Castelo Perigoso/XLI

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Ca os bravos judeus, deste doce Senhor, toda a noite fizeram sua vontade, e em outro dia pela manhã o levaram ligado a Caifás e a Pilatos e o acusaram de muitas falsidades e bradavam altas vozes que fosse crucificado. Mas bem entendeu Pilatos que isto era inveja. E por isso lhes disse: "Eu não acho em este homem alguma causa de morte. Eu o castigarei e deixá-lo-ei".

Hoo Cordeiro sem tacha, em que não havia que purgar, mas purgáveis os outros, como tal emenda a vós foi cruel! A hora de prima o fez Pilatos desvestir e ligar a uma coluna e ferir e romper aquela tenra, virgem carne com correias atadas, tanto que sobre ele não havia lugar inteiro, mas era todo coberto de sangüentas chagas.

Desde aí, vestiram-no de púrpura, coroaram-no de espinhos, de que as pontas lhe chegavam até a testa[1], fazendo dele escárnio. E assim o levou Pilatos mostrar aos judeus e lhe disse: "Vedes o homem", mostrando que aquilo bastava. Mas não foi assim, que todos alto diziam: "Se tu o deixas assim ir, não és amigo de César, ca ele se faz rei e moveu o povo desde Galiléia a até aqui".

Quando Pilatos ouviu isto, enviou-o a Herodes, o qual bem escarnecido foi tornado a Pilatos. E então disse Pilatos: "Vós, judeus, nem Herodes nem eu não achamos em este homem causa de morte. Se vos prouver eu vo-lo darei livre". E eles responderam: "Este crucifica e deixa Barrabás livre". Pilatos lhe deu seu Senhor e eles foram mais ledos com ele que com um mal feitor.

À hora de terça se assentou Pilatos em juízo e disse ainda aos judeus: "Eu não vejo causa de morte em este homem. Por que o quereis crucificar?" E eles bradarom altas vozes: "Nós lei havemos e, segundo lei, deve morrer". Então houve Pilatos por melhor prazer a eles que fazer justiça e deu-lho que o crucificassem. Então foi filhado dos cavaleiros e escarnecido e abofetado e assim atormentado carregarom da cruz as suas santas espáduas e levaram-no com dous ladrões por lhe fazer mais desonra a Monte Calvar.

Na hora da nona foi aquele manso Cordeiro desvestido daqueles vestidos, que os ministros do diabo entre si partiram. Desde aí, estenderam-no de longo e de ancho, assim como uma pele, na cruz todo nu ante seus inimigos, que prazer haviam, e em presença dos amigos, a que muito pesava, e passaram de grossos cravos seus gloriosos pés e mãaos, e assim o levantaram alto, entre os ladrões, por ser melhor visto.

Então a santa taverna do seu precioso corpo foi aberta a quatro tornos, que abundosamente lançavam sangue para embebedar os devotos corações de amor.

Haa, doce Senhor Jesus, bem fostes embebedado em amor quando todas vilanias e injúrias, sujidades, tormentos que vos pudessem fazer, sofrestes tanto que se cumpriu a profecia de Isaías, que disse: "Desde a sola do pé até a cabeça, não havia em ele coisa sã nem era em ele formosura. E nunca abriu sua boca senão por rogar por aqueles que o atormentavam".

Notas[editar]

  1. "O testo", no original.