degenerado. As nossas posições permanecem as mesmas.

— As mesmas, tendes razão. Apesar de vosso ódio e desprezo sereis sempre para mim o pai da mulher a quem amo, e saberei respeitar vossa honra, como se minha fora.

O mancebo despedaçou o papel e lançou ao chão os fragmentos.

— Eis destruída a única prova do erro deplorável; asseguro-vos sobre ele silêncio eterno. Puni vosso filho, se o julgais necessário, mas poupai-lhe a vida.

A voz de Estácio tremeu.

— Poupai-lhe, sim, a vida; senão vítimas ambos de vosso inflexível rigor, nenhum restará para consolo e companhia de vossa velhice.

O fidalgo castelhano, comovido até ao coração, fez com a palavra e com o gesto pressuroso voltar da porta o mancebo que se retirava. Estácio aproximou-se palpitando de esperança, e precipitou-se com efusão sobre a mão que lhe era estendida. Mas essa mão, em vez de atraí-lo ao peito, parecia ao contrário, pela tensão firme do braço, mantê-lo em distância.

— Acreditai-me, senhor! disse o castelhano comovido. Neste momento sinto no fundo d'alma não poder aceitar vossa aliança. Ofereço-vos porém minha amizade.

— Eu a recuso, senhor. Não vos quero dever nada, já que me recusais tudo. O que fiz e o que farei ponho-o sob a santa invocação do meu amor; não o profanarei com estranho motivo.

Estácio retirou-se dessa casa, deixando a admiração no ânimo soberbo do inflexível fidalgo. Ao chegar à porta de São Bento, caiu em uma emboscada que lhe estava ali armada. Uma esquadra de cavalaria, ao mando do Alferes D. José de Aguilar, o desarmou e conduziu preso.

Duas pessoas assistiram à prisão: Tiburcino e Gil.