Castelo Perigoso/XXXIV
Em a forteleza deste muro acha homem quatro engenhos para atirar contra os inimigos que a segunda cava de humildade querem encher por impaciência, que vem de soberba. E estes engenhos são quatro pensamentos, que homem deve a haver no coração.
O primeiro é pensar nas penas do inferno, que são tão ásperas, que quanto homem pode sofrer em este mundo não é senão untura a respeito daquelas. Por isto diz Santo Agostinho:
"Senhor Deus, aqui me queima e me corta, assim que perduravelmente me não condenes. Boa coisa é sofrer a vara do castigo por escapar à lança que dá perdurável morte".
Esta é a do inferno que não há fim. Grande sinal de amor mostra Deus àqueles que envia adversidades temporais. Ca ele diz: "Eu castigo os que amo". O boi que homem tem para matar, por o fazer gordo, dá-lhe a comer tanto como ele quer; e o que quer guardar para tabalho dá-lhe a comer por medida.
Assim faz Deus aos que ama. A quem ele guarda a alegria do paraíso, dá em este mundo trabalho e pobreza e tribulação em abastança por os ter em humildade e não se perderem por soberba. Mas aqueles que, por seus pecados, são ordenados a condenação, dá em este mundo suas vontades e seu paraíso.
A segunda coisa que muito conforta contra as adversidades é pensar no galardão do paraíso, assim como diz são Gregório: "A esperança do grande galardão aliva o trabalho da tribulação.
A terceira coisa é pensar na paiaixão de Jesus Cristo e no que por nós sofreu, ca não é coisa que tanto adoce as penas e tribulações temporais . Isto nos é bem mostrado na Bíblia pela água que era amargosa, de que os filhos de Israel não podiam beber, e Deus mostrou a Moisés um pau e disse-lhe que o metesse na água e logo tornaria doce.
As águas amargosas são as tribulações deste mundo, e o pau que a fez doce é a cruz que Jesus Cristo pendeu por nós. Ca quem bem pensa em a dor que ele sofreu por nós na cruz, não há grande jejum nem vigília nem longo serviço nem dura obediência nem outras injúrias, trabalhos nem adversidades que não sejam doces e ligeiros a sofrer.
A quarta coisa é pensar que os bens que as tribulações fazem são mezinhas da alma e guarecem as enfermidades do pecado. E diz a Escritura: "Grande enfermidade faz o homem temperado que, por pecado, se embebeda amiúde". E são Bernardo diz: "Não te seja grave coisa nem dura o que sofres no corpo à de fora, quando tu por aí és guarido da enfermidade do pecado à de dentro". Desde aí, tribulação ganha a coroa da glória.
E são Tiago diz: "Bem-aventurado é quem sofre e endura tentações; porque, quando for bem provado, receberá coroa de vida". Desde aí, as tribulações purgam a alma, assim como a fornalha o ouro, e como a jeira[1], o grão, e como a lima, o ferro, segundo diz são Gregório.
Quem bem pensa nas quatro coisas já ditas, que são quatro engenhos grandes para quebrantar os inimigos, ele deve filhar em paciência e sofrer todas adversidades que lhe podem vir e dar graças a Deus e dizer: "Senhor, ainda eu tanto não sofri como tenho merecido, graças e louvores sejam a ti".
E deve-se homem armar ante do campo, pensando nas coisas suso-ditas, e ordenar seu coração em paciência, antes que as tribulações venham, que homem não seja filhado de suspeita. E deve bem firmar seu coração a sofrer. E se acontece que homem seja torvado de alguma coisa, deve-se bem guardar que, por sinal nem palavra, não mostre impaciência, que homem possa dizer com Davi: "Eu fui torvado e não falei".
E quem assim se mantiver com a ajuda de Deus, a segunda cava do castelo, que é humildade, guardará bem pelo muro de paciência. Bem é paciência significada por muro, que assim como um castelo sem muro é fraco contra os inimigos, assim vale pouco humildade nem outra virtude sem paciência. Prudêncio diz: "A virtude é nenhuma que com paciência não é fechada".
Notas
[editar]- ↑ No original, "jueira".