Dom Pedro e Dom Miguel/Capítulo 1

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CAPITULO 1
A morte do velho Rei

O fallecimento de Dom João VI occorreu a 10 de Março de 1826. Ainda não tinha 59 annos, pois que nascera a 13 de Maio de 1767, mas nunca fôra joven de espirito nem de caracter, timido nos seus actos posto que não timorato nos seus pensamentos. Seu juizo era naturalmente esclarecido: o que sempre lhe faltou, até ao fim, foi a vontade. Sua ultima enfermidade foi muito curta e algum tanto mysteriosa. As circumstancias suspeitas que se produziram, unidas ás considerações suscitadas por um desenlace que é fatal em toda existencia humana, mas que n'este caso era essencialmente politico, fizeram logo acreditar n'um crime. Esta crença prolongou-se até nóssos dias, tem sido frequentemente discutida e já foi mesmo scientificamente demonstrada, se bem que seja facil confundir á distancia symptomas pathologicos, e que não haja prova alguma decisiva em abono de uma accusação apenas estribada em desconfianças bustante fortes e muito legitimas.

Convem notar que nos seus informes muito minuciosos, o embaixador britannico em Lisboa não faz menção immediata de envenenamento. É por certo grave e arriscado repetir boatos, mas não é ocioso e antes assenta a um diplomata transmittil-os quando assim correm, se avolumam e podem offerecer plausibilidade, nos despachos secretos que dirige ao seu governo. Entretanto o que Sir William A' Court simplesmente escrevia a Canning a 7 de Março[1] era que El Rei se sentira mal no dia 4 e quasi expirara durante a noite, tomado de vomitos, de desmaios e de ataques «visivelmente epilepticos, mas podendo rematar por uma apoplexia». Seriam antes ataques espasmodicos (o inglez chama-lhes fits), ajuntando que, se era possivel a consequencia de uma congestão, chamara-se de começo ao mal uma indigestão.

Dom João VI soffria desde algum tempo de uma inflammação no figado e esta enfermidade é susceptivel de subitamente aggravar-se, tanto mais quanto não faltavam ao soberano nem desgostos de familia nem cuidados-de governo. O Brazil separara-se, como elle aliás o previra, mas repudiando todo traço de suzerania portugueza: o titulo de imperador honorario que lhe fôra concedido assemelhava-se assim antes a uma farça. Esse imperio in partibus infidelium não aproveitava a Portugal, que permanecia pobre e descontente, O monarcha d'essa realeza precaria pela divisão evitava apparecer em publico para não dar ás paixões partidarias pretexto para se exacerbarem e poupar-se a si proprio a penosa impressão de uma popularidade desvanecida.

O seu proposito fôra atilado e sympathico. Elle nunca quiz guerra entre os dous reinos desunidos, porque imaginava que com o odio d'ahi resultante tornaria irremediavel a scisão. Sua politica foi sempre de pannos quentes, e pannos quentes podem não curar, mas alliviam dôres. Com essas perplexidades e vexames ia-se a sua saude, minada pela vida em demasia sedentaria e pelo mal refreado appetite. Foi uma surpreza vel-o nas festas da sua acclamação imperial com o semblante melancholico, as feições decompostas, o olhar mortiço, collocando o diadema sobre a cabeça com um gesto de automato. Logo depois foi-se com as duas infantas, Izabel Maria e Maria da Assumpção, para Mafra, que é o Escurial portuguez, onde lhe seria licito chorar e rezar á vontade, pois que, sob o influxo dos desgostos, o seu espirito, que fôra bastante imbuido das doutrinas do seculo XVII, se refugiara nas praticas religiosas.

Em Lisboa El-Rei estava occupando o palacio da Bemposta, edificado pela rainha Catharina de Bragança quando viuva de Carlos II de Inglaterra: para ahi volvera elle de Mafra e ahi morreu. A 2 de Março lançou de repente muita bilis. No dia immediato, sentindo-se melhor, deu um asseio de carruagem até Belem, ao longo do rio, e tanto bem lhe fez o ar fresco que no dia 4 acordou disposto a almoçar frango córado, queijo e laranjas. A tradição reza que-estas laranjas continham peçonha. Veio-lhe um vágado, Ingo acompanhado de suffocações, de vomitos e de um continuo pestanejar, por fim de convulsões e de syncopes, muito se assemelhando este conjuncto a um ataque de uremia. Seu estado peorou por tal forma que na noite de 5 recebeu os ultimos sacramentos, dando-se depois d'isso uma reacção favoravel.

D. João VI

Os medicos do Paço, em conferencia no dia 6, não reconheceram a natureza do mal «ou não quizeram reconhecel-a »[2]. Fallaram de pleuresia e prescreveram sangria, bichas, ventosas e sinapismos, todo o velho arsenal therapeutico. A doença fez menção de ceder e aproveitou-se essa visita da saude para pôr um pouco em ordem as cousas do governo e as-do lar, que umas e outras a reclamavam. Já na manhã de 6, parecendo-lhe proxima a agonia paterna, a infanta Dona Izabel Maria suggerira uma reconciliação in-extremis com a Rainha. O patriarcha de Lisboa e o nuncio do Papa fallaram a respeito com Dom João VI, que disse que sim, e o patriarcha foi a Queluz buscar Dona Carlota Joaquina, que não disse que não, mas pretextou que a sua debilidade não lhe permittia levantar-se e emprehender uma viagem de carro até a Bemposta.

El-Rei teve uma recahida a 9 e perdeu então por completo os sentidos, fallecendo no dia seguinte sem passar por aquella comedia d'uma entrevista suprema com a esposa desleal que o fizera desventuroso e ridiculo. O nuncio foi encarregado de annunciar á Rainha a triste nova — quasi se poderia dizer a boa nova — e convidal-a a juntar-se ás filhas para carpirem -o melhor dos homens e dos soberanos. O povo, que gosta das scenas de effusão e sobretudo de perdão, preoccupava-se com o desenlace da tentativa e não deixou de fazer asperos commentarios sobre um odio que nem a morte imminente levava a desarmar, e que era nutrido por quem carregava as culpas. O facto é que os intrigantes a quem tal situação convinha ou que.com ella lucravam, sé tinham envolvido no desaccordo e conseguido prolongar até ao fim o afastamento dos conjuges.

O embaixador britannico A' Court não culpa tanto Dona Carlota Joaquina, querendo acreditar que o seu primeiro impulso fôra bom, mas que a posição em que ella se achava colocada era muito falsa. Mesmo apoz o que occorrera, a saber, a recusa dissimulada, o embaixador ainda se fiava na sinceridade da Rainha, afigurando-se-lhe que a enfermidade — diziam-na ethica — devia haver contribuido para suavisar o que elle chamava «a dureza, a violencia e o pendor vingativo do seu genio que tão temivel a tornavam»[3].

Teve porem ensejo de verificar, dous mezes e meio depois, na audiencia concedida para apresentação dos pezames pessoaes do Rei Jorge IV, o quanto se enganara. De pé durante mais de duas horas, o que já por si dava mostra de não ser tão precaria sua saude, e sem mostrar o menor indicio de cançaço, ella falou com a volubilidade e com a vivacidade do costume de quanto se relacionava de perto ou de longe com os negocios do reino. Tambem externou sua opinião sobre todos os personagens que n'elles figuravam, e como sabia ser franca como ninguem, Sir William sahiu da entrevista estupefacto, muito embora reconhecendo que ella lhe testemunhara uma benevolencia e uma cortezia inexcediveis. Essa mulher destituida de belleza era capaz e, quando preciso, sabia fazer uso de um grande poder de seducção. Sua loquacidade era inesgotavel e o embaixador escrevia para Londres[4] que lhe seria quasi impossivel repetir tudo quanto ella contou. À conversa ou antes o monologo consistiu «numa serie sem nexo das historias mais disparatadas, repetidas por toda especie de gente e de que ella tirara as deducções mais extraordinarias embora as menos justificaveis».

No decorrer da audiencia a Rainha apontou como um facto indiscutivel o envenenamento do marido. Declarando fazer justiça às suas boas intenções, exprobrou-lhe entretanto o rodear-se constantemente e deixar-se levar pelos maiores bandidos (sic) do paiz, que de resto acabaram por envenenal-o com doses successivas de agua tofina, um composto de arsenico. Ella poderia mesmo precisar quando foi propinada a primeira dose. A' Court não poude refrear-se de perguntar o motivo de semelhante atrocidade, o que no seu dizer a perturbou. De facto os absolutistas tinham o maior interesse no crime, pois que o Rei estava n'essa occasião sob a censura de obedecer á influencia dos liberaes moderados.

Como um conhecimento tão intimo dos pormenores do crime poderia parecer suspeito, Dona Carlota Joaquina preferiu desviar a conversa e proseguir com suas accusações, pretendendo que vom conciliabulo efiectuado em Pariz se havia resolvido liquidar da mesma forma o infante Dom Miguel. Alguns dos cumplices já tinham partido para Vienna afim de executarem seu sinistro projecto. O conde de Villa Flor (futuro duque da Terceira), o conde de Penafiel, Anselmo Braamcamp e tambem o conde de Subserra (o tenente general Pamplona, tão execrado pelos absolutistas) tinham — era crença sua — assistido a reunião em Pariz em que se urdiu o plano macabro para o qual trez negociantes de Lisboa, cujos nomes ella ignorava, tinham fornecido a quantia de 60 contos.

O ministro em França, Pedro de Mello Breyner, não parecia nutrir melhores disposições do que os outros e a vez d'ella cedo chegaria, a qualquer momento, pois que o Dr. Abrantes já declarara que Portugal nunca gosaria de tranquillidade emquanto a Rainha não tivesse ingerido certa poção[5]. De tudo isto ella sabia perfeitamente, mas não arriscava queixar-se, porque seria inutil e mesmo imprudente fazel-o por emquanto (sic).

Ajuntava o embaixador que Canning, o Secretario d'Estado dos Negocios Estrangeiros a quem prestava informações da entrevista, podia estar certo de que não existia o menor fundamento para essas aleivosias, de qualquer lado «que partissem. «You may be assured, Sir — são suas palavras — that there is not the slightest foundation for such a suspicion either on one side or on the other».

Vivia-se porem n'uma atmosphera de suspeição e a lenda havia de por força propagar-se. Às lendas deitam no geral fortes raizes e a «voz do povo» tem muitos que n'ella acreditam. D'este caso aliás se pode dizer que a segurança de um crime foi commum desde o começo, e que gradualmente se arraigou no espirito de quasi todos, sendo sustentada por uma immensidade de gente. O crime aproveitava aliás ou pelo menos podia aproveitar tanto a uma como a outra das duas facções que o monarcha tratava de conservar em equilibrio e que de novo iam entrar em combate acceso. Tambem se pode dizer e com mais acerto que afinal não aproveitava nem a uma nem a outra das facções. Aquelles que mutuamente se exprobravam o attentado esqueciam que, se attentado houve, era não só deshumano mas ocioso e estupido, pois que era o soberano quem, por meio da sua passividade ladina, se constituira exclusivamente no fiel da balança entre as paixões e as ambições.

Dom João VI foi sempre eximio na arte da gangorra politica, não só jogando com os seus ministros mas com as nações estrangeiras. Não hostilizou a França napoleonica emquanto o Imperador o não hostilizou e antes de ir para o Brazil, como depois de voltar, d'ella se serviu contra a Inglaterra. Esta fôra entretanto perdendo o prestigio que possuia em Portugal, justificando a acção que o historiador Temperley denomina de recuperação da influencia britannica, a qual assignalou o ministerio de Canning.

Castlereagh evitara mostrar-se abertamente favoravel á revolução portugueza de 1820, mas longe estava de favorecer uma reacção desenfreada. Canning proseguio com maior firmeza n'essa política, patrocinando o constitucionalismo monarchico, posto que não se prestando, tal qual seu predecessor, quer a combater revoluções internas, como o prescrevia o velho tratado de 1386, quer a garantir a integridade do dominio colonial portuguez, segundo o artigo secreto do tratado de 1661, celebrado com Carlos II. A continuidade da tradição britannica não exclue que os tempos mudam, que variam as circumstancias e que os tratados correlativamente se alteram no espirito e depois na lettra.

De facto a Inglaterra protegia Portugal, qualquer que fosse a natureza das suas instituições. É o que estamos vendo que acontece hoje. O ponto de vista de Canning era auxilial-o sempre que Portugal não commettesse aggressão e apenas a soffresse, mas o que elle sobretudo pretendia era agir por si e agir só, sem se associar á Santa Alliança nem tampouco desafial-a arrogantemente. Sua attitude independente não era necessariamente bellicosa: era antes conciliatoria na medida do possivel. Seu proposito cifrava-se em acabar com o areopago da Santa Alliança que se desenvolvera ao lado da Inglaterra e que, tolhendo-lhe os movimentos, ameaçava absorvel-a. Por isso assestou suas baterias contra Subserra, que encarnava em Lisboa a corrente franceza, e alcançou sua sahida do gabinete, cortando o vôo á França que por intermedio do seu embaixador Hyde de Neuville entendia predominar nos conselhos da Bemposta. Para tanto se não pejou Canning de reprehender desabridamente a Thornton, ministro britannico em Lisboa, a quem El-Rei fizera conde de Cacilhas.

Fôra Hyde de Neuville quem conseguira impedir Dom João VI de cumprir a promessa á nação, contida no decreto de 21 de Fevereiro de 1824, de reunião das velhas Côrtes. El-Rei o confessou a A' Court. «Deveis saber tão bem quanto eu — foram suas palavras ao embaixador — que se o paiz não se acha presentemente governado por uma Carta, é porque a intromissão dos soberanos alliados, e isto sómente, obstou a que eu executasse o meu compromisso. Não achei ensejo de realizal-o sem perigo». E como A' Court lhe recordasse que a Grã Bretanha não deixaria de guardal-o contra as aggressões de fóra, elle respondeu com o seu habitual bom senso: «Não era uma franca aggressão de fóra que eu receava: era a animação dada ás facções dentro do paiz».

Os cartistas (que assim já podem ser denominados os liberaes moderados) defendiam-se com effeito bem da imputação de um attentado apontando para o proveito que para elles residia na preservação da pessoa real, contra a qual eram impotentes comparativamente os constitucionaes democraticos de 1820, perseguidos, foragidos ou exhaustos de meios e que aliás nunca tinham votado odio ao Rei. Só os absolutistas ferrenhos, amigos da Rainha e do infante, lucrariam, diziam os seus contrarios, com o regicidio, o qual se assegurava estar previsto ou annunciado em cartas, restando ainda saber se estas eram veridicas ou apocriphas.

Tambem não se pode jurar serem mais do que coincidencias, posto que estranhas, a morte repentina do cirurgião Aguiar, valido real, victima, segundo uns, de um suicidio commettido pelo remorso do seu acto ou pela desesperação da perda do seu bemfeitor, sacrificado, segundo outros, pelos cumplices « para maior firmeza do fatal segredo»; o fallecimento, igualmente subito, do medico barão de Alvaiazere, que se atrevera a fallar em veneno e assim encontrava n'outro veneno o castigo da sua indiscreção, e outro obito anterior, o do cosinheiro do Paço, Caetano, que, convidado, se não teria prestado ao nefando crime[6].

Tudo isto dá que pensar e era de natureza a ser facilmente explorado. Por outro lado é verdade que os moderados deviam sympathizar com Dom Pedro, o qual se apregoava mação, vindicava a memoria de Gomes Freire e aconselhava ao pai que outorgasse uma Constituição. Não podia o Imperador inspirar confiança, quer aos democratas das Côrtes, a quem qualificara de infames despotas, quer aos reaccionarios contra as Côrtes, pois que condemnara os desatinos do irmão.

Dadas estas premissas, o que se pode concluir? A quem era que devéras favorecia o desapparecimento de Dom João VI? N'um sentido a todos, n'outro a ninguem. O auctor da Revista Historica escreve que «como quer que seja, a morte de D. João VI é um d'aquelles factos historicos que ficarão com muitos outros talvez para sempre sepultados no meio das trévas em que se envolvem os homens pervertidos n'estes seculos de immoralidade».

Esta obra entrou em domínio público no contexto da Lei 5988/1973, Art. 42, que esteve vigente até junho de 1998.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.
  1. British Record Office, Foreign Office.
  2. Esta expressão intencional encontra-se no livro de um historiador luxemburguez, Dr, Arbhur Herchen, o qual estudou por uma forma muito sympathica e interessante a personalidade de Dom Miguel, cuja filha, Maria Anna, foi grã-duqueza do Luxemburgo, (Dom Miguel I, König von Porlugal, Sein Lebeu und Seine Regierung, Luxemburg, 1908).
  3. Despacho de 10 de Março de 1826, B, R. O. F. O.
  4. Despacho secreto e confidencial de 4 de Junho de 1826. B. R. O. F. O.
  5. O Dr. Derngalo José de Aimuutes e Castra, que fira perseguido pela Inquisição como jacobino o mação e que em Londres fundou com o Dr. Vicente Pedro de Nolasco o periodico -- O Investigador Portuguez na Inglaterra — destinado a contrabalançar o Correio Brasiliense, considerado em demasia independente, possuia por esse tempo a inteira confiança da regente Dona Izabel Maria, de quem era o mais escutado conselheiro. Mais tardo teve que se exilar. Subserra e Mello Breyner morreram na prisão sob o regimen de Dom Miguel, como seus inimigos politicos.
  6. Revista Historica de Portugal desde a morte de D. João VI até o fallecimento do Imperador D. Pedro. 2.ª ed., Porto 1816.