Contos Tradicionaes do Povo Portuguez/A prova das laranjas

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158. A PROVA DAS LARANJAS

Um tabalião foi de publico e judicial em um logar de Senhorio, e chegando a edade que não podia servir o officio, pediu ao senhor da terra, que lhe fizesse mercê d'elle para um filho, que tinha tres já homens, e que cada um d'elles era sufficiente para o servir. E o senhor, por lhe fazer mercê, disse que lhe aprazia, porém, que queria vêr os mancebos um por um, para vêr qual seria melhor empregado, e que assi o daria.

O velho folgou d'isso, e mandou primeiro o mais velho, que apresentando-se ante o senhor, lhe disse que elle era o filho do tabalião; que sua senhoria mandara vir ante si para lhe fazer mercê do officio de seu pae, se lhe parecesse, para o servir n'elle. A este tempo o Senhor tinha na sua sala uma bacia grande, cheia de agua, e estavam n'ella laranjas, a saber, quatro inteiras e sete partidas pelo meio, com o agro para baixo, e o pé ou o olho para cima, que ao parecer de quem não no attentara bem pareciam todas inteiras. E tanto que o mancebo deu o recado, lhe respondeu o Senhor que logo o averia, quasi fingido esperava por outra pessoa, e como que não fosse aquillo do caso proprio, lhe disse:

— Entrementes, vêde que laranjas estão ali fóra n'aquella bacia.

O mancebo olhou, e vendo as quatorze metades, que cuidou que eram inteiras, e as quatro inteiras tudo, em lançando-lhe os olhos sómente, disse:

— Senhor, são duzia e meia de laranjas. Que, na verdade, como estavam sobre a agua assi o pareciam; e o Senhor disse:

— Dizei a vosso pae, que mande cá outro filho (o qual veiu).

E aconteceu-lhe da mesma maneira que ao primeiro, que tambem disse que as laranjas eram dezoito, como o pareciam. E o Senhor mandou vir o terceiro, o qual vinha desgostoso, porque já sabia a pergunta, e não sabia que responder. E todavia chegando, o Senhor lhe mandou que visse as laranjas que estavam n'aquella bacia, como dissera aos outros; e elle saindo fóra, chamou dois homens da casa, que andavam passeando na sala, e disse-lhes:

— Senhores, o Duque manda saber as laranjas que estam n'esta bacia; sêde presentes por que sejaes testemunhas do que achar.

E assi, tirou as laranjas fôra, e viu elle e elles que eram as quatorze metades e as quatro inteiras; e metteu a mão na agua e viu que não havia lá outra cousa, e assi fez que o vissem aquelles dois homens que alli estavam. E visto isto, tirou papel e escrivaninha que levava comsigo e fez auto do que alli se achou, e nomeou n'elle os dois homens que foram testemunhas e o assignaram, e com isto tornou ao senhor, que visto lhe pareceu bem a diligencia que fizera, e disse-lhe:

— Vós o fizestes como official, e não como os outros, que sem vêr o que era disseram o que lhes pareceu.

E logo mandou que mandasse fazer a carta do officio, que lhe fazia mercê d'elle, porque escreveu o que viu e palpou, que assi é necessario fazer-se para dar fé verdadeira.

(Trancoso, Contos e Historias, Parte I, n.º XIV.)




Notas[editar]

158. A prova das laranjas. — Ha uma situação analoga no Conde de Lucanor, n.º XIX; é um herdeiro do throno o escolhido.