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As Minas de Prata/III/XXVII

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O fogo lavrava ainda na casa que fora do bom Vaz Caminha.

Sem desígnio, trazido por uma espécie de atração, voltara Estácio direito ao lugar do sinistro, então deserto. Perdida a esperança de salvar o advogado e aplacada a curiosidade selvagem da turba, cada um tratara de recolher.

O mancebo entrou pela portinha do quintal, como outrora, durante a infância, nas diurnas visitas que fazia a seu padrinho e mestre. No horto, próximo ao oitão, estava a cacimba, em cuja borda de tijolo o velho doutor, quando saía fora por tarde, costumava sentar-se.

Estas recordações da infância flutuavam entre a dor na alma do mancebo, como as ondulações da sombra no seio de uma treva espessa. Eram raios de mel, tênues e sutis, que mais contrastavam o amargor do presente.

Tempo esquecido esteve ali sentado à beira do poço, já recordando o passado, já contemplando com uma curiosidade incompreensível o jogo das chamas sobre as ruínas do edifício. Essa labareda, a crepitar alegremente, a espreguiçar-se em ondulações voluptuosas, o estava enamorando. Como que a flama lhe abria os braços sensuais; e desfazia-se já em carícias para recebê-lo. Ferviam ali sorrisos em brasa, beijos em combustão para o consumirem num só e rápido afago.

Ainda o mancebo ergueu-se para acudir ao aceno da labareda palpitante; mas o reteve uma lembrança. Desejava contemplar ainda uma vez a beleza material daquela que tanto amara em vida.

Com o movimento, que fizera para erguer-se, caiu um objeto, e produziu rumor. Há no meio das dores acerbas, curiosidades frívolas, sintomas de uma caducidade moral. Estácio foi presa de um impulso igual: ergueu o objeto, que examinou atenta e minuciosamente. O que era? Como ali se achava?

A pouco e pouco as reminiscências espedaçadas se foram reatando; lembrou-se vagamente da imagem encanecida do P. Molina e das palavras que ele proferira entregando-lhe o cofre. No começo a cena se desenhou como um quadro secular despregado dos muros de vetusto castelo; depois avivou-se ao pungir dos recentes golpes. Revistando o cofre, viu o mancebo uma pequena chave pendente; experimentou-a no fecho; deu a volta; abriu a tampa.

Um jorro fulgurante de límpidas centelhas esguichou de dentro, e deslumbrou a vista de Estácio. O cofre estava cheio de grandes diamantes; havia ali encerrada, naquele estreito vão de algumas polegadas, uma riqueza estupenda. Mais uma ironia amarga da fortuna, que o esbofeteava assim com a opulência, quando dela não carecia, havendo antes, nos dias da ambição, nas horas de esperança, abatido seu pundonor com a carranca da indigência!

Estácio já não pertencia à terra; suas núpcias eram do túmulo; o himeneu de sua alma com a de Inês devia celebrar-se no céu. Lá há as galas da bem-aventurança e as irradiações da luz divina; não se carecem das chispas e do brilho material. Ninguém mais lhe restava na terra a quem fazer dom de tamanha riqueza; todas as suas afeições tinham voado para o seio do Criador a esperá-lo; e uma, uma das mais queridas, estalara com violência.

Entretanto murmuravam os lábios do mancebo:

— Ímpia sorte!... Devias conhecer-me, pois desde a infância contigo luto!... Queres depravar-me o coração acendendo nele a cobiça!... Pudesse eu, que dispersara com um sopro todo este imenso tesouro por ti acumulado!...

Uma lembrança atravessou o espírito de Estácio. Ouvira outrora no pátio uma renhida controvérsia sobre a combustão do diamante, então simples conjetura dos sábios que só mais tarde foi verificada por experiências repetidas. O mancebo aproximou-se do edifício incendiado: a parede do oitão, de todo desmoronada, descobria o ladrilho do que fora gabinete de Vaz Caminha.

Encheu Estácio a mão de diamantes e atirou-os sobre aquele pavimento abrasado; umas após outras, lá foram as riquezas que encerrava o misterioso cofre. A todas devorou o incêndio em poucos instantes: o carbônio, que se cristalizara no seio da terra, volatilizou-se ao fogo e derramou-se na atmosfera.

Naquela noite, os viventes, que habitavam por aí acerca, respiraram um ar miasmático impregnado dessas exalações milionárias.

Contaram depois alguns mesteirais, saídos na madrugada para a tenda, que viram Estácio adormecido na relva do horto, com a cabeça sobre o parapeito do poço. Ao sair do sol, porém, lá não era já. Foi essa a última memória que houve na cidade do Salvador do infeliz mancebo. Muita vez pelo tempo adiante deu ele matéria para longas práticas às velhas comadres baianas; muita suposição se fez; certeza de seu fim desgraçado, porém, nunca houve.

O seguinte dia foi de tristeza para a cidade do Salvador. A fidalguia naqueles tempos não tinha somente o privilégio da riqueza e fausto, nem somente enfeudava as festas e gozos da vida. Arrogava-se também a tirania fúnebre do luto. Quando se finava alguma existência da nobreza, o nojo não ficava na família, nem mesmo na classe; a plebe devia participar dele, e sentir as penas e mágoas dos grandes.

Desde a alvorada que os sinos de todas as igrejas começaram a dobrar por finados e continuaram sem interrupção. Se alguma suave flor de alegria despontava nesse dia algures pela cidade, em casa de pobre, logo a finava o bafejo fúnebre que passava. O som vibrante do bronze traspassava o coração e nele vertia o pesar e o susto.

Nesta ocasião, porém, o luto da cidade do Salvador não é uma opressão da fidalguia; rebenta espontâneo d'alma do povo. Não há quem não pranteie com lágrimas sinceras a donzela infeliz, arrebatada na flor de sua idade e beleza. A esta lástima acrescem as suspeitas sinistras sobre o infausto passamento da noiva, e também o terror pela nova, ainda vaga, mas exagerada, das outras catástrofes dessa noite angustiada.

Durante o dia não se viam nas ruas senão grupos de gente merencória, de passo arrastado e vozes soturnas. Praticavam em tom submisso do caso desventurado; uns conjeturando sobre as causas do fato; outros discorrendo sobre a pompa do saimento. Depois se dispersavam cabisbaixos para se formarem além em outra roda. Entanto cruzavam em diversos sentidos oficiais mecânicos, atarefados com a armação do catafalco e essa, assim como da armação da casa de Cristóvão.

Caiu enfim a noite.

A rua, da Sé chamada, onde era a casa de Cristóvão, estava a não poder de gente. O popular curioso de assistir ao fúnebre saimento, rebentava de uma e outra banda. Vinham chegando as confrarias dos Defuntos, da Misericórdia, e outras com seus guiões na frente. Compareceu o Governador D. Diogo de Menezes, sua comitiva, e os mais oficiais de El-Rei.

Já o préstito se alinhava pela rua além.

Nesta ocasião o fluxo e refluxo da multidão aproximou duas pessoas que ali estavam imóveis para assistir ao triste espetáculo. Uma delas deve ser Zana, a feiticeira, envolta em seu longo tabardo vermelho, coberto de figuras cabalísticas. A outra mostra apenas o vulto de um cavalheiro, coberto de negros arneses e viseira caída. A espada lhe bate o flanco; esguia e longa adaga cruza a cinta; apoia o braço esquerdo sobre alto e pesado montante.

Quando a bruxa, impelida pela lufa-lufa, bateu contra o ombro do cavalheiro, este abaixou para ela um olhar lento e inerte; enxergando-a, porém, sentiu alguma emoção, que se revelou por ligeiro sobressalto. Seu guante cerrou com ímpeto o braço da mulher.

— Bruxa de Satanás!... rugiu uma voz cava. Estais satisfeita! Vindes ao repasto dos mortos, como vampiro que és!

A feiticeira estremeceu:

— Perdão, cavalheiro, se vos ofendi. Mas Deus me fulmine se foi por meu querer. Nem sequer entendo as vossas falas!

A voz, que estas palavras proferiu, era suave como uma dulia; mas sentia-se nela, como em um favo de mel, laivos da dor causada pelo guante.

Os dedos do desconhecido afrouxaram; seu tom, sempre amargo, se tornou mais natural:

— Já te não lembras do agouro no dia de Ano-Bom, na Praça de Palácio?

Zana retorquiu vagarosamente e depois de uma pausa:

— Mal me quereis, cavalheiro, porque a sina vossa trouxe-vos a tamanha desventura; e não pensais que possa haver maior?

— Impossível!

— Nunca amastes, cavalheiro, senão saberíeis qual seja a maior angústia do mundo. Sei-o eu, que amei e amo, e não acabarei enquanto primeiro me não acabar este amor. É ver-se desdenhada, e quem sabe?... curtir o tormento de ser possuído de outra o objeto de seu carinho, por quem se estremece! Esta sim, é angústia, que a de chorar morto o querido de nossa alma chama-se, a par com ela, a bem-aventurança!...

Sob a viseira estalou um soluço. A feiticeira unia-se ao flanco do cavalheiro, suspensa na ponta dos pés, para lhe alcançar o ouvido.

— A virgem que ali está finada, esta é feliz; já não sofre. Matou-a o remorso, ou o castigo?... Ninguém o sabe. Se ela vivesse, seria esposa de outro, que não o primeiro escolhido de seu coração; trairia as juras de seu amor. Pensais que o esposo seu d'alma desejasse, se aqui estivera agora vê-la ressuscitada?

— Não turbai, mulher, o repouso de quem já não é deste mundo. Morto sou; tem-me ainda à terra, mas por minguadas horas, um voto santo.

— Nada mais então vos prende ao mundo? perguntou a feiticeira.

Nesse momento saiu fora da casa o esquife; era coberto de damasco branco franjado de ouro; conduziam D. Diogo de Menezes e os principais da fidalguia baiana. Na porta estava um alto e suntuoso catafalco, guarnecido de veludo roxo e negro com franjas também douradas e galões de prata. Colocado o esquife sobre a cornija do pedestal, pôs-se o préstito em movimento. Os mordomos alinharam suas confrarias; e as carpideiras entoaram as estrepitosas lamentações.

Dirigiu-se o séquito à Igreja de São Bento, onde tinha sepultura a família do Senhor D. Cristóvão de Garcia de Ávila.

Dez horas eram dadas quando terminaram na igreja os ofícios fúnebres; o popular derramou-se pelas ruas adjacentes; a família voltou acompanhada dos parentes e amigos; só Cristóvão se demorou na igreja para dizer à sua esposa o extremo adeus. O lugar ficou escuro e ermo.

Um vulto se aproximou então da porta lateral do convento, e quedou-se aí à espera. Com pouco abriram de dentro, e outro vulto assomou. Este último apresentou ao primeiro objeto mínimo, e murmurou estas palavras:

— Restituo quanto vos pertence. Não era assim que eu esperava...

O outro estreitou-o com veemência ao peito:

— A dor me fez injusto ontem. Venho do túmulo pedir-vos perdão!

Por algum tempo sussurraram as palavras do colóquio estranho. Afinal as mãos se travaram uma derradeira vez; e o vulto, que saíra de dentro, sumiu-se longe na escuridão da noite. O que chegara, penetrou no templo; antes porém de entrar arrojou de si as armas que trazia.

Chegou à sacristia; estava ali um velho, leigo do convento, que despertou da modorra ao som dos passos nas lajes do corredor.

— Podeis recolher, bom velho. Amanhã virão para selar a catacumba; não consenti que levantem a lápida!...

No centro da igreja se achava o catafalco rodeado dos tocheiros. Um frade estava ajoelhado próximo, que ao rumor de passos se ergueu e sumiu na capela-mor. Hirto e lento subiu o desconhecido os degraus da essa; no último caiu de joelhos. A chave de ouro, que trazia cerrada na destra, rangiu; e as abas do esquife abriram-se em par.

Inês parecia adormecida. Nunca a formosa donzela ressumbrara meiga serenidade, como neste sono tumular. Era sua própria e mimosa estátua em vida; mas talhada em frio alabastro. O cavalheiro tomou-lhe a mão gelada:

— Nada já nos pode separar, minha Inês. Agora somos um do outro; juntos dormiremos no mesmo jazigo e juntos acordaremos no céu, entre os anjos, que te esperam, esposa minha, para coroar-te de rosas imaculadas.

Sentiu o cavalheiro que lhe travava da mão pendente outra mão débil. Voltou o rosto; a feiticeira estava de novo com ele, ajoelhada no degrau inferior, em atitude suplicante.

— Que me queres tu ainda?

— Trago-te a vida de tua amada.

O cavalheiro ficou transido e estático.

— Também eu te amei, porém tarde. Inês já possuía teu coração. Um dia quando a destinaram a outro, quis saber se ela era digna de ti, e achei-a qual eu fora. Jurou que a morte a arrebataria aos pés do altar para restituí-la ao seu escolhido. E eu tive forças de jurar-vos, também em minha alma, que a ressuscitaria para o vosso amor.

O capuz do manto escarlate desconcertou-se, deixando ver à luz dos círios um rosto formoso.

— Raquel! proferiu o cavalheiro.

— A vida de Inês aqui está! exclamou a judia mostrando um frasquinho de ouro.

— Dai-me!

— Dar-te-ei, Estácio, mas em troca me voltareis o preço.

— Quereis meu sangue?

— Nem uma gota dele. Reclamo este esquife...

— Raquel!

— Pertence-me, pois não sou amada.

Nos solenes momentos a alma não divaga, mas se incrusta nos vocábulos breves que lhe escapam. Estas frases lapidárias entram no espírito como inscrição buriladas. Proferindo a última palavra, não deu Raquel nem à voz, nem ao gesto, a mínima ênfase; mas Estácio reconheceu ao toque de seu coração a imutabilidade daquela resolução. Braços estringidos no peito e cabeça derrubada, permaneceu algum tempo imóvel. Afinal ergueu-se:

— Vivereis ambas, e acabe eu que de nenhuma sou digno!...

Atirou-se Raquel aos pés do cavalheiro, abraçando-lhe os joelhos.

— Não; não há de ser assim. Tomai; que ela respire e... adeus.

Estácio a cingiu ao peito quando já fugia, e pousaram seus lábios na fronte da bela judia.

— Vivei, Raquel, eu vos suplico, para doçura da minha felicidade.

— Sim, viverei, pois me prendestes à terra. Adeus, sede feliz.

Partira a judia. Estácio tímido agora ante a esperança e a decepção, vazou o líquido no lenço que pouco antes cobria o rosto da virgem; e trêmulo deu-lhe a respirar a droga sutil. Uns laivos róseos se derramaram pelas faces da donzela; arfou-lhe o seio.

Inês vivia.

O mancebo, arrancando-a ao esquife, foi com ela nos braços sentar-se ao estrado da capela. Instantes depois entreabriu Inês as pálpebras e seu primeiro olhar embebeu-se das vistas de Estácio. O sorriso dos anjos lhe orvalhou o semblante:

— Graças, meu Deus, por haverdes ouvido minha oração. Encontrei-o no céu, ao esposo de minha alma. Vossa infinita bondade nos uniu!... Falai-me, Estácio!...

— Deus nos uniu ainda na terra, onde estamos, Inês minha.

— Na terra... Mas eu morri.

— Não, pois estais em meus braços. Dormistes desde ontem.

— Então, exclamou a donzela com pavor, sou a desposada de...

Estácio a atalhou:

— A desposada de D. Cristóvão e filha de D. Francisco, a Senhora D. Inês de Aguilar, ali repousa naquele esquife e breve dormirá no jazigo dos seus. Tu és a minha esposa, a minha Inês, que Deus me envia do céu.

— É verdade, eu desci do céu, e para ser vossa. Vinde, que Deus nos abençoe.

Os dois amantes ajoelharam às abas do altar-mor para orar. De repente uma sombra resvalou; e um sacerdote assomou ante seus olhos surpresos. À débil luz dos círios distantes reconheceram no rosto macerado do monge as feições de D. Fernando de Ataíde.

— Deus me envia para abençoar a vossa união, meus filhos.

Tomando as mãos dos amantes, uniu-as sob a estola e proferiu as palavras do sacramento. Sentiram os esposos úmida a mão do monge e pensaram fossem gotas de água benta; eram lágrimas silenciosas a furto arredadas.

Na manhã seguinte a canoa de Esteves saía barra fora; iam nela uma dama embuçada e um cavalheiro desconhecido.

Nessa mesma hora velejava um navio mar em fora; e além, nas ribas alcantiladas, o vulto de um monge transmontava a serra. Levava o navio Raquel e seu pai, que abandonavam para sempre as terras do Brasil. O vulto do ermitão levava ao deserto a grande alma do P. Molina.