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Contos Tradicionaes do Povo Portuguez/Manoel Feijão

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94. MANOEL FEIJÃO

Dois casados viviam muito tristes por serem já velhos e não terem filhos. Vae a mulher disse uma vez:

— A cousa que eu mais queria n'este mundo era ter um filho, ainda que elle fosse do tamanho de um feijão.

Passados tempos, quando menos o esperavam a velha teve um filho, tão pequerruchinho tão pequerruchinho, que era mesmo do tamanho de um feijão. Criou-se o menino, e puzeram-lhe o nome de Manoel Feijão; a mãe nunca tirava o sentido d'elle, e ainda assim muitas vezes o perdia. De uma vez foi botar umas gavellas ao boi, e entre ellas tinha-se perdido Manoel Feijão e o boi enguliu-o. A mãe muito apoquentada começou a gritar por toda a parte:

— Manoel Feijão! Manoel Feijão!

Elle respondia dentro da barriga do boi:

— Crós, crós!

— Manoel Feijão, onde estás?

— Crós, crós! na barriga do boi.

A mãe pôz-se a aparar o que o boi fazia, e assim tornou a achar Manoel Feijão todo sujinho; lavou-o muito bem lavado, mas o pequeno era muito traquina, não tinha medo dos bois, e até os queria levar para o campo. Mettia-se-lhe n'uma venta, e assim os guiava para pastar e para voltar para casa, e até para levar no carro o jantar ao pae. De uma vez teve uma necessidade, e abaixou-se debaixo de uns feitos; ora andava por ali uma cabra a pastar, e indo comer os olhinhos do feito, enguliu Manoel Feijão. A mãe ficou d'esta vez mais afflicta porque o pequeno não apparecia; a cabra com as dóres de barriga, corria por combros e vallados, mas sempre vinha dar á horta do pobre lavrador; por fim cansado de escorraçar a cabra, e temendo que fosse coisa ruim, o pae de Manoel Feijão deu uma estourada na cabra, e matou-a, e atirou com ella para o meio da estrada. Veiu de noite um lobo e comeu as tripas da cabra, e lá se foi Manoel Feijão aos tombos dentro da barriga do lobo. Começou a dar-lhe voltas nas tripas, e o lobo com as dôres subiu-se por um pinheiro acima: N'isto vem uns ladrões carregados com uns saccos de dinheiro, em cima de um macho; Manoel Feijão faz com que o lobo se atire lá de cima, arrebentou no meio do chão, e os ladrões fugiram espantados. Manoel Feijão assim que apanhou o lobo com as tripas de fóra, sahiu lá de dentro, e subiu para o macho, metteu-se dentro de uma orelha e começou a beliscal-o. O macho botou a fugir, a fugir, e elle guiou-o para casa do pae, e chegou á porta ainda de noite, a fazer muito estrupido. Perguntaram de dentro:

— Quem é que está ahi?

— É Manoel Feijão. Crós! Crós!

A mãe conheceu-o, veiu abrir á pressa; abraçou-o, lavou-o, e o pae foi descarregar o macho e guardar os saccos de dinheiro, e foram todos muito felizes.

(Porto e Açores.)




Notas

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94. Manoel Feijão. — É o celebre conto do Petit-Poucet, de Perrault; Emm. Cosquin colligiu-o da tradição oral outra vez nos seus Contes populaires lorrains; Maspons y Labros, tral-o nos seus Rondelaires, com o titulo En père Patufet. Nos Contes populaires de la Grande Bretagne, trad. de Brueyre, vem na fórma de um poema Tom Thumb, e uma versão oral colligida por Campbell. Mr. Gaston Paris publicou uma outra versão popular no começo da sua monographia intitulada Petit Poucet, em que procura provar que este conto deriva do mytho da Grande Ursa. (O auctor brindou-nos com um exemplar d'este seu opusculo.) Hyacinthe Husson, na Chaine traditionelle, p. 28, discute o sentido mythico, e apresenta a indicação de uma versão russa (p. 34). Nos Contos de Grimm é o Tom Puce, trad. de Baudry, Contes Choisis, p. 145. Gubernatis, na Mythologia zoologica, t. II, p. 159 e 160, cita o conto piemontez de Piccolino, e o conto russo de Malcik-s palcik (dedo mendinho). Nos Contos populares portuguezes, n.º XXXIII, ha uma versão de Bragança intitulada O grão de milho. Ha outra versão italiana, de Pittré: Uma variante toscana della novella del Petit Poucet.