As Minas de Prata/III/XXII
Corria abril.
Era o dia em que Pedro Álvares Cabral avistou a terra brasileira. Celebrava a Igreja naquela semana a Páscoa de Nosso Senhor.
Seriam cerca de onze horas da manhã. O céu arreava-se do seu mais puro azul; nem um capucho de nuvem manchava o cetim do etéreo manto. A luz borbotava do sol como as cataratas de um dilúvio de ouro fundido, e imergia a natureza. A luxuosa vegetação ostentava seus primores, e longe de enlanguescer sob os raios ardentes do dia calmoso, ao contrário exultava com essa prodigiosa absorção de luz e calor, como exulta a bacante com os vapores do vinho generoso.
A terra selvagem parecia trajar as suas mais lindas galas para celebrar a festa natal da civilização.
Chegado era Estácio ao alvo de seus esforços: a gruta do Pajé abria-se afinal em face dele. Parando um instante para serenar o soçobro de sua alma, penetrou enfim na vasta caverna.
A princípio teve o mancebo o mesmo deslumbramento que seu pai e seu avô. Em face daquelas bizarras e esplêndidas cristalizações, ele não pôde conter um grito de admiração. Logo porém caiu em si e conheceu o erro do descobridor.
Irrisão da fortuna!
As decantadas minas de prata não eram mais que uma ilusão.
O infeliz mancebo achara ao cabo de tantas fadigas e tribulações uma cruel decepção: a sorte o havia conduzido pela mão após de uma sombra, até que esta tomara corpo enfim e se voltara para rir-lhe nas faces. Penetrando na gruta, reconhecera o engano de seu pai, induzido em erro pela ignorância e fábulas do tempo.
Depois do amargor do primeiro desencanto, sua alma grande consolou-se com a ideia de reabilitar o nome de Robério:
— Ainda bem! Não dirão mais que o perdeu a cobiça!
Permaneceu ali Estácio longas horas. Afigurava-se ao seu espírito que ali naquela gruta subterrânea, santificada pela memória do pai, ficavam sepultadas todas as brilhantes esperanças de sua vida. Entretanto mal sabia que essa areia pisada por ele, e que rangia sob seus passos, estava recamada de diamantes. Por tarde volveu ao pouso.
Nesse mesmo instante em que se apartou Estácio daquele sítio onde deixava morta sua ambição, na Bahia a fé desertava o coração de Inês, transida pelo temor da maldição paterna.
Semanas depois, pelo recôncavo da cidade do Salvador seguia um bando de homens, que logo ao primeiro aspecto se conhecia chegarem de longínquos sertões, e trazerem longa jornada pelo mísero estado que apresentavam. Muitos já vinham descalços, com as roupas dilaceradas e cobertas de lama e pó, o passo trôpego e pesado.
Era esta a banda de Estácio, que se aproximava do termo de suas fadigas, depois de uma excursão de três meses.
A volta fora cheia de perigos. Várias vezes atacados pelos Aimorés, que lhes seguiram a pista, conforme a ordem de Molina, estiveram a sucumbir.
À coragem e tino do alferes deviam seus companheiros a salvação.
Estácio não se poupara; por várias vezes saiu ferido do combate. Ainda não estava ele completamente são de um último golpe que sofrera. Seu andar bem indica o esforço que lhe custa cada movimento; mas não obstante avança e estuga, animando os companheiros com a esperança de pronto repouso. Gil caminha a seu lado, cercando-o de cuidados que aliviem a fadiga. O travesso pajem, bem crescido para sua idade, era de todos os viajantes o mais fresco e bem disposto.
Como já andavam mais de seis horas, fizeram uma alta para tomarem algum alimento e repouso.
— Não chegamos ainda hoje!... disse Estácio ao pajem.
— Oh! não passa de amanhã!
— Amanhã! repetiu o mancebo com desânimo. Não sei que tristeza maior se apoderou de mim esta alvorada!... Tenho cerrado o coração! Às vezes quer me parecer, Gil, que hoje na Bahia se decide do meu destino!...
— Não vos deixeis apoderar destas ruins lembranças, Sr. Estácio! Chegaremos com tempo, vos prometo e seguro.
Estácio fez um gesto negativo.
— Serias tu capaz, Gil, de um esforço que infelizmente não me consente esta ferida mal curada?
— De que não serei eu capaz em serviço vosso?
— Estamos próximos do mar. Esforçando, tu podes alcançar a costa; toma aí um barco que te levará à cidade em uma hora com o vento que faz.
— Pronto! replicou o pajem, erguendo-se da relva de um salto.
— Aqui tens dinheiro para afretares o barco. Em chegando vai direito a Cristóvão, e dize-lhe onde me deixaste.
— Somente isto?
— Somente; ele virá ao meu encontro, e então saberei... o que tremo de saber.
Gil pôs a clavina à bandoleira, e dispôs-se a partir. No momento de se despedir do amo, uma incompreensível emoção apoderou-se dele, que lhe arrancou lágrimas dos olhos. Triste pensamento o assaltara. Deixava Estácio ali no ermo, ferido, cercado de mercenários incapazes de dedicação. Quem sabe se tornaria a beijar a mão de seu querido cavalheiro!
Também Estácio teve um inexplicável enternecimento ao abraçar o rapaz. Não era ele homem, cujo coração se embrandecesse a pequeno calor; tinha-o de boa têmpera, e era necessário o fogo ardente das grandes paixões para fundi-lo. Nesse momento não pôde compreender o que sentia: teve quase remorsos de arriscar o menino só, por caminhos desertos.
Gil partira. O troço de viajantes continuou a jornada até meio-dia, quando fizeram outra alta para deixar passar a força do sol. Estácio deitou-se à sombra, e dormiu profundamente todo aquele tempo. Ao despertar sentiu vigor novo; comeu com apetite e respirou à larga o ar puro e fresco da tarde.
Nesse instante o nitrido de um cavalo reboou pela campina. O som vibrante do brioso animal pruriu o coração do mancebo; ergueu-se rápido correndo o olhar em torno. O poltro aproximava-se aos saltos do lugar onde se achavam; e avistando-os fugiu arisco para voltar depois.
Estácio arranjou um laço na ponta de uma longa corda; e ajudado dos companheiros conseguiu apanhar o animal, que montou em pelo, à sertaneja. Naqueles tempos o melhor poltro valia duas moedas, que Estácio deixou à sua gente para indenizarem ao dono, se aparecesse.
Cerrando os calcanhares na ilharga do indômito animal, partiu a galope na direção da cidade. Desejava ter asas para transpor com a velocidade do vento as quatro léguas que faltavam. Passava em sua alma uma coisa muito natural, e que entretanto lhe parecia estranha: tendo suportado com resignação durante perto de três meses, que tanto durara sua jornada, a ausência de Inesita, agora às abas quase da cidade, quando só lhe restavam três a quatro horas de caminho, sentia uma impaciência e sofreguidão extremas. Como dissera a Gil, parecia-lhe que naquele dia se estava decidindo de sua sorte na Bahia, e estremecia pensando chegar tarde!
O dia declinou; veio a noite; as estrelas recamaram o azul do céu.
Estácio galopava sempre; apenas tinha feito curta parada, para deixar que o poltro resfolgasse da batida e bebesse num ribeiro; depois continuara a correr sobre a cidade. Seriam sete hora, ou cerca, quando avistou as primeiras habitações dos subúrbios. Estava em Nazaré. Seus olhos ávidos e ardentes vinham já de bem longe buscando o sítio da casa de D. Francisco de Aguilar; numa volta do caminho o edifício lhe apareceu de repente no seio de um alto clarão.
Involuntariamente o alferes estacou diante da inesperada cena. A luz daqueles fogos entrou-lhe n'alma como um raio de maldição, e o estremeceu. Passado o primeiro deslumbramento, partiu ainda mais veloz, lamentando o instante de demora. Então, à medida que avançava, o painel se desenhava mais vivo.
Era uma festa, sem dúvida. Já chegavam aos ouvidos do mancebo os sons da música de envolta com o ledo burburinho dos convivas. Qual fosse porém o motivo desta festa, não o sabia ele e tremia de adivinhá-lo!
Chegou afinal às proximidades da casa; apeou e embuçando-se no manto de viagem, penetrou na zona iluminada que cingia o edifício.
O que depois sucedeu, foi referido até o instante que deixamos Estácio e Cristóvão.
Ei-los ali ainda, no vasto gabinete frouxamente esclarecido, em face um do outro, com as espadas nuas e prestes a se cruzarem. Estácio vibrou a lâmina da sua, que cintilou aos olhos de Cristóvão como um raio de morte.
O mancebo recuou de um salto:
— A infâmia te fez cobarde? disse Estácio destilando sarcasmo do sorriso.
— Não devo morrer às tuas mãos! replicou Ávila com firmeza.
E curvando o joelho, partiu de encontro a folha da espada, cujos pedaços rolaram pelo chão.
— A que outras morrerás, senão às de tua vítima?
— Às minhas próprias!
Tirou o punhal da cinta.
— Tens razão! Esta obra de justiça é digna de ti!
— Oh!... Eu não posso morrer maldito por ti, irmão! Ouve-me!
— Nem uma palavra!
— Estácio!...
— Depois da traição a mentira!
Soaram nesse instante umas após outras as surdas badaladas de meia-noite.
Cristóvão conduziu Estácio à janela meio cerrada donde se via fronteira a mesa do banquete. Os rumores que enchiam a sala do festim apagaram-se de repente; no meio do silêncio a voz grave e sonora de D. Francisco pronunciou estas palavras:
Em nome da Santíssima Trindade.
Declaro eu D. Cristóvão de Garcia de Ávila, que este é meu testamento.
Resolvido a pôr termo a uma existência que a desventura tornou insuportável, e querendo que meus últimos instantes sirvam à ventura do homem que mais amo, aceitei em seu nome a mão de D. Inês de Aguilar, unicamente para restituí-la pura e imaculada àquele a quem ela jurou pertencer. O que não podia a filha obediente realizar sem consentimento de seu pai, ordeno eu à minha viúva que o faça. Seja mulher de meu irmão Estácio Dias Correia, e ambos felizes me perdoem e orem por minha alma.
O punhal de Cristóvão, antes de terminada a leitura, ia embeber-se-lhe no peito; porém a mão robusta de Estácio travou-lhe do braço a tempo, e arrancou-lhe a arma.
O mancebo cingiu e estreitou ao seio o amigo dedicado até à morte.
— Por que chegastes tão cedo, Estácio?... murmurou Cristóvão. Não teríeis curtido tão cruas dores!...
— A Providência é impenetrável nos seus desígnios, Cristóvão!
Proferindo estas palavras, Estácio abaixou a fronte pensativa e carregada de sombras. Cristóvão sentiu remorsos de viver ainda; e aproveitando a distração do amigo, estendeu a mão para o punhal; Estácio preveniu-lhe o movimento.
— Inesita era sabedora de vossos intentos?
— Não! respondeu Cristóvão. Ela nada sabe, nem suspeita.
Uma ruga funda sulcou as faces do alferes.
— O que fiz por vós, não foi mais sacrifício, Estácio, do que o receio de ofender a suscetibilidade de vosso coração, buscando dar-vos a felicidade. Quanto à minha vida ela estava extinta, e se teria apagado há quinze dias, se não me inspirasse a Providência o meio de assegurar a vossa felicidade. Não podeis ter remorso da minha morte.
Cristóvão referiu tudo. Estácio o escutava distraído; ele tinha diante de si a imagem de Inesita, tal como a vira na capela, fulgurante e esplêndida.
— Mas, Cristóvão, se Inesita ignorava as vossas intenções, como acontece que foi livremente ao altar, ela que jurou não pertencer a nenhum outro senão a mim?...
Ávila estremeceu diante deste raciocínio formidável, tanto mais quanto ele próprio admirara a coragem da donzela, e o desembaraço que mostrara toda aquela noite.
— Não vos disse a conversa que tive com ela na véspera?...
— Sim; lhe assegurastes que não perdesse a fé, apesar do que sucedesse: mas há fé que resista nestas circunstâncias?...
Estácio prosseguiu com voz amarga:
— Quando cheguei à capela... Ainda vejo!... Meu Deus!... Que radiante aspecto que ela tinha! Que olhar vos lançou!
Cristóvão sentiu frio até a medula dos ossos:
— Era indignação, Estácio!
— Indignação!
— Oh! agora compreendo bem!... A calma aparente de Inês não era senão o ímpeto da cólera que a dominava. Ela se preparava para esmagar com seu desprezo o traidor infame!
Bateram à porta. Era Afonso.
— A Sr.a D. Inês busca seu nobre desposado.
— Onde está ela? exclamou Cristóvão surpreso. Não vos recomendei...
— A Sr.a D. Inês já se tinha retirado à sua câmera.
— Dizei-lhe que aqui a espero!
Àquela palavra desposado, a mão de Estácio rasgou com desespero o peito; seu coração crispou-se. Voltando-se, viu Cristóvão a dolorosa angústia, que se retratava na sua fisionomia:
— Seu desposado, Estácio, sois vós, pois eu já não vivo. Não me perdoareis nessa última hora, ter-vos representado na ausência? Ela não tarda!... Recebei vossa Inês, e adeus, irmão!
Estácio precipitou para Cristóvão que ia sair, e o reteve:
— Cristóvão, haveis de viver!... É a minha vontade! Também eu viveria se acaso...
A voz se evaporou em soluços:
— Ouvi!... A minha resolução inabalável é esta! Não proferireis uma palavra, nem fareis um gesto que denuncie a Inês minha presença. Comunicai-lhe vossas intenções e o fim deste casamento. Eu ouvirei oculto por aquele reposteiro!...
— Que pretendeis fazer?
— Se Inesita aceitar sem hesitação o vosso sacrifício, partireis para nunca mais voltar! É tudo quanto aceito de vós!
— Deixai-me antes morrer!
— Desde que vosso luto se enramasse às flores do meu amor, ele não podia ser feliz. Jurai-me que haveis de viver!
— Juro! Esse, sim, será sacrifício para vossa ventura.
— Se porém ela vos...
— Calai-vos, Estácio!
— Então partirei eu!...
— Tereis remorsos deste pensamento.
Ouviram-se os ruges-ruges da seda. Estácio mal teve tempo de ocultar-se; o vulto gracioso de Inesita assomou. Enlevada por um sublime pensamento, ela parecia fugir à terra e embeber-se já na serenidade do céu, tal era a expressão de suave placidez e bem-aventurança que se derramava por toda a sua pessoa. Seu passo não mais calcava o solo com a majestade régia que tanta graça lhe dava; agora deslizava brandamente como o voo de um anjo resvalando à superfície da terra, antes que remonte ao empíreo.
Caminhou para Cristóvão, cingida da celeste irradiação, e pôs nele os olhos cheios de uma magoada severidade:
— Há uma hora vos odiava, senhor! Neste instante solene vos perdoo!
— Este perdão eu o mereço, e o esperava, senhora! exclamou Cristóvão. Toda a noite senti os raios de vosso desespero que me abrasavam as faces; mas eu sabia que eles se apagariam mais tarde, quando soubésseis que este casamento não era a traição infame que julgastes, mas a ventura vossa ou o meio único de unir-vos a Estácio!...
— Escarneceis de mim, ou enlouquecestes!...
— Recebi vossa mão para ter o direito de a restituir a Estácio. Cristóvão de Ávila, senhora, já não existe! O que vedes é seu vulto apenas, ele vai deixar-vos nesse instante, viúva, mas só do infortúnio. O himeneu do amor e da felicidade vos espera.
Inesita surpresa, ficou um instante transida; mas logo exclamou arrebatadamente:
— Não, senhor! Haveis de viver!... Sim!... Haveis de viver para ventura de vossa esposa querida, da escolhida de vosso coração!...
Cristóvão ficou estupefato; um tremor convulso apoderou-se dele:
— D. Inês!... Quereis que eu viva?...
— Eu vos suplico... e ordeno!...
Ouviu-se um soluço por detrás do reposteiro; e logo após os passos de alguém que se afastara rápido. Cristóvão correu à porta e arredou violentamente o reposteiro; não havia ali mais ninguém.
— Estácio!... proferiu a voz de Cristóvão soluçando.
— Meu Deus!... exclamou Inesita.
— Vós o matastes, perjura!
Soltando esta exclamação, Ávila ia correr após o amigo. As mãos da donzela lhe cingiram o braço com uma crispação nervosa, e o retiveram ali:
— Não saireis, senhor. Deus vos ordena!
Cristóvão sucumbiu.
Estácio já andava bem longe!
Ia ao acaso, sem acordo de si. Vagou assim muito tempo alheio ao mundo exterior; não era um homem, mas um esquife fúnebre, que força misteriosa arrastava pelas trevas da noite. A primeira réstia de luz, que penetrou o abismo daquela dor, foi a lembrança de Vaz Caminha. O mancebo sentiu a necessidade de vazar sua alma no seio do velho amigo e preceptor; mas era tarde já; sem dúvida o advogado repousava. O atroz sofrimento não pudera apagar nesse nobre coração o tato e as delicadezas do sentir: preferiu esperar, antes que perturbar o breve descanso daquela existência decrépita.
Então levaram-lhe os pés sem que ele se apercebesse à Ribeira, em frente à porta de sua casa.
Que era feito de Gil?... O pajem, que ele mandara adiante prevenir Cristóvão da sua vinda, não dera conta da incumbência. Chegaria ele tarde, ou não tinha ainda chegado, e estava àquela hora exposto aos riscos do caminho?
Ainda teve o moço coração para se inquietar com a sorte do pajem, além de que sentia a necessidade desse companheiro. Bateu à porta; se Gil havia chegado à cidade, ali na casa devia estar sem dúvida esperando-o. Bateu de novo e redobrou de força. Depois de repetidas pancadas, ouviu-se rumor dentro; a gelosia do canto rangeu:
— Isto é hora de bater na casa dos outros? disse uma voz de zanga. Siga seu caminho!...
— Desculpai, boa mulher! Essa é a minha porta!
— Quereis chalaça!
— Falai mais baixo para não acordar a tia. Está ela dormindo por certo.
— Qual tia?...
— D. Mência!
— Ah!
Com esta exclamação mudou imediatamente de tom a voz; de áspera e irada tornou-se branda e compassiva:
— É o Sr. Estácio?... Pois não sabeis?
— O quê?
— Vossa tia já aqui não mora.
— Onde está ela então?...
— No céu!