As Minas de Prata/III/XIII

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Em pé, na porta do presídio, apoiado sobre a bengala, para não cair, estava o Doutor Vaz Caminha. Seu lívido e macerado semblante tinha já a descor baça da lápida sepulcral; e de feito a vida ali estava morta e sepultada no túmulo daquele corpo gasto, mas galvanizado por uma vontade poderosa. Com os olhos pregados no chão, ninguém sabia que abismos de dor sondava esta vista profunda e cadavérica.

Ao lado dele o pobre Gil, agarrado à sua mão, chorava silenciosamente, afogando os soluços e enxugando as lágrimas com a garnacha do velho advogado, a qual lhe encobria quase todo o rosto. O menino tinha os olhos upados de tanto chorar; e de vez em quando murmurava com um acento inexprimível:

— Senhor Vaz!... Senhor Vaz!...

Ao menor rumor que vinha da prisão esse grupo singelo de um grande martírio estremecia, e volvia pávidos esgares para o lôbrego edifício.

Eram seis horas.

A dúbia claridade do rápido crepúsculo matutino desenhava já no azul desbotado do céu o negro perfil da fortaleza. O pátio estava cheio de soldados dos pelotões que formavam; e notava-se o bulício que anuncia um acontecimento extraordinário.

Nisso abriu-se o portão exterior, e um frade assomou no limiar. Vaz Caminha na esperança de obter alguma notícia achegou-se dele quando atravessava:

— P. Mestre!... foi o que teve tempo de dizer.

O jesuíta ao passar conchegara-se ainda mais no hábito, cuja aba levantou sobre o rosto, carregando o sombreiro; mas deixou cair no ouvido do licenciado rápidas e soturnas palavras:

— Silêncio, irmão! À Rua de Santa Luzia, se quereis salvá-lo!

Seguiu apressado rua abaixo, quebrou a esquina, saltou a cerca de um quintal e apresentou-se na varanda de D. Dulce aos olhos espantados da velha Brásia que varria a casa.

Coisas importantes tinham passado dentro da prisão.

O carcereiro acudira a abrir a porta ao sinal do frade. Do limiar o P. Molina volveu de novo o rosto para o prisioneiro:

— Ainda é tempo, filho!

— Não!...

— Morrei pois, vítima de uma pertinácia insensata; mas lembrai-vos na última hora que Deus pode punir-vos mais cruelmente ainda, arrancando-vos o amor e a estima daquela que amastes na terra!

Estácio avançou com um salto de tigre; ele havia compreendido todo o alcance daquela terrível ameaça. Ao mesmo tempo uma ideia luzira em seu espírito:

— Escutai, padre!...

Molina recomendou ao carcereiro que esperasse a alguma distância, e voltou ao prisioneiro.

— Que segurança me dais do cumprimento de vossa promessa? Se vos eu entregar o meu segredo, que meios tendes para livrar-me do suplício que me espera, e arrancar-me já desta masmorra?

O jesuíta sorriu:

— Era essa a causa de vossa recusa?... Me julgastes capaz de trair-vos, apossando-me do vosso bem para depois abandonar-vos à sorte fatal?... Vejo que ainda não reconquistei vossa estima!

— Respondei; o tempo urge.

— Tinha tudo preparado. Se aceitásseis o que propus, sois da minha estatura, e coberto com este sombreiro, envolto neste hábito, à mercê do lusco-fusco da alvorada, passaríeis entre os guardas como o P. Molina.

— E ficaríeis em meu lugar, encarcerado nesta masmorra?...

— O tempo preciso para vos pordes em segurança.

— Acaso me julgais uma criança para acreditar ingenuamente quanto vos aprouver?... Só vós não havíeis de pensar no perigo a que vos expondes tramando a evasão de um réu de alta traição!...

— Oh! pensei em tudo!... Saindo daqui, me deixaríeis justificado. Vedes estes objetos?

O jesuíta sacara de baixo do hábito uma corda de linho e um punhal. Nos olhos de Estácio cintilou rápido um lampejo; mas ele o apagou sob a expressão da mofa que empanou seu belo semblante.

— Entendo! Vossa Paternidade me estenderia os braços que eu lhe ataria às costas para simular que tinha havido surpresa e violência.

— E então! Poderiam acusar-me porventura?

— Decerto que não; mas coisa pior poderia suceder.

— Qual, filho?

— Quando eu bem disfarçado no hábito de V. Paternidade, e depois de lhe ter dito ao ouvido o meu segredo, transpusesse o limiar daquela porta e ganhasse o corredor, V. Paternidade que tem uma voz de cantochão, excelente, entoaria o Aqui d'El-Rei, e eu seria apanhado como o coelho ao sair da toca.

— Também ocorreume isto! disse o jesuíta sorrindo. Conheceis este pequeno instrumento?

— Nunca o vi. Para que serve? disse o mancebo fingindo habilmente ignorância.

— Pera de angústia, é o nome que lhe davam nos cárceres da inquisição. Serve para fazer muda a boca que se obstina a falar. Ora, se ao mesmo tempo que me ligásseis os braços, me introduzísseis este objeto entre a maxila e o palato, ficaria eu privado do movimento e da palavra.

Estácio abanou a cabeça:

— Não acreditais?...

— Vendo, pode ser.

O P. Molina com uma expressão de simplicidade, que devia tornar Estácio desconfiado, tomou delicadamente a pera e a introduziu na boca. Era o que o mancebo esperava; travando com força dos braços do frade, murmurou-lhe ao ouvido:

— Melhor é, padre, que não me obrigueis a usar de violência! Rendei-vos de boa vontade. Lembrai-vos que eu tenho a morte atrás de mim a perseguir-me, e a ventura avante a sorrir-me!

O frade acobardou-se, e submisso deixou que o mancebo ligasse-lhe os pulsos às costas e o despisse do hábito. O disfarce operou-se em um instante; Molina deitado sobre a enxerga seguia de través com um olhar manhoso os movimentos do mancebo.

— Quando eu estiver em liberdade, trataremos de nosso ajuste, P. Molina!

O carcereiro veio abrir a porta ao sinal convencionado; e o falso jesuíta ganhou facilmente e sem excitar a mínima suspeita o portão do pátio, onde encontrara o advogado e Gil; daí conseguiu penetrar em casa da formosa andaluza.

Advertida a dama, de que a procurava um padre da Companhia, correu agitada e comovida. Dando com aquele vulto negro, em pé no meio do aposento, ainda coberto com o sombreiro derrubado sobre a fronte, a formosa senhora pensou estar em face de seu marido. Tinha o mesmo talhe e o mesmo porte. O contorno alvo e enérgico da parte inferior do rosto, que se desenhava sobre a gola preta, era do religioso de Palos.

Impelida pela explosão da veemente paixão tantos anos concentrada, ela precipitou para o vulto:

— Senhor!

Estácio que só esperara o momento de ficar só com ela, descobriu-se então. A formosa dama, no ímpeto de arrojar-se aos pés daquele que supunha seu marido, caiu nos braços do mancebo.

Nesse instante chegaram o advogado e o pajem. Vaz Caminha apesar do estranho abalo que lhe causara a voz do frade e da importância do aviso, hesitara um instante; porém o menino, movido por um secreto pressentimento, o puxara pela mão e o obrigou a seguir para a casa de Dulce, onde ele teve a felicidade de abraçar o filho querido de sua alma.

Duas horas depois apresentava-se na portada do palácio do governador um cavalheiro armado em guerra com a viseira caída, o que em tempo de paz, naquele lugar e dia claro, pareceu estranho. Apeou o guerreiro presto e entrou no corpo da guarda onde reinava ainda a agitação produzida pelo acontecimento da manhã.

Quando entrava na prisão para conduzir o condenado, achou o oficial incumbido da execução o P. Molina com os pulsos e artelhos ligados, mordaça na boca e estendido de bruço sobre a enxerga. Lavrado o auto da evasão, e tomados os depoimentos do confessor e carcereiro, despachou imediatamente o comandante ao governador um oficial com a comunicação do acontecido.

D. Diogo ficou indignado; era a segunda vez que pela negligência ou desídia dos subordinados aquele mancebo zombava e escarnecia da sua autoridade. Enviou ordens umas sobre outras e para todas as partes; contestou a comunicação do comandante, declarando-lhe que ele responderia em três dias pelo preso evadido, se o não restituísse à justiça.

Entretanto o desconhecido dirigiu-se a um porteiro de maça que ali achava-se:

— Levai-me ao Sr. Governador.

— Que lhe quereis, e quem sois? perguntou o homem com a insolência da gente baixa que serve aos grandes.

— Dizei-lhe que o busca um desconhecido, o qual só a ele se descobrirá; que lhe traz aviso certo do lugar onde se acoitou o preso que esta manhã se evadiu da fortaleza.

— Segui-me!

O guerreiro subiu as escadas após seu guia, e atravessou os corredores cheios de gente curiosa. Ao chegar ao gabinete, o porteiro fez-lhe sinal que esperasse atrás do reposteiro, e entrou para dar aviso ao governador. Ouviu-se a voz sonora de D. Diogo que dizia:

— Trazei-o já à minha presença.

Afastado o reposteiro, franqueou-se a entrada ao guerreiro. Este, penetrando no gabinete, despediu com um gesto o porteiro, e fechando a porta, correu-lhe os ferrolhos.

D. Diogo de Menezes, que o esperava no fim da sala sentado à mesa de trabalho, erguendo os olhos, dera com aquele vulto armado no instante em que ele praticava a singular ação de trancar a porta. Desenhou-se no seu varonil e majestoso semblante uma ligeira surpresa motivada pela estranheza do caso; abaixando rápido, e imperceptível olhar para as guardas da espada, que descansava ao lado sobre a cadeira, esperou com a placidez e serenidade de quem sente-se em uma esfera superior, onde não ousam penetrar as paixões más.

Entretanto o cavalheiro parava no meio do aposento, com mostras de respeito, na sua nobre atitude.

— Aproximai-vos, cavalheiro; e se é exato o aviso que me trazeis, a recompensa há de ser pronta e igual ao serviço.

— Fiz saber-vos, senhor governador, que indicaria a vossa senhoria o lugar certo onde se acha o preso evadido esta manhã. Vou além da minha promessa, pois vo-lo entregarei eu próprio em pessoa.

— Onde está ele então?

Com um gesto cheio de nobreza e graça, o cavalheiro ergueu a viseira do elmo e descobriu a bela e altiva fisionomia de Estácio.

Desta vez a surpresa foi tal que D. Diogo de Menezes duvidou de seus olhos e acreditou em uma alucinação dos sentidos.

— Ah! A Providência vos entrega de novo à justiça de El-Rei. Desta vez não escapareis, exclamou o governador dirigindo-se à porta.

Estácio se lhe antepôs em face:

— Haveis de ouvir-me primeiro, senhor governador; não se condena um homem indefeso!

— Sois um espião e traidor. Estais condenado a menor suplício que merecestes. Não há para vós compaixão. Eu vos lamento e abandono a vosso desgraçado destino.

Estácio sorriu:

— Há duas horas que estou livre. Nesse tempo, montado no excelente animal de que me apeei à vossa porta, tendo sob minha mão a três léguas daqui uma companhia de homens destemidos, podia estar longe e fora do alcance de vosso braço. Quando pois venho eu próprio à vossa presença, correndo novo risco de vida para chegar a ela através de vossa guarda, e isto para dizer-vos que me haveis de ouvir... Pensais, senhor governador, que eu venha pedir-vos graças e compaixão?

— A que vindes então? perguntou o governador com sobranceria.

— Venho exigir justiça e reparação do agravo que me fizestes, suspeitando de minha honra e maculando meu nome!

— Ousais ameaçar-me?... E agora vejo que estais armado! disse D. Diogo com desprezo.

O mancebo com um movimento rápido arrojou de si as armas:

— Estas eram armas para vossos guardas, se me impedissem chegar até aqui; para Vossa Senhoria trago-as de melhor têmpera. As provas cabais de minha inocência e do que acabo de prestar a El-Rei.

D. Diogo de Menezes sabia conhecer os homens; seu olhar profundo devassava os íntimos refolhos d'alma. Desde que Estácio lhe aparecera de um modo tão estranho, ele sentia um generoso impulso de seu coração a atraí-lo para aquela altiva e briosa juventude. Mas a robusta convicção que tinha da culpa do mancebo, o encerrava dentro da rígida severidade do juiz. Abanou pois a cabeça, ao passo que seu olhar benévolo pousava nas feições gentis do mancebo.

— Infeliz mancebo! murmurou.

— De que sou eu acusado perante Vossa Senhoria?...

— De haverdes traído a vossa pátria em favor do inimigo.

— Tirando do Castelo de Santo Alberto três presos... Um aqui está em vossa mão, e estaria desde ontem, se não caísse em uma emboscada quando para aqui vinha.

— Os dois flamengos?

— Vão ser restituídos a Vossa Senhoria dentro de poucas horas.

— Onde estão eles?...

— No sítio da Sapucaia em boa guarda.

— Se dizeis a verdade, estais perdoado.

— Estas são as provas de minha inocência, sr. governador. Agora, a captura destes presos que se evadiam, a destruição dos dois navios de contrabando que os esperavam em Itapoã para levá-los à Holanda; a descoberta do plano que concertaram os judeus desta cidade para entregarem a Bahia aos holandeses; estas são as provas da vossa injustiça.

— Farei igual reparação, Estácio, dou-vos minha palavra. Referi como as coisas se passaram.

Estácio contou os vários acontecimentos de que fora protagonista desde a noite da escapula do castelo até aquele instante; omitindo unicamente aquela parte que se referia ao segredo das minas de prata, e sobre a qual pedia vênia ao governador para guardar reserva, declarando apenas que um motivo de honra o chamava ao Rio de Janeiro.

— Chegai perto, Estácio; que eu vos abrace. Sois um herói!... exclamou D. Diogo comovido.

— Se o que fiz merece alguma recompensa, peço a Vossa Senhoria, como a única que desejo, a graça de confirmar a promessa que dei a uma filha em favor de seu velho pai.

— Qual promessa?...

— Que lhe perdoareis a parte que tomou na trama urdida para a entrega da cidade.

— É grave; mas a mereceis, Estácio. Contanto que o velho Samuel deixe para sempre o Brasil.

— É justo. Esta noite vos entregarei a missiva do judeu.

— E por que não agora?

— Careço de tempo para buscá-la onde a ocultei. Quanto aos flamengos, partirei já para trazê-los à vossa presença; podeis fazer-me seguir por uma escolta.

— Sereis vós quem me seguireis, meu alferes de cavalos, disse D. Diogo erguendo-se.

— Não compreendo a Vossa Senhoria.

— É o começo da reparação, Estácio. D. Francisco de Aguilar, que teve não sei quais queixas do filho, veio solicitar-me ontem sua baixa, como um castigo que lhe queria infligir.

— Ah!...

— O posto vago achou em vós quem dignamente o servisse; partiremos ambos, sem guarda nem séquito, para Sapucaia.

— Às ordens de Vossa Senhoria!...

Estácio saiu do gabinete a esperar que D. Diogo se preparasse. Na antecâmara viu seu velho amigo e padrinho que esperava tranquilo o fim da prática. O advogado sabia agora o que o mancebo tinha obrado; e confiava na austera justiça do governador, tão inflexível no perdão, como generoso na recompensa.

O mancebo e o velho abraçaram-se estreitamente; um, nada perguntara, o outro, nada dissera; ambos tinham-se entendido pela expressão mútua do semblante. O de Estácio trazia o contentamento que logo refletiu no de Vaz Caminha.

— Livre, mestre, livre e premiado!

Instantes depois apareceu o governador e saudou afetuosamente o advogado.

— Nós os velhos, Doutor Vaz Caminha, já de pouco prestamos. Ei-lo aqui, este imberbe mancebo de dezenove anos, que é melhor advogado do que vós, e melhor juiz do que eu! Vistes o instante em que ganhou seu feito, que vós tivestes por perdido, e eu por julgado afinal?...

— Não foi ele, sr. governador, mas a sua inocência sob a guarda da Providência.

Os dois cavaleiros partiram afinal do palácio. O governador adiante meio corpo do cavalo, como era uso quando andava com seus íntimos, em privança. O alferes lhe guardava a esquerda.

Os dois flamengos foram restituídos ao Castelo de Santo Alberto nessa mesma tarde; Samuel posto em liberdade, mas intimado da ordem do governador que lhe dava seis meses para liquidar seus haveres e deixar as terras do Brasil para não mais voltar. Enquanto o velho rabino ouvia a palavra severa do governador, Raquel à parte se despedia de Estácio que de propósito a arredara daquela cena, para lhe poupar a humilhação do pai.

— Se algum dia, Estácio, disse-lhe a formosa judia, carecerdes do coração de uma irmã para repartir com ele as alegrias ou tristezas do vosso, sabeis já onde esse amigo vos espera!

— Eu vos prometo, Raquel! Praza a Deus que nesse momento eu o ache pleno das felicidades que vos desejo.

— Oh! no instante em que dele vos aproximardes, asseguro-vos que o achareis feliz.

Estácio cortou este diálogo, que o pungia; e chegou-se a Samuel para murmurar-lhe ao ouvido:

— Trabalhai melhor a ventura de vossa filha, Samuel. Lembrai-vos que lhe deveis a vida, e o ouro de que sois tão avaro.

O governador, compreendendo a necessidade que Estácio devia ter de repouso e expansão no seio da amizade, depois da vida agitada e tormentosa, que vivera durante cerca de dois meses, o despediu, recomendando-lhe que no dia seguinte fosse em busca da missiva dos judeus, e lha trouxesse o mais breve possível.

— Às sete horas da manhã aqui serei às ordens de Vossa Senhoria.

Estácio correu à porta do palácio onde o esperava Antão com a gente, que vinha de levar ao Castelo de Santo Alberto os dois flamengos. Juntos encaminharam-se à casa de Cristóvão. No meio da alegria dos dois amigos entrou João Fogaça que, do primeiro olhar reconhecendo quem ali estava, soltou esta estrondosa exclamação:

— Então!... Que vos dizia eu, Cristovinho?

O capitão de mato abriu um braço e apertou Estácio ao peito; estendendo ao Antão dois dedos que encheram a mão ao marujo, embora a tivesse bem espalmada. Depois disto escancarou a boca em uma formidável gargalhada, que o aliviou de algumas arrobas da alegria, que acabava de sentir.

O resto do dia foi consagrado a festejar a boa volta. Cristóvão deu suas ordens para que no pavimento térreo se banqueteassem com profusão todos os companheiros da famosa empresa; enquanto sua mesa de jantar, coberta já da fina copa de prataria, só esperava para encher-se das abundantes e saborosas iguarias, que chegasse o quinto conviva, o Dr. Vaz Caminha. Voltou o portador do recado trazendo a resposta do advogado:


“Desculpai-me com vosso amigo, Estácio. Em vossa feliz idade, depois da longa ausência e dos riscos passados, compreendo quanto carecem vossos jovens corações de expandir-se mutuamente. O contato de um velho coração gelaria, crede-me, a doce efervescência de vosso festim. Ride, folgai, enchei-vos de alegria e venturas; e quando vos sentirdes a transbordar, vinde então vazá-las no seio de vosso velho amigo e mestre.”


Os convivas sentaram-se à mesa. Cristóvão nesse dia vencera a tristeza que de tempos o acabrunhava, e se entregou aos júbilos de uma amizade que lhe parecia agora ainda mais cara e íntima pelas provanças por que passara, e talvez que também pela revolução que se operara em sua alma. Os dois amigos consumiram o tempo em conversar; mas coisa singular, nenhum deles tocara ainda naquilo que mais os interessava. Nem Estácio falara de Inesita, nem Cristóvão de Elvira.

Entretanto João Fogaça comia, e Antão bebia; cada um deles tinha sua especialidade. O capitão de mato desafiava a indigestão com o mesmo denodo com que o seu ajudante desafiava a embriaguez.

Era tarde da noite quando Estácio recolheu-se. O incansável mancebo não foi porém direito à casa; só por volta da madrugada bateu ele à porta onde o esperava Gil, dormindo a sono solto. Então pôde repousar algumas horas; quando despertou com a primeira claridade do dia, a velhinha D. Mência, advertida de sua chegada, correu a deitar-lhe a bênção.

À hora emprazada apresentou-se o novo alferes em palácio e entregou a D. Diogo de Menezes a missiva dos judeus. O governador apressou-se em tomar conhecimento desse papel cuja importância avaliava:

— Ide, Estácio, careceis de trajar-vos conforme vosso posto; e também deveis ter necessidade de algum repouso. Dou-vos três dias de folga.

O jovem alferes não tinha necessidade de repouso; possuía uma organização poderosa que descansava variando a sua imensa atividade. As emoções, as subjugava ele com sua vontade de ferro. Do que tinha necessidade e muita era de amor, que lhe matasse a sede abrasadora d'alma.

Logo depois da recusa formal que sofrera de D. Francisco de Aguilar, os acontecimentos o tinham arrebatado, de modo que não lhe deixaram tempo, nem mesmo para sentir, quanto mais para meditar a influência daquele fato sobre sua existência. No meio porém dessa voragem que ameaçara tragá-lo, quando recordava as palavras duras do fidalgo, havia em sua alma alguma coisa de áspero e rígido. Era uma fibra distendida, uma crispação interior, o quer que fosse enfim, que anunciava o assomo enérgico da vontade tenaz.

Agora esse movimento interior definia-se; tornava-se revolta contra a severidade de D. Francisco. A alma do mancebo, feita para a luta, eletrizada pelos obstáculos, se erguia para correr à conquista da mulher amada, e disputá-la ao mundo inteiro!

— Inês deve ser minha!... murmurava uma voz dentro de sua alma. Outra replicou:

— E será, querendo ela!

Cogitou um instante.

— É preciso que eu a veja hoje mesmo.

O mancebo voltou a almoçar com a tia; foi depois estar uma hora com seu velho mestre e padrinho; visitou Álvaro de Carvalho que já sabia das suas cavalarias altas, e deu-lhe tantos ralhos quantos abraços.

— Enfim estais um homem!... Já não precisais de mim, rapaz!... Deveis agradecer-me ter-vos tirado dos miolos as carolices de vosso padrinho e mestre, o doutor fuinhas!

Tendo cumprido com os deveres da amizade, Estácio tratou de realizar seu projeto.

Acompanhado de Gil, dirigiu-se para Nazaré.

Caía a hora da sesta.

A calçada do edifício estava cheia de pajens e lacaios, ricamente trajados, que tinham pelas rédeas os cavalos de uma lustrosa comitiva, a rir e galhofar, como costuma a gente dessa laia quando se encontra.

Em uma recâmera, do lado direito do edifício, D. José de Aguilar cruzava o aposento em todos os sentidos com um passo curto e impaciente, que semelhava o trote miúdo e rápido da fera em torno da jaula. Ali encerrado desde a véspera por seu pai, o moço estremecia de cólera; seu rosto pálido e contraído esboçava bem os sentimentos pungentes que lhe dilaceravam a alma.

A porta do aposento abriu-se; D. Francisco de Aguilar apareceu carrancudo e terrível; a um gesto seu entrara um pajem e depondo sobre a cadeira um pacote com vários objetos, retirou-se; o fidalgo fechou a porta e dirigiu-se ao filho:

— Já não pertenceis à milícia. O sr. governador vos expulsou esta manhã da sua guarda para que a não desonreis!

Os dentes do moço rangeram.

— Restituí-me pois esta espada, que eu a despedace como o vil instrumento da traição e da cobardia!

— Serei tudo quanto quiserdes, senhor, cobarde não!...

— Cobarde sois, porque vosso coração apodreceu.

O fidalgo desfez o pacote, e tirou dele uma tesoura:

— Tomai! Talvez manejeis melhor este ferro que o outro. Abatei esta barba, distintivo nobre do cavalheiro. Não sois digno já de trazê-la.

— Nunca!...

— Fazei-o com as vossas próprias mãos, se não quereis que o façam meus escravos!

O moço submeteu-se.

— Agora trocai por estas vestes de mesteiral as vossas de fidalgo, que manchais ao vosso contato.

— Esbofeteai-me as faces, senhor! É mais generoso, do que entornar-me assim aos poucos a vergonha e a humilhação!...

— Calai-vos e lembrai que generoso sou quando vos poupo o baraço!...

— Também a vós o poupais!... disse D. José irônico.

— Esta noite mesmo embarcareis em um navio que vos espera a fim de levar-vos à África, para onde vos desterro.

Direito, inflexível como entrara, o fidalgo retirou-se, deixando o filho esmagado sob o peso da sentença; recolheu então ao seu gabinete, onde o esperava seu mordomo, com quem tinha de concertar nos aprestos necessários para a partida do navio, que havia de conduzir a Angola o filho desterrado.

Enquanto isto passava, na asa oposta do edifício a cena era mais calma e amena.

Estamos na peça onde habitualmente passava a família do fidalgo as quentes sestas do verão. Era uma varanda corrida ao longo da horta sobre a qual havia uma linha contínua de ogivas.

D. Ismênia sentada em sua alta poltrona, perto da arcada, gozava da vista campestre que se desdobrava a seus olhos, escutando a palavra animada de D. Lopo de Velasco. O comendador, inspirado por aquele quadro alpestre, contava à fidalga uma das suas memoráveis caçadas. Ele tinha vindo render a D. Inês suas homenagens, como noivo escolhido e aceito pela família; mas apenas chegado, esquecera o motivo de sua visita, e deixava a imaginação correr por montes e vales.

A fila de escravas, sentada sobre o estrado e ocupada em várias obras de agulha e tear, arrancava amiúdo da sua tarefa olhares curiosos, que iam extasiar-se na galharda compostura de D. Lopo e nas luzidas galas de sua roupa de primor. Lá para si pensava o terceiro estado do solar castelhano, que sua doninha devia ser muito feliz com tão guapo marido.

Entretanto Inesita, isolada no extremo da varanda, sentia naquele instante amarguras cruéis. O rompimento da projetada aliança com D. Fernando não lhe fora sequer uma pausa ao martírio de seu coração; ao mesmo tempo que D. Francisco lhe anunciara a feliz nova, dissipava o primeiro assomo de sua alegria participando-lhe a outra mais ilustre união, tratada com o comendador. O suplício persistia pois; apenas houvera mudança de algoz.

A donzela amava Estácio na pureza e sinceridade de seu virgem coração. Quando Lopo de Velasco se apresentou em sua casa, ela não procurou saber que homem lhe destinavam; desde que esse não era o seu escolhido, para ela tornava-se ninguém. Até aquele instante seus olhos não tinham nem sequer perpassado uma rápida vista pelo vulto do comendador. Magoada e opressa somente com sua presença, evocava do coração as doces recordações de Estácio, para abrigar-se no seio delas. Aí nesse ninho de seu amor, ela achava delícias e bem-aventuranças que a repousavam das tristezas reais.

Havia um quarto de hora, que D. Francisco saíra da varanda, pedindo vênia ao comendador para terminar um negócio de suma importância, e não tornara ainda pela razão que sabemos.

Ouviu-se rumor do lado da entrada, vozes altanadas, estrupido de pés, e o esgrimir de espadas. Logo após soaram passos firmes e rápidos no corredor; pararam um instante, tiniu o ferro, depois continuaram; dir-se-ia um homem que perseguiam, e de espaço a espaço se voltava para afugentar o inimigo. D. Ismênia sobressaltou-se, avisada pelo sussurro que percorreu o estrado. O comendador ergueu-se e ia encaminhar-se para a porta.

Mas acabava de arrojar-se ali a estátua elegante de um cavalheiro, que da ponta da espada aterrava a ralé dos lacaios e escudeiros, e a paralisava a grande distância. Tendo feito um gesto de ameaça, o cavalheiro avançou até o meio do aposento; a criadagem armada de piques murou a porta.

— Venho de paz, já vos disse. Guardai-vos daí pois, se não quereis pagar caro a ousadia.

E dizendo estas palavras, o cavalheiro imprimia uma terrível vibração à lâmina da espada.

Inesita, que até ali se conservara indiferente e estranha a tudo, com a comoção interior, que os ecos daquela voz produziram em sua alma, estremeceu, volvendo para dentro olhos espantados, que se encheram pasmos da vista de Estácio.

O comendador fizera um gesto imperativo aos criados.

— Aquietai-vos lá, que saibamos o que pretende este cavalheiro.

Estácio, depois de saudar com a espada o comendador, agradecendo essa cortesia, embainhou-a. Avançou então para Inesita que estava imersa no êxtase de o ver, e em distância conveniente pôs o joelho em terra. Sua voz sonora, levemente trêmula, soou clara e distinta no meio do profundo silêncio que a estranheza da aparição impunha aos circunstantes:

— Senhora, que eu venero ainda mais que adoro! Forçoso era que vos falasse, antes de finar-se de todo a derradeira esperança! Não havia outro meio mais digno de vós, nem mais próprio de mim que este, embora ousado e estranho. Se meu arrojo vos desagrada e ofende, aqui me tendes já, senhora, a vossos pés para me punirdes. Ordenai a estes fâmulos vossos que me castiguem e expulsem da vossa presença; o que não pôde seu número e insolência, poderá uma só palavra vossa.

Com um gesto enérgico de negativa, respondeu Inesita. Estácio compreendendo-a, ergueu-se:

— Mas espero que em vossa bondade já me foi a culpa perdoada, como em meu respeito grande deve estar segura e confiada vossa modéstia e virtude. Diante de vossa mãe, e de tantas testemunhas que me ouvem, falar-vos-ei como se estivesse só em vossa presença; porque não tereis que enrubescer deles, senão de vossa inocência e pudor. Mas se esse véu de vossa virtude pode mais que tudo em mim, bem vedes que não ousarei dizer-vos o que desejo, sem ordem vossa. Mandai, pois, se devo falar, se tornar-me como vim, pago embora de vossa vista, mas desamparado da derradeira esperança, que só me podeis dar.

Inesita escutava lívida; todo o sangue refluíra ao coração, que palpitava aos saltos. A vertigem apoderou-se dela; as pessoas e os objetos, que ali estavam em torno, desapareceram de seus olhos: dentro daquele fluido que a envolveu, só aparecia a figura nobre de Estácio.

— Falai, senhor cavalheiro; falai que vos escuto.

— D. Francisco de Aguilar, vosso pai, senhora, recusou-me há três dias vossa mão, declarando-me que jamais consentiria em nossa união. Vim a saber se confirmais esta sentença cruel; ou se achais em vós a força para resistir-lhe.

— Tendes a minha fé, e que nenhum outro a terá jamais, eu vo-lo juro, aqui, à face do céu. Mas, sem o aprazimento de quem me deu o ser, nunca, senhor, nunca serei vossa... esposa.

O rosto de Estácio cobriu-se de mortal lividez:

— Eu sabia, senhora, que outra não podia ser vossa palavra; mas queria que ela passasse pelos vossos lábios, para acabar-me docemente. Adeus pois, senhora, até o céu, que o martírio de perder-vos me deve ganhar em recompensa.

O alúvio de lágrimas, que soçobrava à palavra do seio da donzela, brotou enfim dos olhos magoados. Inês abaixou a fronte como um nenúfar cheio de orvalho, e deixou que o pranto lhe rociasse as faces.

Estácio ouviu um murmúrio entre os soluços e aproximou-se mais; ela dizia:

— Sou mulher e filha; e pois sem forças, nem vontade. Mas com essas armas que Deus nos deu à nossa fragilidade, com minhas lágrimas e minhas preces lutarei até morrer; e no último instante ainda a esperança de ser vossa não me há de desamparar, como meu pensamento não há de arredar-se de vós, meu senhor. Vós que tudo podeis, me abandonais!

— Tendes razão, senhora. Cumprirei meu dever; disputarei ao mundo e a todos a minha ventura. Acompanhado pelo vosso pensamento, hei de vencer, eu vos juro. Adeus pois, senhora, até o altar!...

Inesita sorriu entre as lágrimas.

Estácio encaminhou-se à porta, quando o comendador embargou-lhe o passo:

— Senhor cavalheiro, conquistastes minha estima e admiração. Se algum dia eu for capaz de amar alguma dama, hei de aproveitar vossa lição. Assim amam os cavalheiros; o mais é próprio dos bonifrates que só servem para fazer salas!

Nesse instante os criados afastaram-se, e a figura nobre do fidalgo castelhano destacou-se na porta. D. Francisco correu os olhos pela sala, e adivinhou por longe o que era passado.

— Que audácia é a vossa de penetrar assim à mão armada em minha casa?

— Preferíeis que entrasse com ciladas, ou corrompendo vossos fâmulos?

Não convinha ao fidalgo prolongar esta cena em presença do comendador.

— Retirai-vos, senhor, e não me obrigueis a esquecer o que vos devo, disse com olhar sinistro.

— Nada me deveis, Sr. D. Francisco; já vo-lo disse uma vez. O que fiz não foi a vós, nem por vós, mas somente a ela.

Estácio volveu um último olhar a Inês, saudou as damas e os cavalheiros para retirar-se.

— Antes de retirar-vos, cavalheiro, estendo-vos a mão. Chamo-me D. Lopo de Velasco.

— Ah!... Pois recolhei vossa mão. Quanto a meu nome, sabê-lo-eis em ocasião e lugar mais propício. Somos inimigos, D. Lopo.

— Excelente!... Os inimigos acabam por amigos. Fico às vossas ordens, cavalheiro.

Estácio foi-se afinal.

Trazia uma ideia fixa, que lhe ocorrera durante a fala de Inesita. Entregar o roteiro ao Padre Molina, exigindo em volta o cumprimento da promessa feita na prisão.

“Esta mesma noite!” repetia dentro em si.