Ballada do Enforcado/4
IV
No dia em que se executa um Réo, não se diz
Missa no Presídio. O Sacerdote tem o coração bastante
enfermo ; o rosto, lívido ; e, em seus olhos, vê-se escripto
o que ninguem deve de ler...
Por esse motivo, ficámos fechados até quasi meio-dia. Quando o sino bateu, os chaveiros vieram abrir os cubiculos, um por um, fazendo retinir as grandes e pesadas chaves. Antes de abrir, espiavam pelo buraco da fechadura... Então, cada qual sahiu do Inferno em que jazia sosinho, e todos descemos pesadamente as escadas de ferro...
Fóra das masmorras, no páteo, respirámos o bom e puro ar do Senhor. Não era, todavia, como costumavamos fazer nos demais dias... O rosto deste, estava branco de medo ; o daquelle, mostrava-se sombrío... E eu nunca vi homens tristes contemplar tão intensamente a luz do Dia!...
Nunca, nunca vi homens tristes contemplar com tão intenso olhar essa Tenda Azul, que nós, os Prisioneiros, chamamos Céo, e cada nuvem, que no Alto passava, em venturosa liberdade.
Alguns, dentre nós, caminhavam de cabeça baixa... Esses sabiam que, si cada um soffresse a justa pena que merece, elles deviam de morrer... O Outro assassinára uma cousa viva, ao passo que elles haviam assassinado uma cousa morta...
Aquelle que pecca pela segunda vez, desperta uma Alma morta para a Dôr, e tira-a do seu sudario manchado, fazendo-a, mas em vão ! derramar novamente grossas gottas de sangue !
Como somnambulos, caminhando inconscientemente, authomaticamente, passeiavamos nas pontas dos pés, em volta do páteo acimentado. Caminhavamos silenciosos, em grande roda, sem ninguém pronunciar a mais insignificante palavra.
Rodeávamos o páteo, em silencio. Em cada cerebro vasio, turbilhonava a Memória das Cousas Horrendas, como um vento forte redomoinhando no ar... O Pavor surgia em nossa frente, e sentiamos o Terror colleando por traz de nós.
Os carcereiros pavoneavam-se, aqui e ali, guardando o seu rebanho de Feras. Garbosos, ostentavam o fardamento novo dos domingos. Mas, pela cal viva grudada a sola das suas botas, bem sabiamos a que ceremonia haviam assistido.
No logar em que a cova fôra aberta, já nada mais se via. Denunciava-a, apenas, um monticulo de terra e areia, junto ao horrendo muro da Prisão, e um pouco de cal viva, afim de que o Réprobo tivesse um sudario...
Aquelle Desventurado tem uma mortalha, como bem pouca gente póde desejar. Lá em baixo, bem no fundo do páteo de um Presídio, elle jaz, nú, completamente nú, para sua maior vergonha, envolto num lençol de chammas.
Pelo tempo adiante, a cal devorar-lhe-á a carne e os ossos. Durante a noite, roerá os ossos rijos; e, de dia, a carne tenra. A cal viva come successivamente carne e ossos. Mas, tambem, devora sem cessar o Coração.
Durante tres longos annos, não se semeará, nem se plantará, naquelle sitio. Durante tres longos annos, o logar maldito conservar-se-á estéril e limpo, fitando o Céo, pasmo, com um olhar sem reproche.
Os homens cuidam que o Coração do assassino corrompe qualquer semente, que sobre elle se plantar. Mas, não é exacto. A benemerita Terra de Deus é mais generosa do que se pensa. Ali, naquelle terreno, a rosa vermelha, mais vermelha ainda desabrocharia, e a rosa branca, mais branca, mais immaculada.
De sua bocca nasceria, talvez, uma rosa encarnada, rubra, purpurea. De seu Coração, outra brotaria, branca, alvissima de neve. Quem poderá dizer de que maneira extranha Nosso Senhor Jesus-Christo manifesta Sua Santa Vontade, depois que se viu o cajado secco de humilde Peregrino florescer á vista dum grande Papa ? !...
Mas, nem a rosa alvissima de leite, nem a rosa escarlata, pódem florir, respirando o ar duma masmorra. Ali, só póde haver seixos e pedras... Os Homens da Lei sabem que, muitas vezes, as flores têm acalmado o Desespero de um homem de coração simples...
Por isso, nunca, jamais, nem a rosa côr de vinho, nem a rosa côr de leite, cahirão despetaladas sobre esse pedaço de terra e areia, junto ao muro do Presídio.
para dizer ás pessoas, que passarem pelo páteo, que o Filho de Deus morreu por todos nós.
Não obstante—mesmo morto e enterrado—elle continuar ainda, como outrora, cercado pelos pavorosos muros da Prisão, e que ninguem venha chorar, ou rezar, por quem jaz em terreno tão ímpio :
o Miseravel repousa em paz, ou em breve repousará. Nada ha ali que possa amedrontal-o. O Terror não passeia de dia, por aquelle sitio, pois a Terra, sem claridade, em que elle descansa, não tem Sól, nem Lua.
Elles o enforcaram, como se enforca um animal ! Nem siquer mandaram dobrar o sino, lugubremente, de modo a dar algum socego á sua Alma aterrada !... Levaram-no precipitadamente, e trataram logo de occultal-o dentro dum buraco.
Despiram-lhe toda a roupa, e o abandonaram ás moscas ! Caçoaram da sua garganta entumecida e arroxeada, e dos seus olhos puros e fixos. Com grandes gargalhadas o envolveram no lençol com que costumam amortalhar os condemnados.
O Capellão não se ajoelhou á beira desse tumulo infamado. Tambem não o assignalaram com a Bemdita Cruz que Jesus-Christo deu aos Peccadores, justamente porque o Morto era um daquelles, para cuja salvação Nosso Senhor baixou á Terra.
Tudo está perfeitamente bem. Elle transpoz as fronteiras conhecidas da Vida. Por elle, lagrymas de extranhos encherão a Urna da Piedade, ha muito quebrada... Ah ! porque serão os Réprobos que hão de choral-o, e os Réprobos nunca deixam de chorar !...
Esta obra entrou em domínio público no contexto da Lei 5988/1973, Art. 42, que esteve vigente até junho de 1998.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.