Da França ao Japão/IX

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CAPITULO IX

 
Progresso do Christianismo no Japão.— As discussôes theologicas entre os bonzos e os missionarios. — Penas e trabalhos por que passou o Apostolo das Indias.— O bonzo Foucarandono.


Ahistoria da Igreja Catholica do Japão, é cheia de feitos heroicos e de numerosos exemplos que muito honrão o caracter dos filhos desse paiz.

Os miraculosos progressos operados, pela palavra de S. Francisco Xavier, só se encontrão comparaveis nos fastos da Igreja primitiva.

E sem desconhecermos o interesse que tomavão pela propaganda da Fé no Japão, os mercadores Portuguezes, sem que fossem levados por legitimo fervor religioso mas por amor a ingrata e caprichosa deosa da fortuna; comtudo, não se póde attribuir o fervor dos primeiros missionarios á sordido interesse, que apagasse o brilho de seus feitos em favor condição primaria para civilisação de um povo.

A coragem e a constância com que os convertidos supportarão os maiores tormentos e ignominias, fallão ainda bem alto em favor d'este povo que merece, pelas qualidades que o ennobrecem, a admiração e o respeito de todas as Nações.

S. Francisco Xavier chegou ao Japão em 15 de Agosto de 1549, levando em sua companhia, um joven Japonez, que alguns annos antes partira do Japão em companhia de alguns mercadores Portuguezes, e que depois de se instruir sobre os mysterios da Religião Catholica e de receber, nas Indias, as ordens religiosas, voltava a sua patria disposto a auxiliar ao padre Xavier na missão.

O rei, a rainha de Satsouma e um grande numero de fidalgos Japonezes, intrigados pelos boatos que logo correrão sobre as virtudes do Santo Missionario e a conversão de seu compatriota que é mencionado nas chronicas da Igreja com o nome de Paulo de Santa Fé, mandarão buscal-os; e depois de ouvirem e fazerem interpretar as palavras do Santo varão, o rei concedeu-lhe por cartas-patentes, a graça de pregar em todas as terras sob seu dominio, e por ellas autorisava aos seus subditos a abraçarem a nova religião.

Apenas S. Francisco Xavier completou seus conhecimentos sobre a lingua Japoneza de modo a poder d'ella servir se nas predicas, percorreu toda a provincia de Satsouma fazendo proselytos e levantando capellas, ás quaes corria o povo, por zelo ou curiosidade, em prejuizo dos interesses dos bonzos que vião a estima e veneração publicas voltarem-se para os sacerdotes de um novo culto; ao mesmo tempo começavão a faltar-lhes a caridade dos Japonezes e o perigo era extremo para elles. Empregarão logo todos os meios, sem muito escolher, para aniquilar o alto prestigio de que gosavão os Missionários, já accusaudo-os de feitiçaria e do toda sorte de embustes, já ameaçando com a cólera dos deoses a aquelles que assistissem aos officios divinos da nossa religião.

Eis, segundo a chronica Japoneza, a linguagem que elles empregarão em seus protestos ao Rei de Satsouma.

«Porque deixareis a Religião de vossos antepassados para abraçar a de tres miseraveis estrangeiros que vierão procurar pão no nosso paiz? Sereis capaz de expulsar de vossos Estados os deoses titulares do Imperio para admittir um Deus desconhecido e amotinador, que guerrea a todos os outros sem querer compartilhar o poder? A divisão do Reino, uma guerra sanguinolenta entre os vossos subditos, a perda da vossa corôa, a inveja dos Reis vossos visinhos, aos quaes se juntarão todos os sacerdotes do Japão para vingar os ultrages que quereis fazer aos Kamis [1], aos Fotocas [2] e á gloria dos Pagodes; — taes são os resultados que deveis esperar, se não ordenais sem demora contra estes estrangeiros, inimigos da Religião e do Estado.

O Rei temendo que taes ameaças se realisassem, e pouco lhe importando os interesses de uma Religião, cujos beneficios desconhecia, revogou a permissão que dera aos Missionarios para livremente poderem pregar; e, sob pena de morte, foi prohibido aos Japonezes de abraçarem a Religião do Christo.

Depois de exercer a influencia que suas virtudes lhe dava, perto do Rei de Satsouma, e nada obtendo, S. Francisco Xavier partio para Firato, deixando aos cuidados de Paulo da Santa Fé o fóco de luz que tão brilhantemente já illuminava até o mais insignificante lugarejo da provincia de Satsouma.

Contão os padres Bouhours, Marini e outros que tratarão de tal assumpto, que o chefe dos bonzos europeos, como os japonezes denominavão o padre Xavier, obteve em Firato em suas prédicas o mesmo successo que ao principio em Satsouma e que ahi deixando o padre Cosme da Torre partio depois de pouca demora para Miako, capital religiosa do Japão, onde esperava instruir grande numero de néophytos. De passagem para Amangouchi elle prégou a palavra do Evangelho; porém, foi ahi mal recebido e perseguido ás pedradas pela população, que não podia comprehender, como um sacerdote consentia em trazer as vestes esfarrapadas sem nada pedir para si: tal era o luxo que ostentavão os bonzos desta rica cidade que assim habituarão o povo a julgar.

Nem as perseguições, a fome, o frio e mil contrariedades desalentarão ao padre Xavier, que confiando na justiça da causa por que combatia, depois de vencer mil obstaculos, chegou a Miako certo de ahi arvorar o Estandarte da Cruz; porém, o paiz achava se nas garras de uma feroz guerra civil, sustentada entre os dous Imperadores do Japão, o Mikado e o Taikúno. Resolveo pois voltar á Firato persuadido de que sua presença em Miako seria de nenhuma vantagem á sua missão.

Na volta, o padre Xavier tornou a passar pela cidade de Amangouchi, e graças a alguns presentes, consistindo cm objectos desconhecidos no paiz, que elle offereceo ao rei da provincia deste nome, a quem também forão entregues cartas officiaes do Rei das Indias e do Bispo de Gôa, nas quaes o padre Xavier era apresentado como homem de grandes virtudes e de posição consideravel entre os portuguezes, elle encontrou a mais cordial hospitalidade nesta cidade, ao contrario do que se vio na sua primeira visita. E quando em uma occasião que o rei de Amangouchi offereceo ao santo varão uma forte somma do dinheiro em troca dos interessantes presentes que este lhe fizera, o vio recusar hnmildemente, elle exclamou admirado:

«— Nossos bonzos só nutrem um desejo insaciável de amontoar ouro e prata, e este bonzo da Europa nada quer acceitar!»

Esta conducta irreprehensivel, valeo a mais alta idea que os japonezes, poderão conceber sobre a nossa religião, o seus sacerdotes, e a protecção que este rei dispensou ao padre Xavier e aos seus companheiros mudou a situação da Igreja no Japão.

De feito, não erão bastantes tão poucos pastores para tão numerosos rebanhos e apezar da actividade dos primeiros missionarios, foi necessário que o padre Xavier escrevesse para Roma pedindo voluntários apostolos que a seu exemplo e de seus maiores, se dispuzessem a morrer, se assim fosse necessario, para honra e confirmação das suas crenças.

Assim escrevia o padre Xavier para Roma e ajuntava: — «É necessario que sejão homens (os missionarios) de uma vida irreprehensivel; porque os japonezes julgão do interior para o exterior, e da boa doutrina pelos bons costumes. Que tenhão tambem grande capacidade e muita instrucção. Esta nação possue homens sabios que só cedem quando convencidos por evidentes razões. Que elles contem soffrer todas as necessidades com intrepida coragem; viver em continuos perigos; morrer se fôr necessário em terriveis torturas; que sejão profundamente entendidos em astronomia e em mathematicas; que não contem, sobretudo, com faceis successos porém, com toda sorte de obstáculos e trabalhos.»

« Elles se fatigarão durante todas as horas do dia e durante uma parte da noite, com visitas importunas e questões enfadonhas. Elles serão sem interrupção, chamados ás casas de pessoas de qualidade, e, muitas vezes, nem terão tempo para orarem nem se recolherem, nem poderão talvez dizer missa e lêr o breviario e muito menos dispor de tempo para repousarem. Não se póde acreditar quanto importunos são os Japonezes para os estrangeiros de quem não fazem nenhum caso. Julgai o que soffrerão os nossos apostolos quando fôr preciso levantar-se contra a Fé de taes homens e censurar altamente seus vicios e seus erros!!»

Foi em Boungo que o padre Xavier encontrou a mais decidida protecção para levar ao cabo a sua santa missão.

Durante as viagens ás differentes cidades do Japão o padre marchava á pé, levando sobre as costas um pesado sacco contendo um pequeno altar de pedra para dizer a missa, um calice e todos os paramentos necessarios. Foi assim que elle chegou ao porto de Figen, distante uma legua da cidade de Funay, capital do reino de Boungo.

Ahi encontrou um capitão portuguez de nome Eduardo da Gama, que reunindo-se aos outros seus compatriotas, forão receber o padre Xavier fora de Figen e o introduzirão na cidade ao som das salvas de artilheria e das acclamações das equipagens dos navios mercantes. O rei de Boungo tendo noticia do que se passava, mandou com instancia chamar ao padre Xavier que no dia seguinte ao da sua chegada em Figen fez sua entrada triumphal na capital deste reino onde foi recebido com todos os respeitos e honras que erão devidos á suas virtudes.

Foi necessário que elle cedesse de sua humildade e se prestasse a satisfazer os desejos dos Portuguezes, vestindo uma sotaina de sèda, pozesse uma estola de velludo com franjas de ouro que lhe foi offerecida, e, assim, se dirigisse ao palacio do rei rodeado por numerosos Portuguezes vestidos com magnificos e vistosos estofos e ornados com joias de ouro e de pedras finas. Todos entrarão em ricos barcos em cujos mastros fluctuavão ao vento as côres portuguezas.

Fechava o cortejo alguns musicos portuguezes, que com seus concertos harmoniosos, attrahião os moradores dos lugares por onde passavão, que seguião resolutamente em suas almadias augmentando esta flotilha de paz.

Eis em que ordem chegou o cortejo ao palacio do Rei depois de ter desembarcado na margem opposta do porto Figen d’onde tinhão partido.

Na frente, com a fronte descoberta, tendo na sua direita a vara de ceremonia, Eduardo da Gama rompia a marcha, como escudeiro do Apostolo das Indias e do Japão. Aos lados delle, vião-se cinco portuguezes, os que maior estima gosavão; um levava o cathecismo do missionario; o segundo, a imagem da Virgem, envolvida em damasco de sèda vermelho; o terceiro, uma bengala guarnecida com rico castão de ouro, os dous ultimos levavão magnificos chapeus de sol, semelhantes aos que se trazem nas Indias diante das pessoas de alta distincção. Vinha em seguida numerosa multidão compondo-se de marinheiros, de creados e de grande numero de Japonezes, que corrião para vêr o bonzo Chinchicogin (que em sua língua significa portuguez).

Chegados á palacio, o capitão das guardas, que se achava a testa de quinhentos soldados, introduziu o cortejo em uma grande galeria, onde apenas chegados, os cinco portuguezes se ajoelharão diante do Santo padre. Um apresentou-lhe a vára de ouro, outro as alparcas de veludo, dous se collocarão a seus lados, e o ultimo, atraz, sustentava o chapéu de sol; e assim se encaminharão até uma grande sala, onde se achavão reunidos os grandes personagens da Côrte, tendo um delles, ainda joven, assim saudado o padre Xavier:

«É necessário que tenhaes grande coragem, para vir do outro extremo do mundo nos dar a conhecer o verdadeiro Deus sem mais esperanças do que injurias e affrontas. Porém, é tambem de necessidade, que vosso Deus seja bastante poderoso, porque, se te fizestes pobre pelo amor d’elle, elle vos faz honrar pelos ricos.»

Atravessou o cortejo esta sala e entrárão em outra, onde parou, para que o missionário recebesse os comprimentos dos filhos dos principes do Reino que lhe recitarão entusiasticos versos.

Assim atravessarão outras muitas salas antes de chegarem â anticamara do Rei. Apenas entrados, o Rei adiantou-se quatro ou cinco passos para a frente, e, em seguida, inclinou-se tres vezes até o chão, emquanto que o padre se prostou do mesmo modo, e tendo tomado a mão do Rei para beijar, este não o consentiu e o obrigou a assentar-se a seu lado.

Comprehendeu sem demora o Rei de Boungo o homem que tinha na sua presença, e encantado de sua vasta erudição e maneiras humildes, prometteu-lhe conceder todos os favores que elle desejasse, porém, não contava este soberano com o poder dos bonzos de seu paiz, que receiosos da influencia que o padre Xavier exercia sobre o espirito do Rei, forão buscar Faxiondono, um dos mais illustrados ministros de Budha, o qual provocando um escandalo diante do Rei, foi por ordem deste expulso de sua presença, quando exclamava assim. «Que os Deuses lancem do céo um fogo que te devore (dizia ao Rei) e que reduza a cinzas todos os reis que ousarem proceder como tu.»

O Rei vexado com este escandalo, e vendo no ministro de Christo a maior humildade e moderação, e no dos seus idolos a mais inconsiderada e violenta conducta, disse ao padre Xavier, que estava cançado com os vicios e as hypocrisias destes bonzos; e convidou-o a jantar em sua companhia, dizendo:

«É signal de distincção e de estima admittir alguém á minha mesa, porém comtigo, para mim será a honra se quizeres participar de meu jantar.

Ao que o padre Xavier respondeu inclinando-se para o chão o beijando o sabre do soberano japonez, o que é signal do mais profundo respeito, segundo os usos do paiz.

Durante o jantar, a que assistirão de joelhos toda a côrte japoneza e os cinco portuguezes, reinou a mais cordial harmonia entre o Rei de Boungo e o humilde servo de Deos, a quem aquelle confundia com a mais esquisita ceremonia o franca hospitalidade.

Dias depois desta explendida festa, foi o padre Xavier convidado a discutir sobre alguns pontos theologicos con os Bonzos entre os quaes distinguia-se o superior de um famoso mosteiro de bonzos, chamado Fucarandono, o que o Rei permittiu com a condição, porém, de que não se deixarião estes governar pelas más paixões, e não se lançassem ás injurias aos insultos quando vencidos pelo seu forte adversario.

Diante do Rei travou-se o combate e foi o nosso heroe quem primeiro elevando a sua sonora voz disse:

«Podereis sustentar que os magnificos quadros que vemos n’esta salla sejão obra do acaso?»

«Será fortuitamente que as côres cahirão sobre a tela e ahi traçarão estas figuras deliciosas?»

«A mesma cousa poder-se-hia dizer do um livro ou de todo outro trabalho dos homens? Não, sem duvida. E, se assim é, o universo é o mais bello dos quadros, o mais sublime de todos os livros. Ele revela pois um principio intelligente.»

Este argumento muito agradou aos Japonezes, porém os bonzos esforçarão-so em destruil-o, baseando suas objecções em que elle pecava pela base, pois não se podia comparar os effeitos da materia animada com os da materia inerte, e, una voce, perguntavão qual era a natureza d'este Principio, se bom ou mão, e se os bens e os males delle provinhão?

«Se este primeiro soberano autor fosse perfeitamente bom, dizião elles pela boca de Fucarandono, sem nenhuma mistura do mal, não poderia orçar demonios, inimigos dos homens e maus por sua natureza; e se ha um Deos que se vinga de suas creaturas, não póde ser chamado bom por excellencia, mas cruel. Se elle creou os homens para o honrar não deveria consentir que elles fossem tentados nem lhes dar fraqueza e inclinação para o mal. Um Deus bom e misericordioso poderia crear um eterno inferno e ao mesmo tempo impór aos homens leis tão rigorosas e de tão difficil observância?

Poderia elle assistir ao espectaculo doloroso dos condemnados sem deixar-se sensibilisar? Nossa religião é mais philosophica. Admitte que os Deoses retirão do inferno aquelles que implorão sua clemência. É uma doutrina mais bem fundada do que a vossa tanto sobre a justiça como sobre a piedade.»

O padre Xavier esforçava-se em destruir uma por uma estas objecçõos intelligentes, ainda que baseadas sobre apparente verdade, o dispondo de verdadeira eloquencia e dos conhecimentos perfeitos da lingua Japoneza, obteve os applausos geraes da assemblea que assistia a essas discussões.

Durante cinco dias, discutirão diversas questões capitaes da nossa religião, e quando o Padre fallou sobre a immortalidade da alma, crença que não alimenta nenhum interesse mundano, foi que elle ganhou todos os corações e fez numerosos proselytos.

No fim d’este tempo o Rei encerrou os debates e subindo ao throno julgou de accordo com todos os assistentes que a religião do estrangeiro era mais conforme com a verdade, a razão e o senso commum, do que a dos bonzos a quem dirigindo-se em seguida, disse: «Ide, retirai-vos, depois do que ouvistes tratai de ser homens de bem.»

Em outro qualquer paiz que, como o Japão, subsistisse sob o regimen theocratico, as conveniencias politicas terião desde logo prevalecido sobre outra qualquer consideração no espirito do Rei, que, sem duvida, baniria os santos missionarios; porém, para o Japonez, a verdade está superior a todos os prejuizos ainda mesmo que ella custe a sua vida ou a perda de seus interesses; por isso é que vimos este Rei, a exemplo de muitos outros chefes Japonezes, deixar-se levar pelo enthusiasmo que lhe provocarão as virtudes d’este pobre velho que exemplificou com sua conducta as mais elevadas doutrinas do Christianismo.

Emquanto o padre Xavier, ganhava estas explendidas victorias sobre os sacerdotes pagãos do reino de Boungo, o padre Cosme da Torre percorria varias cidades, convertendo os seus habitantes, alguns dos quaes, como adiante se dirá, honrarão no supplicio e no meio das mais barbaras torturas, a causa que espontaneamente abraçarão e com heroismo defendião.


  1. Deoses do Japão.
  2. Deoses secundarios, inferiores aos Kamis.