As Minas de Prata/III/XXIV
Desde que deixara o confessionário do Colégio, caíra Dulce em uma espécie de letargo, do qual só três dias antes saíra. Vaz Caminha apareceu como de costume e alegrou-se de a ver mais animada; porém logo a conversa tomou um tom melancólico.
— Tenho um pressentimento, doutor, de que me finarei breve, e pois quero confiar-vos meu testamento.
— Recaís na melancolia, D. Dulce. Tratai de vos distrair.
— Ei-lo. A ninguém tenho já com quem distribua os bens da fortuna, como não tenho há muito com quem reparta os bens deste pobre coração, a não serem vós e vosso filho d'alma, Estácio.
— Quanto a mim, não consinto... ia replicando o advogado.
— A vós, doutor, deixo-vos pouco, bem pouco, um quase nada. Estais velho e só; não tendes mais ambições, senão uma que me confiastes, a de ver saído da estampa esse outro filho de vossa alma, que durante a vida inteira e por longas noites embalastes. Deixo-vos para isto o bastante e nada mais.
Com esta delicadeza apagou os escrúpulos do velho; durou a prática até Ave-Marias, em que se foi Vaz.
— Não ide triste, meu velho amigo. Que meu padecimento está para acabar, eu o sinto. Talvez o acabe a morte, e talvez, quem sabe, a ventura.
— Qual ventura?
— A que Deus me enviar.
Partido o advogado, a dona deu em segredo várias ordens a Lucas, o qual foi-se a cumpri-las. Depois despediu a Brásia do seu serviço, apesar das lamúrias da velha comadre, e ordenou-lhe que deixasse imediatamente a casa com seu fato; para isso a mandou bem paga de suas soldadas.
Ficando só, abriu a dama baús da Índia, onde estavam guardadas roupas do mais rico estofo e lavor, mimos de seu pai, que pensava distraí-la com estas galas; ainda porém ali estavam em folha como haviam saído das mãos que as trabalharam.
Dulce compôs-se embelezando-se como para uma festa. Ao ver retratar-se no espelho do trumó sua imagem, o sorriso, tanto havia refrangido, desatou do lábio.
— Ainda sou formosa!
A paixão a transfigurava.
— Mais formosa talvez do que outrora... na festa da maia.
Dulce tinha razão; o botão de outrora radiava em flor estrelada. Em Palos sua beleza tinha sido uma aurora; nesse momento era um esplendor.
Fechara a noite.
A dama tirou da gavetinha do trumó uma carta, e leu-a antes de a cerrar com cera preta. Continha apenas estas palavras:
Dissestes que só no céu veria meu esposo; para lá me parto agora. Espero que me não desampareis neste momento derradeiro.
Por Lucas mandou a carta ao Colégio, para ser entregue ao P. Molina sem mais demora, pois se tratava de um caso grave. Enquanto dava o negro conta da incumbência, Dulce recostou-se à janela do quintal; perto dali um pedreiro, trazido por Lucas, amassava a cal e arrumava os tijolos para uma obra qualquer, urgente, pois entrava pelo serão.
— Ele virá! balbuciou a moça.
No receio de que o jesuíta se esquivasse ao chamado, lembrara-se quanto havia de pesar em seu ânimo a ideia de não consentir que outro ouvisse a confissão extrema da esposa abandonada.
Seriam nove horas quando o P. Molina guiado pelo negro chegou à casa, e logo depois ao lugar onde o aguardava a penitente.
Era o oratório estreita quadra no centro do edifício, fechada em cima por abóbada, e servida por uma só, e esta pequena porta. No fundo estava o altar com os círios acesos; ao lado sobre um coxim de veludo, a dama envolta em manto de lila preta que a cobria da cabeça aos pés, mostrando apenas a flor do pálido semblante.
— Que fizestes, senhora?
— Morro para ter o direito de ver-vos! respondeu uma voz dolente.
O padre quis sair.
— Onde ides?
— Em busca de socorro. Sem dúvida tomastes alguma droga. Eu vos salvarei!
Travou-lhe a dama das mãos:
— É escusado! Uma hora de vida, se tanto que resta, desejo que a passeis à minha cabeceira. É vosso dever de sacerdote!
— Meu primeiro dever é salvar-vos.
— Tendes vós o direito? Me restituireis a felicidade com a vida? Dizei-o!... Não respondeis!... Bem vedes que nada há já que me salve.
A senhora escondeu nas mãos o rosto banhado de lágrimas. Os soluços rompiam-lhe do peito. Quando acalmou esse acesso de dor, começou com débeis acentos:
— Fazem quinze anos!... Tantos eu tinha!... que formosa noite nas margens do Tinto: tudo era amor em torno de nós! Quem me dissera então que a minha noite de noivado tão linda se havia de trocar por esta tão aziaga! As bodas e a agonia se reuniram; e o esposo fez-se confessor!...
O frade escutava; as rugas, que sulcavam sua fronte proeminente, afundavam, como se o espírito se contraíra até os refolhos da consciência. A dama murmurou ainda aquelas brandas queixas e afinal sopitou-se em sua dor.
Decorreu longo trato. No oratório reinava o silêncio; mas na parte de fora da porta ouviam-se uns rumores estranhos e descompassados; não penetravam eles o espírito do jesuíta imerso nas profundidades de seu passado; porém no coração de Dulce repercutiam tristemente como os sons do martelo na catacumba.
Então a palavra borbulhou do lábio do jesuíta, como a espuma do álcool por muito tempo reprimida:
— Neste momento supremo, posso dizer-vos!... Já não sois deste mundo; estais a comparecer ante o Senhor; e lá haveis de ler em minha alma.
— Falai sim! É supremo consolo ouvir-vos!
— Pois sabei, mulher, que muito vos amei eu também...
— Vós?... Não é possível!...
— Não foi quando vos vi a vez primeira às margens do Tinto, em vosso casalinho, que vos quis... Então era eu uma criança, e folgava convosco brincos de infância, quando juntos dançávamos na festa da maia, quando corríamos à casa do cura que abençoou nossa união. Desde que me arredastes de vossa vista, quebrou-se o encanto. A sede de aventuras, que me escaldava o cérebro, arrancou-me à vossa influência. Vi um jesuíta; isso decidiu de minha sorte. Era ambicioso; e diante de mim abria-se uma carreira brilhante a percorrer.
A dama ergueu o busto sobre a almofada.
— Quando foi que me quisestes então?
— Quando passados anos vos vi a meus pés na Igreja de São Domingos, mais formosa que nunca. Era eu já um mancebo; apesar de que me cobria este hábito, não tivera ele ainda tempo de enregelar o coração vigoroso e ardente. Achei em minha vontade a força grande de repelir-vos com dureza, e pôr entre nós a imensidade dos mares. Mas donde vos não pude arrancar foi desta alma, onde a cada instante surgíeis cheia de seduções irresistíveis para provocar toda a possança de um amor veemente.
Molina debruçou ao leito sobre o rosto da dama:
— Sofrestes!... Sofrestes muito!... Que foi porém vosso sofrimento em par com o meu? A pureza de vossa consciência, a serenidade da virtude, nada a perturbava em vossa dor e aflição... Mas eu?... Réprobo que abjurara os votos conjugais pelos votos da religião, e me sentia de novo arrastado para o amor, desprezado quando ventura, e anelado agora que era crime e sacrilégio! Vossa imagem, deslumbrante de beleza, resplendente de paixão, se ostentava no meu delírio; eu lutava, abraçando-me com todas as forças à cruz do Senhor; mas as garras de Satanás me arrancavam daí, dilacerando-me para me rojar a vossos pés. Vós porém me repelíeis com asco e horror, como um evadido do inferno. Tentação até o sacrilégio, desprezo até o asco, eis a minha existência. Perante Deus, réprobo, perante vós, infame; minha virtude de sacerdote, minha consciência de homem, se martirizavam mutuamente.
— Esposo!... murmurou a meiga fala de Dulce.
— E nessa grande solidão da dor, em que minha alma viveu, nenhum pensamento consolador. Onde achá-lo? Aos pés do altar que eu maculava? Junto a vós a quem desgracei? Nas recordações de uma infância desvalida e vergonhosa?... Cristo teve sete passos para carregar a cruz ao Calvário; eu, pecador, devia arrastar a minha sem repouso, nem alívio.
O jesuíta ergueu-se arrebatadamente, e afastando-se do leito, cruzou o aposento com passos agitados. Rangiam-lhe os dentes; os lábios tremiam com arrepio convulsivo. Uma luta desesperada e terrível agitava sua alma:
— Restava este último e supremo combate!... Todas as iras do Senhor se desencadeiam contra mim, pobre e mísero mortal!... Minha coragem está exausta, minha vontade cansou!... Mas não sucumbe assim a alma do justo! Não!... A virtude que lutou até hoje, sairá triunfante de sua derradeira provança.
Fazendo então um heroico esforço, aproximou-se outra vez do leito, e cravou os olhos na dama, estática de ver a estranha agitação:
— Sim, vencerei!... Mas é preciso que eu fale!... O horror de meus pensamentos, ecoando aos meus ouvidos, e arrancando a indignação de vossos lábios, talvez flagele este mísero réprobo e aplaque o infame desejo!... Nem imaginais, mulher, o que vai no abismo insondável desta arca!... Enquanto vos falo, sacerdote, a vós, moribunda, sabeis que influições sobem deste leito ao meu espírito satânico?... São as seduções da paixão!...
Dulce quis falar; ele abafou-lhe a palavra nos lábios:
— Ouvide!... A cada instante, aos meus olhos alucinados, este oratório se transforma na câmera nupcial!... Lá corre o Tinto a murmurejar; aqui está o leito e a noiva a sorrir. Através da mortalha, que já as cobre, eu vejo as formas sedutoras, e minha alma precipita para cevar-se nesse fúnebre himeneu!
Dulce ergueu-se de um ímpeto; com esse movimento brusco a negra manta que a cobria toda deslizou pelas espáduas, e ostentou-a no esplendor de sua beleza.
Dulce tinha o voluptuoso traje de noiva, últimos véus da virgindade expirante, que um sopro basta para desfazer. Nas oscilações dessa transparência que ora se empana, ora se aclara, a formosura radiante da andaluza radiava fascinações ardentes:
— Os braços de vossa esposa estão abertos para vós, querido!... Quanto há que vos eles esperam e anseiam! Não vos enganais! Essa é a noite feliz de nossas bodas, que um contratempo interrompeu e agora continua mais desejada. Estamos sós, é linda a noite; este céu é belo como o nosso da Andaluzia; as brisas do mar também se inebriam aqui do cheiro das flores de laranja!... Vinde, amado meu!...
Molina hirto de espanto arrancou de seus ombros, como se fora um jugo de ferro, o nevado braço que a dama cingiu-lhe ao colo.
— Arredai-vos, mulher!... Que significa este jogo? É alucinação minha, ou embuste vosso? Sois vós a envenenada que me falava pouco há, com voz e gesto de moribunda!
— Sou vossa esposa amada! Quero viver; sim, para o vosso e meu amor!... Essa, que vossa alma desejou com tais ímpetos de longe, ou à borda do túmulo, não a quereis mais, agora que vos ela sorri e se arroja a vossos pés?...
O frade recuou, como se erguera-se ante ele uma vípera assanhada, e caminhou direito à porta.
A dama precipitou-se avante e tomou-lhe o passo.
— Não partireis!...
Houve um instante de hesitação, em que o sacerdote cerrara as pálpebras para não ver a deslumbrante beleza que lhe entrava pelos olhos e alma adentro. Depois ele a afrontou com a vista, senão calma, segura, e proferiu em voz firme:
— Ficarei, tendes razão! Devo levar ao cabo esta dura provança; sairemos dela, eu torturado e vós para sempre desenganada. Não me compreendestes, Dulce! Eu vos amo! Esse amor porém é uma flagelação d'alma, mais crua que a flagelação do corpo!... Não o reclameis, que ele se voltará em rancor profundo!... Entre nós está Deus!
— Não profaneis esta palavra amor, como profanastes a santidade de nosso himeneu!... Se fosse verdade que me amásseis, não teríeis nem a força, nem a vontade de resistir aos impulsos do coração!... Mas basta o temor do pecado para gelar-vos o sangue!... Quereis saber como se ama? É assim como vos eu quero e anseio há tantos anos!... Olhai-me!... Todas as potências de minha alma se arremessam para vós!... E eu sei que sois um sacerdote, que pertenceis ao Senhor!... Venha embora a condenação eterna; a lembrança dela me é doce, porque promete unir-nos no inferno, já que o amor nos expulsa do céu.
— A castidade é a nossa força! Os companheiros de Cristo, como seu mestre, devem preservar-se da impureza. Aí está sua virtude; aí o poder que tem realizado tantas coisas grandes. Não é a miserável individualidade minha que eu defendo contra o vosso amor; é o apostolado que me foi confiado, e a obra gloriosa que eu prossigo.
— Sois ambicioso?... Eu já o sabia. Correis após as minas de prata, que jamais encontrareis, porque elas não existem!... Tesouros porém de maior vulto, riquezas fabulosas, como nunca sonhastes, tenho eu que são vossos, que pertencem a meu esposo. Elas vos farão grande, príncipe, rei... o que desejardes!... E em troca de todas essas grandezas, só vos peço amor, amor!... Amor por um dia, amor por uma hora!...
— Onde estão essas riquezas? perguntou o frade com avidez.
— Duvidais?
Dulce correu ao altar, e erguendo a oca peanha de madeira, que servia de base ao crucifixo, tirou do vão o cofre embutido, que fora desenterrado pelo Doutor Vaz Caminha. Abriu-o com a chave de ouro que trazia, e ergueu a tampa.
Molina fechou os olhos deslumbrados, soltando um grito de terror. Do cofre aberto jorraram espadanas de luz, que rutilavam da cópia de grandes diamantes ali encerrados. A dama encheu as mãos das pedras preciosas e começou a brincar, fazendo-as borbulhar como cascatas.
— Recebei, esposo meu, é o dote de vossa Dulce!... disse afinal a formosa dama apresentando o cofre.
O jesuíta sorriu:
— O que vós não pudestes em mim, senhora, não poderão estas brutas pedras!...
Com o gesto repudiou o cofre, e foi ajoelhar ante o Cristo.
Quanta sedução inspira à mulher a consciência de sua beleza e o afogo de veemente paixão, Dulce desenvolveu naquela hora. A contrariedade lhe enfurecia o amor, que então bramia raivoso; mas logo aplacava, arrastando-se súplice e humilde aos pés do impassível jesuíta.
— Tentai-me!... murmurava este. A alma sairá mais fortalecida do combate!
O rumor, que desde princípio se ouvia do lado da porta, parecia ir a pouco e pouco subindo ao longo da parede. Dulce, que por algum tempo o esquecera, ouvindo-o agora, estremeceu. Lançando para aquela parte um olhar esvairado, voltou-se para o sacerdote:
— Ainda uma vez!... Sereis ou não meu?
— Pertenço ao Senhor!
— Pois então sabei que também fiz um voto. Jurei que não sairemos deste aposento, senão esposos ou cadáveres!...
— Cumpram-se os altos desígnios da Providência.
Ambos emudeceram. O frade orava; a dama escutava o ruído, que a pouco e pouco ia diminuindo; afinal interrompeu-se; soaram no alto duas pancadas fortes e rijas; depois cessou completamente o rumor.
— Ouvistes!... exclamou Dulce. Foi a lousa de nossa catacumba que acabam de selar.
— Não vos entendo.
— A porta por onde entrastes, a única deste oratório, está murada por fora.
O jesuíta circulou com os olhos o aposento e examinando a porta conheceu que estavam realmente sepultados em vida. Acreditou então nas palavras de Dulce, as quais a princípio tomara por uma vã ameaça.
— Não me pertencestes na vida, me pertencereis na morte. Teremos o mesmo túmulo, já que não tivemos o mesmo toro.
As luzes do oratório extinguiram-se; a treva derramou-se pelo aposento.
Lucas, deitado da parte de fora, junto à parede, com o ouvido colado no chão, não ouviu mais rumor no oratório durante o resto da noite; mas pela manhã percebeu ele que batiam com força contra a porta, e apesar da ordem da senhora, custou-lhe a não seguir os instintos de sua natureza, que o excitavam a penetrar no aposento. O silêncio porém logo restabeleceu-se até o momento em que ali chegou Estácio.