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Contos Tradicionaes do Povo Portuguez/A boa andança d'este mundo

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139. A BOA ANDANÇA D'ESTE MUNDO

Hum cavaleyro era muy namorado d'huma dona muy filha d'algo, casada. E a dona era de boa vida e non curava nada do cavalleyro como que a elle demandava muy aficadamente. E aconteceu que morreu o marido da dona. E o cavaleyro começou de a demandar mais aficadamente. E ella mandou-o chamar e disse-lhe:

— Vós sabedes que non sodes igual a mym; pero quero vos tomar por marido se vos iguardes a mym al de menos em riquezas, e per esto me escusarey de meu linhagem.

E o cavaleyro pidyu a elrey e aos outros senhores e trouve aa dona muyto ouro e muyta prata e muytas doas. E ella por se escusar do seu casamento disse-lhe, que todo aquello era pouco, se mais non trouvesse. E entom o cavaleyro teve o caminho a hum mercador que levava muy grande aver e matou-o e soterrou-o fóra da carreyra e tomou todo o aver que levava e trouve-o aa dona. E ella entendeu que aquella riqueza era de maao gaanho, e disse ao cavaleyro que se lhe non dissesse d'onde ouvera aquelle aver que non casaria com elle. E o cavaleyro descobriu-lhe todo o que fezera. E ella lhe disse que fosse ao loguar hu jazia o mercador soterrado e que estevesse aly des o seraão ataa o galo cantante e que lhe non encubrisse todo o que lhe acontecesse, e se esto non fezesse que o non tomaria por marido. E elle fez assy como lhe a dona mandou. E viu sayr da cova o mercador e ficou os giolhos em terra e disse tres vezes:

«Senhor Jesus Christo, que és justo juiz, e que vees todalas cousas, posto que sejam feitas escondidamente; dá a mym vingança d'este cavaleyro que me matou e tomou-me todalas cousas porque viviamos eu e minha molher e meus filhos.»

E ouvyo huma voz que lhe disse:

«Eu te digo e prometto em verdade, que se elle nom fezer peendença em triinta annos, que eu te darey d'elle tal vingança que será a todos exemplo.»

E tanto que esto foy dito tornou-se o morto pera sua cova. E o cavaleyro muy espantado e tornou-se pera a dona e contou-lhe todo o que vira e ouvyra. E ella recebeo-o por marido e ouve dele filhos e filhas. E ella lhe dizia muyto a meude cada dia, que se lembrasse do espaço que lhe fôra dado pera fazer peendença. E este cavaleyro fez em hum seu monte humas casas muy nobres e muy fortes. E estando elle hum dia em aquelle loguar comendo com sua molher e com seus filhos, e com seus netos em grande solaz com a boa andança d'este mundo, veo hum jograr e o cavaleyro feze-o asseentar a comer. E emtanto elle comya, os sergentes destemperarom o estormento do jograr e huntarom-lhe as cordas com frussura. E acabado o jantar tomou o jograr o seu estormento pera tanger e nunca pode temperar. E o cavaleyro e os que estavam com elle começarom escarnecer do jograr e lançaram-no fóra dos paaços com vergonça. E logo veeo hum vento grande como tempestade e soverteo as casas e o cavaleyro com todolos que hy eram. E foy feito todo hum grande lago. E parou mentes o jograr tras sy e vyo em cima do lago andar humas luvas e hum sombreyro nadando, que lhe ficarom em na casa do cavaleyro quando o lançarom fóra.

(Ibid., fl. 89, 90. (Ms. 274 da Bib. de Alcobaça, hoje na Bibl. nacional.) Ainda subsiste na tradição oral. Vid. Contos populares portuguezes, n.º 74.)




Notas

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139. — A boa andança d'este mundo. — Foi este o primeiro conto que deparámos ao folhear o Orto do Esposo, antes de termos prompta para a imprensa a nossa collecção. Encontrámos uma versão oral com algumas modificações: «O amante para obter o sim da viuva, que exige que elle traga muito dinheiro, em vez de matar o mercador faz um pacto com o diabo, que lhe apparece no caminho sob esta fórma conduzindo muitas riquezas. O pacto consiste em que lhe ha-de dar a primeira pessoa que entrar em casa quando vierem do casamento. Assim se combinou. Ao sahirem da egreja já casados todos montaram a cavallo, e o noivo montou tambem um muito lindo que um criado lhe trouxe. O cavallo rompeu logo á desfilada adiante de todos, chegou a casa, entrou pela porta dentro, e n'isto ouviu-se uma voz, que disse: — Ah damnado, que te filei! A casa foi pelos ares com tudo que tinha dentro, e quando o acompanhamento do noivado chegou ao sitio só achou um lago, que ainda cheirava a enxofre.» Ha uma preciosa versão oral nos Contos populares portuguezes, n.º LXXIV.