As Vítimas-Algozes/I/XIII

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O escravo tinha encontrado um amigo.

A escravidão já perfeitamente apurada com a prática dos vícios abjetos que lhe fazem legítimo cortejo, abraçava-se com o crime que por fim não lhe pode inspirar horror.

Simeão preferia o Barbudo a todos os seus consócios fregueses da ven­da: o Barbudo era o seu homem, o seu conselheiro, o íntimo das suas con­fidências.

O Barbudo tinha-o adivinhado.

As conversações no terreiro repetiram-se, e Simeão e o Barbudo, ligaram-se cada vez mais estreitamente.

Entretanto os dias iam passando, e o ataque de cabeça, que deixara si­nal em Domingos Caetano, não voltava.

Simeão começava a impacientar-se muito.

Tudo concorria para contrariar seus hábitos e suas esperanças: o velho paralítico assegurava sempre à família que se sentia melhor; Angélica e Florinda o atarefavam, contendo-o ao pé do mísero doente, e ele próprio tinha medo de que seu senhor morresse em horas de sua ausência da fa­zenda, pois que sempre calculava com a desordem geral da casa, e com a consternação cega e surda da família, para fazer-se herdeiro sem precisão de verba testamentária.

Além disso o cuidado exclusivo da esposa e do pai fazia que Angélica e Florinda, outrora sempre fáceis em dar algum dinheiro a Simeão, se es­quecessem dele, que por isso menos expansivo e regalador se mostrava na venda, e mais embaraços encontrava nas devassidões da sua vida noturna,

Estas contrariedades obumbravam ainda mais o ânimo do crioulo.

Nas conversações protervas com o Barbudo e em dez histórias de crimes bem-sucedidos e impunes que este lhe contara, Simeão se habituara a pensar que em caso de insuficiência ou de impossibilidade do emprego da astúcia, a força e a violência eram ainda recursos para se efetuar o roubo.

Semelhante pensamento ia entrando e envenenando pouco a pouco a sua alma, como o vírus entra e vai corrompendo o corpo do homem.

Simeão esperava sempre a morte de Domingos Caetano; mas não era como dantes o crioulo fanfarrão, e alegre que animava as reuniões da venda.

A alegria do escravo estava dependente da morte do senhor. O dia da maior dor para a família de Domingos Caetano devia ser de festa para o coração do crioulo ingrato.

Rude crente dos prejuízos e dos presságios que ainda hoje fazem estre­mecer a alguns que em sua ignorância e simplicidade os reputam sobrena­turais anúncios de morte na família, Simeão ávido observava se algum cão cavava no terreiro da fazenda, se de noite vinham corujas piar sobre o te­lhado da casa.

O velho, porém, teimava em viver; e, o que é mais, principiara na casa certa animação de trabalho que impressionou a Simeão.

Angélica mandara comprar muitas peças de panos diversos e finos e poucas eram as costureiras para o rico enxoval que se preparava.

O escravo preferia ver talhar-se uma mortalha.

Tomavam-se disposições, das quais transpirava a proximidade de uma festa na fazenda.

Tudo isto excitava a curiosidade de Simeão que em breve foi satisfeita.

A cozinheira adivinhou e falou.

– Não sabes? – disse a mucama de Florinda. – Sinhá-moça vai casar-se.

– Com quem? – perguntou o crioulo.

– Viste aquele moço que há três dias veio visitar meu senhor e que voltou ontem à tarde?

– Chama-se Hermano de Sales: é um...

– Cala a boca: é o noivo.

Simeão recuou dois passos: seus olhos lampejaram com o furor da raiva.

– Demônio!... – disse ele com os dentes cerrados.