D. Mônica/III
D. Mônica soube da cláusula de testamento com viva demonstração de desagrado. A disposição pareceu-lhe zombeteira e cruel a um tempo. Não era melhor, se o sobrinho queria favorecer os seus dois parentes, repartir com eles os trezentos contos? Esta foi a primeira reflexão. A segunda foi de agradecimento, porquanto a recusa da parte de Gaspar vinha constituí-la herdeira de toda a riqueza, e a cláusula testamentária redundava toda em proveito dela. Não sei se isto é interesse e egoísmo, sei que foi a reflexão de D. Mônica. Não foi porém a última; foi apenas a segunda, a que ainda sucedeu terceira e quarta. D. Mônica refletiu que havia no testamento uma lacuna, e era o caso em que, disposto Gaspar a desposá-la, não estivesse ela disposta a aceitar-lhe a mão. A quem pertenceria nesse caso a herança? Parece que ao rapaz, visto que não casaria por motivo independente de sua vontade. Enfim, D. Mônica perguntou a si própria, se o casamento, em tal idade, era coisa tão fora de propósito que a obrigasse a recuar. A resposta foi negativa, por duas razões: a primeira é que o sobrinho Matias não disporia em testamento um absurdo, uma coisa que lhe ficasse mal a ela. Sempre o conhecera respeitoso e seu amigo; a segunda é que ela mesma sentia em si alguns restos das graças de outro tempo.
D. Mônica relanceou os olhos para o espelho, compôs as duas tranças do cabelo, presas sobre a nuca, a fim de lhes dar um ar menos sustoso, estudou-se com atenção, e concluiu que, se não era moça, não era de todo rejeitável. Uma idéia desta é mais difícil de nascer que de morrer. Uma vez nascida no espírito de D. Mônica, entranhou-se como uma verruma. Vinte e quatro horas depois era resolução assentada; mas, como a consciência busca muita vez iludir-se a si própria, D. Mônica lançava a resolução à conta da afeição que tinha ao rapaz.
— Que razão tenho eu para retardar a herança que o tio lhe deixou? dizia ela dentro de si. Aceitando o casamento, evito chicanas e perda de tempo. Demais é sempre digna de respeito a última vontade de um morto.
Gaspar foi ter com a tia-avó, alguns dias depois de voltar à Secretaria. Ia resolvido a dizer-lhe francamente a razão que tinha para não aceitar a condição imposta pelo tio, razão que o leitor sabe ser o amor de Lucinda, além do horror que inspirava a idéia de obedecer naquele ponto ao tio.
D. Mônica vestira-se nesse dia com singular apuro. Tinha um vestido de gorgorão preto; sério na cor, mas risonho na forma, que era um complicado de folhos e babados. Os cabelos dobravam-se em bandós e enquadravam-lhe o rosto, cuja expressão não era severa nem desconsolada. D. Mônica deixava-se estar na poltrona, quando lhe anunciaram o sobrinho. A poltrona era larga, pouco mais larga que a tia do capitão, que tinha as formas amplas e refeitas.
— Bem-vindo seja o senhor Gaspar! exclamou ela logo que o viu assomar à porta. Cuidei que nunca mais queria ver a sua única parenta.
— Que idéia! respondeu o moço. A senhora sabe não podia haver tal esquecimento da minha parte.
Disse, e, aproximando-se dela, beijou-lhe respeitosamente a mão. D. Mônica deu-lha com uma graça estudada, mas que lhe não ficou mal de todo.
— Senta-te aqui, disse ela apontando para uma cadeira que lhe ficava ao lado.
Gaspar obedeceu. Apenas sentado, reconheceu que era mais fácil planear que executar. Calou-se durante algum tempo, sem saber por onde começasse. D. Mônica veio em seu auxílio.
— Como vai o inventário do nosso pobre Matias? perguntou ela.
— Vai andando, respondeu Gaspar escondendo um charuto que casualmente tiram da algibeira.
— Fuma, fuma, disse D. Mônica sorrindo.
Gaspar agradeceu e acendeu um fósforo continuando a resposta.
— O inventário não levará muito tempo; toda a questão será o negócio da herança...
— Da herança! Por quê? perguntou D. Mônica. Há algum herdeiro que reclame?
— Não há nenhum. A senhora sabe que meu tio nomeou-me seu herdeiro universal, com a condição...
— Sim... interrompeu D. Mônica.
— Peço-lhe que acredite que eu nunca ousaria exigir da senhora um sacrifício...
— Eras capaz de sacrificar a herança? perguntou D. Mônica olhando para ele admirada.
— Era.
D. Mônica refletiu alguns instantes.
— Compreendo os teus sentimentos, e admiro o teu desinteresse. Espero contudo que me farás a justiça de crer que eu não consentiria nunca em deserdar-te...
Desta vez foi Gaspar que olhou admirado para D. Mônica.
— A vontade do capitão era beneficiar-nos a ambos, continuou D. Mônica. Pareceu-lhe que o casamento correspondia às suas intenções. Não refletiu, de certo, na disparidade que há entre mim e ti; não se lembrou de que podia expor-nos um e outro aos comentários do mundo.
— Justamente, respondeu Gaspar.
— Mas o capitão morreu e não pode reparar o mal. Pela minha parte, doer-me-ia se contribuísse para que perdesses a herança... Que razão alegaria eu para fazê-lo? A tal ou qual distância entre as nossas idades; não tenho, porém, nenhum direito a demorar-me nessa consideração.
— Mas...
— Um casamento entre nós será uma formalidade necessária para receber a herança. Não tenho direito de recusar a formalidade como não teria de recusar a minha assinatura se esta fosse precisa.
— Oh! minha tia! exclamou Gaspar, o seu coração é bom, mas posso eu abusar...
— Não há abusar...
— Nunca!
— Nunca e sempre... São duas palavras que pedem reflexão, interrompeu D. Mônica levantando a sua pachorra. Até outro dia! Não sou tão má como poderias supor... Adeus!
— Mas...
D. Mônica estendeu-lhe a mão sorrindo, e sorrindo com tanta arte, que só um dos dentes lhe apareceu. Gaspar beijou-lhe a mão; a boa velha encaminhou-se para uma das portas que davam para o interior. Gaspar ficou pasmado na sala. Dois minutos depois transpunha a porta que dava para o corredor e descia as escadas.
— Esta agora é melhor! pensava ele. De maneira que a velha sacrifica-se para me dar gosto?
Vinte minutos depois encontrou Veloso.
— Sabes o que me acontece?
— Não.
— Acho disposição em tia Mônica para casar comigo.
Veloso encostou-se a um portal para não cair. Quando pôde recobrar a fala:
— Impossível! disse ele.
— Parece impossível, mas é a pura verdade.
— De maneira que tu...
— Vou mandá-la ao diabo.
Tais eram efetivamente as intenções de Gaspar. Durante oito dias não voltou à casa de D. Mônica, não tanto porque as disposições da velha o irritavam, mas porque andava tomado de terror. A cada passo parecia-lhe ver um padre, um altar, a tia e o casamento celebrado sem remissão nem agravo.