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Despois que Magalhães teve tecida

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Despois que Magalhães teve tecida
A breve historia sua, que illustrasse
A Terra Santa Cruz, pouco sabida;

Imaginando a quem a dedicasse,
Ou com cujo favor defenderia
Seu livro d'algum zoilo que ladrasse;

Tendo nisto occupada a phantasia,
Lhe sobreveio hum somno repousado,
Antes que o sol abrisse o claro dia.

Em sonhos lhe apparece todo armado
Marte, brandindo a lança furiosa,
Com que fez quem o vio todo enfiado;

Dizendo em voz pezada e temerosa:
Não he justo que a outrem se offereça
Obra alguma que possa ser famosa,

Senão a quem por armas resplandeça
No largo inundo com tal nome e fama,
Que louvor immortal sempre mereça.

Disse assi: quando Apollo, que da flama
Celeste guia os carros, de outra parte
Se lhe presenta, e por seu nome o chama,

Dizendo: Magalhães, postoque Marte
Com seu terror t'espante, todavia
Comigo deves só de aconselhar-te.

Hum Varão sapiente, em quem Thalia
Poz seus thesouros, e eu minha sciencia,
Defender tuas obras poderia.

He justo que a escriptura na prudencia
Ache só defensão; porque a dureza
Das armas he contrária da eloquencia.

Assi disse: e tocando com destreza
A cithara dourada, começou
A mitigar de Marte a fortaleza.

Mas Mercurio, que sempre costumou
Pacificar porfias duvidosas,
Co'o Caducêo na mão, que sempre usou,

Determina compor as perigosas
Opiniões dos deoses inimigos
Com suaves razões e ponderosas.

E disse: Bem sabemos dos antigos
Heroes, e dos modernos, que provárão
De Belona os gravissimos perigos,

Como tão bem mil vezes concordárão
As armas com as letras; porque as Musas
A muitos na milicia acompanhárão.

Nunca Alexandre, ou Cesar, nas confusas
Guerras o estudo deixão grande espaço;
Que as armas jamais delle são escusas.

N'huma mão livros, n'outra ferro e aço;
Aquella rege e ensina; est'outra fere:
Mais co'o saber se vence, que co'o braço.

Pois, logo, hum Varão grande se requere,
Que com teus dões (Apollo) illustre seja,
E de ti (Marte) palma e glória espere.

Este vos darei eu, em quem se veja
Saber e esfôrço no sereno peito,
Que he hum Leoniz que faz ao mundo inveja.

Deste as Irmãas em vendo o bom sogeito,

Todas nove nos braços o tomárão,
Criando-o co'o seu leite no seu leito:

As Artes e as Sciencias lh'ensinárão;
Inclinação divina lh'influírão
Ás virtudes moraes, que logo o ornárão.

Daqui nos exercidos o seguírão
Das armas no Oriente, onde primeiro
Hum soldado gentil instituírão.

Alli taes provas fez de Cavalleiro,
Que, de Christão magnanimo e seguro,
A si mesmo venceo por derradeiro.

Despois, ja Capitão forte e maduro,
Governando toda a Aurea Chersoneso,
Lhe defendeo co'o braço o debil muro.

Porque vindo a cercá-la todo o pêso
Do poder dos Achens, que se sustenta
De alheio sangue, em furia todo acceso;

Este só que a ti, Marte, representa,
O castigou de sorte, que vencido
De ter quem vivo fique se contenta.

E logo qu'este Reino defendido
Deixou, segunda vez com maior glória
Para o ir governar foi elegido.

Mas não perdendo ainda da memoria
Os amigos o seu govêrno brando,
Os imigos o damno da victoria;

Huns com amor intrinseco esperando
Estão por elle, e os outros congelados
O estão com frio medo receando.

Vêde pois se serião debellados
Por seu claro valor, se lá tornasse,

E dos Indicos mares degradados.

Porqu'he justo que nunca lhe negasse
O conselho do Olympo alto e subido
Favor e ajuda com que pelejasse.

Aqui só póde ser bem dirigido
De Magalhães o estudo: este só deve
Ser de vós, claros deoses, escolhido.

Assi Mercurio disse; e em termo breve
Conformados se vem Apollo e Marte;
E voou juntamente o somno leve.

Acorda Magalhães, e ja se parte
A offrecer-vos, Senhor claro e famoso,
Tudo o que nelle poz sciencia e arte.

Tẽe claro estylo, e engenho curioso,
Para poder de vós ser recebido,
Com mão benigna, de ânimo amoroso.

Pois se só de não ser favorecido
Hum alto esprito fica baixo e escuro;
Este seja comvosco defendido,

Como o foi de Malaca o debil muro.

Notas da Wikisource

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  1. Título atribuído por Pero de Magalhães Gândavo em sua História da Província de Santa Cruz.
  2. RODRIGUES, Marina Machado. Crítica autoral e crítica textual na lírica de Camões. Revista Philologus, Rio de Janeiro, v. 6, n. 17, 1999. Disponível em: <http://www.filologia.org.br/revista/artigo/6(17)37-46.html>. Acesso em: 6 jan. 2014.
  3. No sumário das Obras completas de Luis de Camões, José Victorino Barreto Feio e José Gomes Monteiro inserem a seguinte observação para este poema: A D. Leoniz Pereira, havendo-lhe Pedro de Magalhães Gandavo dedicado o seu livro intitulado: Historia da Provincia de Santa Cruz, a que vulgarmente chamamos Brasil. Impresso em Lisboa 1576 (p. 515 do Tomo III).