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As Minas de Prata/III/XXVI

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Caía essa noite fatal que vinha tão prenhe de calamidades. Elvira, recostada na penumbra do balcão, engolfava-se em um melancólico cismar.

Acudiam-lhe à mente as doces recordações de seus puros e castos amores, quando o virgem coração começara a desbotoar como uma flor, à luz ardente dos olhos de Cristóvão. Lembravam-lhe as tímidas esperanças, os contínuos rubores, os desejos travados de sustos, todos esses desmaios do coração que anunciam a concepção do amor.

Mas a pouco e pouco iam-se apagando estas reminiscências vivaces, como se apagavam no horizonte os tons rubros e áureos do arrebol da tarde; sucediam tons mais carregados e sombrios; lembranças da luta que teve a sustentar com sua mãe para defender seu amor. Finalmente a luz esvaecia-se de todo; ao crepúsculo sucedia a treva do presente cheia de tristura e ermo de esperanças.

Era noite.

O espírito da donzela parecia acompanhar o declínio da luz no horizonte, e sofrer a influência da sombra no espaço. A mesma escuridão, que sepultava a natureza, enlutava agora sua alma.

Depois da tarde em que com generosa abnegação restituíra a Cristóvão seu juramento, a existência da donzela era essa: sair um instante do presente para logo após tombar nele e mais fundo. Era o transe do mísero náufrago; à custa de violento esforço surde à tona, braceja em vão, respira, entrevê o risonho azul do céu, e afinal de novo submerge-se.

Elvira estava excessivamente pálida, mas ainda assim formosa; sua beleza tinha certa diafanez que a assemelhava a uma linda imagem de cera, qual se adora nos altares. Uma semana havia que ela começara de sentir um estranho sofrimento. De repente fugia-lhe a vida, deixando seu corpo frio e exânime; após a vertigem ficava-lhe uma sensação inexprimível, como a aspiração interna de todo o seu ser, seguida de uma constrição profunda.

A donzela curtia consigo este novo padecimento; ela se habituara de há muito a sofrer só e sem queixumes. Desde que sua mãe uma noite vibrara o punhal que devia cortar o elo de seu amor, e abandonara a vis assassinos a existência de Cristóvão, interpusera-se entre ambas véu glacial como um sudário.

Um dia porém D. Luísa de Paiva surpreendera a filha presa da costumada vertigem:

— Que tens, Elvira?

— Nada, minha mãe.

— Estás sofrendo alguma coisa, que pretendes ocultar-me! replicou a dona com voz severa.

A donzela ergueu para ela um límpido olhar; mas sua voz era profunda.

— Confessei-vos piores coisas, senhora!

Depois acrescentou:

— Há dias sinto uma vertigem, que me vem de repente, e uma agonia dentro, como se me arrancassem as entranhas. Mas logo passa... Há de ser fraqueza.

D. Luísa estremeceu; logo se contendo, derramou pelos lábios um sorriso de cruel ironia. Elvira viu esse sorriso sem o compreender; sua alma porém agastou-se com ele, como a sensitiva.

— Sei o que isso é!... Careces sem demora de ser curada para que não cresça o mal, que então será sem remédio. Vou te preparar uma mezinha de muita virtude, que me ensinaram.

— Para que, minha mãe? Isto nada é.

A dona voltara tempo depois com uma beberagem, de que obrigou a filha a tomar alguns tragos; nos dias que seguiram repetiu a dose, que a donzela bebeu sempre com indiferença, insensível tanto ao amargo do remédio como ao benefício dele.

Nessa noite, apenas acenderam luzes, D. Luísa veio como de costume trazer à filha a taça com remédio. Elvira, perturbada em sua dolorosa cisma, mas não arrancada a ela, segurou a taça maquinalmente e levou-a ao lábio. Quando porém o líquido verteu a primeira gota, ergueu-se a donzela arrebatada e fora de si.

A cabeça levemente pendida à esquerda, como se inclinara o ouvido às palpitações do coração, os lábios entreabertos pelo forte anelo, o corpo convulso para dentro de si, tal foi a atitude de Elvira alguns instantes. De repente ela soltou um grande e pungente ai, levando a mão ao regaço; uma cólera grande que dormia no fundo de sua alma, desencadeou-se como uma procela.

— Não o haveis de matar! Quereis imolar o filho, como já imolastes a mãe ao vosso fanatismo! Mas Deus não consentiu. Ele acaba de revelar-me por uma influição de sua infinita misericórdia a existência de meu filho!...

D. Luísa de Paiva dardejou sobre a donzela um olhar ímpio:

— Bebe!... exclamou apresentando de novo a taça.

— Nunca!...

— Preferes a infâmia?

— Estou resignada, respondeu a donzela com humildade.

A viúva teve um instante os olhos cravados sobre a filha. Que mau pensamento ruminava ela naquele transe?

— Então para salvar este fruto do crime e da vergonha que trazes no ventre, não te importa macular o nome de teu pai e a virtude de tua mãe, de lançar sobre os que te geraram o desprezo e o escárnio de tua desonra?

— O crime foi meu; só eu serei punida!

— Assim devia ser, mas assim não é. O mundo dirá vendo-te passar: — É a filha de Afonso de Paiva, o honrado mercador, que tornou-se uma...

— Minha mãe!...

— Arrepia-te o nome? O povo o dirá não uma, porém mil vezes!

Sentiu Elvira irritar-se o coração contra aquela crueldade:

— Pois que repita!... Será maior o castigo, quanto maior for a vergonha! Tudo sofreria, e agora ainda mais, por meu filho.

— Por teu filho!... E esse mesmo, quando souber que é um bastardo, não te pedirá contas severas de tua virtude e de sua honra?

— Ah! exclamou Elvira ferida n'alma.

Sua mão chegou a estender-se para a taça; mas uma boa inspiração lhe desceu do céu, que retraiu o movimento e lhe orvalhou de sorriso e esperança o semblante angustiado:

— Meu filho terá um nome honrado e nobre!

— Qual?

— O de seu pai.

A viúva soltou um riso de mofa.

— Supondes que Cristóvão me abandonou? continuou Elvira. Pois sabei, minha mãe, que fui eu quem o absolvi de seus votos e a seu pesar, porque me julguei indigna de seu amor, depois de meu pecado, embora fosse ele a causa. Mas aceitarei para meu filho o que para mim recusei.

O riso escarninho da dama redobrou:

— De que rides vós, minha mãe?

— É verdade; não sabeis ainda! Ouvis este rumor de festa que anda lá fora? Nem suspeitais o que seja?...

— Acabai!

— São as bodas de vosso fiel amante D. Cristóvão de Garcia de Ávila.

— Meu Deus!

— E adivinhais com quem? Com vossa melhor amiga, a formosa D. Inês de Aguilar.

— Ah!

Elvira caiu fulminada sobre o estrado. Sua mãe, depois de a contemplar algum tempo, conhecendo que ela não carecia de socorro corporal, retirou-se, esperando tudo da situação em que deixava a donzela. Perdida toda a esperança de casamento, o único recurso, que restava, era o aborto; assim destruiria o obstáculo que sobreviera para impedir o cumprimento de seus votos.

Ergue Elvira a cabeça e circula o aposento com olhares esvairados. Não vendo a mãe, como que sua alma sentiu-se aliviada de um grande peso.

— Não é a primeira vez que ela me engana! Verei Cristóvão e lhe suplicarei em nome de meu, de nosso filho! Ele é nobre e generoso! Se porém for verdade... Se chegar tarde para obstar que seja esposo de outra...

Levantou-se resoluta:

— Não matarei meu filho, não!... Morrerei para que ele não nasça à vergonha e à desonra!

Rebuçando-se à pressa em escura manta, resvalou como sombra ao longo do corredor. Já corre na direção da cidade; passa a porta de São Bento; seu instinto a leva à Sé, cujo caminho conhece. Ela sabe que Ávila mora nas imediações, e espera poder orientar-se ali chegando.

A gente do povo, que concorria à casa do fidalgo para ver chegar os noivos, a guiou; quando o cortejo já aparecia no princípio da rua, Elvira sem dar fé, atravessou da outra banda e entrou na habitação de Cristóvão.

Esgueirou-se como um fantasma ao longo das escadas e deslizou pelos aposentos iluminados; de repente abriu-se diante dela uma porta, e seus olhos viram o leito nupcial ricamente adornado. Em torno as aias da noiva dispunham suas roupas de dormir sobre o coxim de veludo, e davam o último alinho à câmera festiva.

— Cristóvão!... Cristóvão!... exclamou Elvira arrojando-se no aposento, e recuando ante aquele aparato.

As mulheres, que ali estavam, volveram para a desconhecida com surpresa, depois se entreolharam rindo, e cochicharam da aventura.

— Não me direis onde encontrarei D. Cristóvão de Ávila?... Não é esta sua casa?

— Pois não estais vendo que é esta mesma? Onde o encontrareis?... Não vedes o povo que festeja os desposados?

— Os desposados!... Mas então já vêm da igreja?

— De lá saíram.

— Sois também das convidadas?

— Chegastes tarde para a cerimônia, mas a tempo para a ceia.

— Ai, Jesus, que foi?

Era Elvira que tinha caído desmaiada. O rebuço da manta desconcertou-se, descobrindo o rosto. Uma das aias reconheceu a amiga querida de Inesita; tomando-a nos braços, deitou-a sobre o leito, e cuidou de chamá-la a si.

Por este tempo entrava o cortejo. Os convidados eram conduzidos à sala da ceia, e corria a cena até o momento, em que se retirou Cristóvão depois de seu estranho pedido.

Saído o mancebo, a noiva querendo repousar um instante no camarim, pediu ao pai que a abençoasse. Apenas se viu livre do rumor e alegria da festa, a donzela derramou no pranto os sentimentos por tantas horas recalcados.

Durou pouco essa expansão. Logo enxugando as lágrimas, revestiu-se de uma expressão glacial.

— Enfim!...

Suas aias viram a mão gentil lançar pela janela um objeto diminuto, e apinharem-se os lábios como se libassem gotas de mel.

Entretanto a história da desconhecida, que se apresentara bruscamente, corria a casa, graças à indiscrição das aias. Em pouco não se falou em outra coisa, e o acontecimento, aliás natural, ainda que estranho, tomou logo o cunho supersticioso do tempo. Diziam que a desconhecida não entrara pela porta, mas saíra da parede, fendida para lhe dar passagem; outros, que era tão fria e gelada a mão, que arrepiava ao toque.

Assoalhando-se tais vozes, chegaram a Inesita que as ouviu das aias próximas. Inquirindo do motivo, veio ao conhecimento do caso estranho. As almas sucumbidas e já desertas de esperança, tanto se deleitam com as cenas de tristeza, como se afligem com o espetáculo da alegria.

Ergueu-se pois a desposada e foi ao camarim nupcial, impelida por vivos desejos de fugir aos folgares da festa, e de saturar-se ainda mais nas agonias dessa noite agourada, com a presença da desconhecida. A donzela quis entrar só na câmera.

Reviram-se as duas amigas sem grande comoção; ambas estas duas almas estavam flácidas de tanto sofrer. Dos lábios de Inesita escapou-se um leve rumorejo, como de um coração que se afoga no abismo; dentro do seio de Elvira soou o estalido da última fibra rota.

— Também tu, Elvira!...

Só então se lembrara a filha de D. Francisco do quinhão que tocara à amante de Cristóvão na desgraça comum. Para as naturezas privilegiadas a felicidade é pródiga; a dor egoísta.

— Vinha buscar o pai de meu filho; roubaste-o, Inês. Peço-te eu agora somente mãe para o mísero, pois esta, roubou-a ele, teu esposo!...

— Filho!... balbuciou a donzela espavorida.

Elvira, com a sublime impudência da agonia, abaixou ao regaço um olhar morto:

— Se o não amparardes, levá-lo-ei comigo. O ódio de minha mãe o matará antes de nascer.

Compreendeu Inesita que havia nesse abismo, a que fora precipitada, voragens ainda mais profundas. Correu para a infeliz amiga; cingiu-a nos braços e envolveu-a de ternura e consolo.

Abriu-se com este tépido calor o seio de Elvira, e verteu no coração da amiga as lágrimas e soluços ali condensados durante tão longos dias e curtidas noites. Tudo referiu, tudo e com a ingenuidade da inocência. A santidade desse martírio da virtude era tanta, que o anjo decaído nada velava, e o anjo exaltado não enrubescia.

De repente houve em Inesita um sobressalto. Sua alma recaíra na realidade esquecida. A dolorosa expressão, que a vendava, dissipou-se; sorriu, e desse sorriso derramou-se por toda sua pessoa uma aspersão de luz. Dir-se-ia que o céu já lhe flutuava em torno.

— Abençoada seja esta minha pena, pois trouxe ela vossa ventura, Elvira!

Elvira não compreendeu.

— Sereis esta mesma noite esposa de Cristóvão! disse Inesita.

— E vós? acudiu a donzela esvairada. Que sereis vós, Inês?

— Serei a que foi.

— Quereis sacrificar-vos por mim?

— Prometi-me a Estácio no túmulo, pois não pude ser dele em vida. Tenho já a morte dentro de mim; ela me advertiu neste momento. Esperai-me; breve tornarei com vosso esposo.

Antes que Elvira pudesse opor-se à resolução, a donzela saiu em busca de Ávila, a quem mandou aviso por um pajem. É já conhecido o que passou na sala até o momento da brusca desaparição de Estácio.

Cristóvão retido por Inesita, a olhava estupidamente; o sentimento da realidade lhe escapava:

— Era Estácio que ali estava! repetiu ele esvairado.

— Breve o tornarei a ver!... Não sabeis vós para onde foi ele deste passo? Sei-o eu; vai encontrar-me no céu.

— Ah! exclamou o mancebo, sacudindo a opressão. Ainda o amais?...

— Não se trata já de Estácio nem de mim, senhor, que não somos deste mundo, mas de vós e de Elvira.

— E por que não partiremos nós também convosco?

— Não podeis, não. Vosso filho já vos prendeu à terra.

— Meu filho!... Meu filho!... Que vozes são estas, senhora?...

— Vinde!

— Aonde?

— A vossa câmera nupcial. Em vez do cadáver, que vos esperava, achareis a esposa abençoada do céu que se perdeu para não perder-vos. Não compreendeis este sublime sacrifício?...

— Nada compreendo.

— Elvira se condenou à maldição, porque era o meio de se unir eternamente ao seu amado. Vinde, que ela vos dirá tudo.

Momentos depois Cristóvão estava aos pés de Elvira e dela ouvia a plena confissão do suicídio de sua castidade.