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Dom Pedro e Dom Miguel/Capítulo 2

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CAPITULO II
O conselho de regencia

Logo que se declarou a gravidade da enfermidade real pensou-se naturalmente na successão e, dada a ausencia dos dous filhos varões, o Imperador e o infante, um no Rio de Janeiro e o outro em Vienna, um sentado n'um throno que o historiador inglez Temperley diz que era antes uma cadeira de balanço, e o outro tomando licções de urbanidade politica com Meiternich, cuidou-se na regencia immediata em caso de obito do monarcha. Successão e regencia tinham ambas um aspecto problematico.

O ministro dos negocios estrangeiros, que era o conde de Porto Santo (Antonio de Saldanha da Gama, um dos trez plenipotenciarios portuguezes ao Congresso de Vienna), confessou ao embaixador britannico que nada estava previsto no tocante á regencia e que, salvo disposição contraria do soberano, aproveitaria á Rainha o desapparecimento d'este. De accordo com uma das leis do reino, do tempo de Dom Pedro II, cabia-lhe de direito a regencia no caso de El-Rei fallecer sem testar. Porto Santo, que facilmente desanimava, receava que nada mais se pudesse resolver com probabilidades de ser acatado.

Sentindo-se porem mais alliviado El-Rei, que desde os primeiros indicios do mal a que succumbiu não mostrou de forma alguma illudir-se quanto á possibilidade de um restabelecimento, porventura para provocar os desmentidos compassivos de que o seu espirito soía contentar-se, manifestou elle proprio, ao que se affirma, a vontade de regular a interinidade imminente. Queria aos dous filhos, mas sabia que o segundo era muito dominado pela mãi. O mais velho achava-se privado da successão pelas leis e tradições do reino, pois que fundara no Brazil uma dynastia nova á frente de uma nacionalidade nova.

Canning quizera que o negocio da successão houvesse sido decidido no tratado de reconhecimento do imperio, sem o que Dom Pedro herdaria como primogenito a corôa portugueza. Recolhendo-a sem opposição e conservando-a sem lucta, refazia-se, a titulo pessoal que fosse, a antiga união que Dom João VI amargamente deplorava ter-se dissolvido. O governo portuguez insinuara que a Grã Bretanha garantisse a solução que fosse adoptada, mas a isto se esquivara Canning, pretextando ignorar aquilo para que lhe solicitavam a garantia. A Inglaterra não queria impor qualquer maneira de ver ao principal interessado, nem envolver-se nos assumptos domesticos de Portugal. Apenas concordava em defender Portugal ou o restante das suas colonias na eventualidade de um ataque brazileiro.

Urgia entretanto, e muito, impedir que Dona Carlota Joaquina pudesse empunhar as redeas do governo, pelo que assentou El-Rei confiar a regencia á sua filha Dona Izabel Maria, dictando ao ministro do reino, Corrêa de Lacerda, os termos do conhecido decreto. Foi o proprio Porto Santo quem narrou o occorrido a Sir William A' Court, o qual na sua correspondencia diplomatica ajuntou alguns pormenores plausiveis.

O natural pusillanime do Rei e a superstição commum em Portugal, de morte certa apoz o testamento, fizeram-no hesitar em firmar o documento, cujo theor era entretanto a expressão do seu ardente desejo. Duas vezes lh'o apresentaram sem que elle tivesse a coragem de assignal-o. As 5 da tarde decidiu-se de repente a fazel-o, mas com o pequeno esforço recahiu sobre o leito e ficou em somnolencia toda a noite. Pareceu que melhorara sensivelmente e a causa foi de certo o desgarrar-se d'aquella apprehensão fatal. Esta versão é mais veridica do que a dos absolutistas, entre elles o padre José Agostinho de Macedo, que, denunciando em altas vozes a negra trama dos constitucionaes, no poder desde Abril de 1824, fazem remontar o fallecimento de Dom João VI ao dia 6.

Segundo elles o intendente geral de policia, barão de Rendufe, esteve de sentinella com os seus esbirros á porta da camara mortuaria emquanto se levava a effeito o golpe d'Estado contra os direitos manifestos do infante. Se El-Rei não havia ainda expirado quando o davam como assignando o decreto, já estava pelo menos inconsciente, affirmava-se, contando-se mais que, para dar tempo a que se pudesse representar esse sinistro entremez, houve que demorar até se decompor o cadaver, tratando-se de combater com desinfectantes o cheiro da putrefacção. Quando os despojos reaes foram expostos, segundo o uso tradicional, já a corrupção estava tão adiantada que empestava todo o Paço. Chegou-se a relatar que «os cirurgiões, mau grado toda a sua pericia, não tinham podido embalsamar o corpo, sendo obrigados a pôr-lhe uma mascara »[1].

O decreto fôra tão ardilosamente concebido que não fazia referencia directa ou melhor dito, nominal ao successor do throno, como se se tratasse de uma questão sobre que não podia haver discussão: apenas rezava o legitimo herdeiro. O conselho que devia assistir a infanta regente não executava mais do que uma formalidade entregando a corôa áquelle a quem ella naturalmente cabia e que era o Imperador Dom Pedro. Assim deliberara aliás, ou pelo menos assim pensava sem sombra de duvida quando vivo o monarcha defuncto.

Na sua correspondencia official nega Sir William A' Court ter tido qualquer ingerencia no arranjo d'esta solução: dissera tão somente que, se na falta d'outras disposições, a regencia fosse parar ás mãos da Rainha, as auctoridades britannicas lhe prestariam o seu apoio «emquanto o governo fosse exercido com prudencia e circumspecção »[2]. Não que elle a desapprovasse: muito pelo contrario, partilhava-a de todo coração, e para Londres escrevia que a sorte protegia Portugal mais do que poderiam fazel-o todos os seus avisos e conselhos. Tinha elle, o que era naturalissimo, expressado em Lisboa a sua satisfacção da escolha feita: não quizera ir alem, e tampouco podia ficar aquem. Alguns queriam que elle houvesse assumido uma attitude mais accentuada, mas para que? Os fados tinham corrido de feição. Pela simples força das circumstancias chegara-se ao que se tornara de tão difficil execução por motivo da diversidade de vistas entre os ministros e da vacillação e desconfiança d'El-Rei. Demais a mais o desfecho parecia suscitar um contentamento geral, tanto quanto pelo menos era possivel esperar. A impressão commum era que, o Imperador renunciaria á successão e contavam os absolutistas que o fizesse em favor do irmão, uma vez prestada uma homenagem platonica á legitimidade. Era este o espirito que animava a deputação mandada ao Rio de Janeiro a render vassallagem ao soberano ephemero de Portugal.

Para o diplomata inglez o que importava essencialmente era o ponto de vista britannico. Nem seria preciso que lh'o tivesse ensinado Canning quando declarou, no decorrer das negociações relativas ao reconhecimento do Imperio brazileiro, que a Santa Alliança entendia intervir n'outros paizes no sentido de endireitar situações que lhe pareciam tortas, invocando para tanto os principios, mas que a Inglaterra só se deixava guiar pelos seus interesses. Occorria n'esse caso que o tratado de commercio com Portugal, que ia expirar em 1825, dizia sobretudo respeito ao Brazil, o qual consumia quatro quintos das exportações britannicas para o Reino Unido. A Inglaterra era portanto indispensavel que a situação se endireitasse.

Agora a Inglaterra achava a seu geito em Portugal um governo provisorio de todo sympathico á alliança subsistente entre os dous paizes, e para mais perfeitamente capaz de dirigir o barco do Estado sem appellar para uma intervenção estrangeira sempre odiosa, nem incorrer nas responsabilidades de uma escolha que fosse dictada por preferencias alheias, o que seria o caso se a representação britannica tivesse participado na organização da regencia. Accrescia que os collegas do embaixador, vendo-o tão fóra das intrigas, pelo menos na apparencia, pois que seus pareceres não podiam faltar ou então elle faltaria ao seu dever, não viam remedio senão se manterem quietos. A indifferença ou melhor dito a correcção do representante de Sua Magestade britannica não podia deixar de fazer impressão e agir como norma: alguns, mais impacientes, tiveram que morder o freio.

A regencia assim nomeada, não ao acaso mas ás pressas, parecia a Sir William A' Court a melhor de que se poderia haver feito selecção. A infanta, a quem cabia o voto de desempate, o conselho pronunciando-se por maioria, denotava, segundo elle, uma prudencia e uma moderação de todo ponto notaveis, sobretudo para uma pessoa que como ella fôra criada aos tombos dos dados. O patriarcha, D. Fr. Patricio da Silva, posto que sacerdote, monge agostinho calçado, que de uma humilde origem se elevara até o cardinalato, nutria antes opiniões liberaes e pelo menos toda a sua vida deu prova de uma atilada neutralidade. O duque de Cadaval trazia o contingente da sua alta nobreza e de uma invejavel popularidade que elle depois collocou ao serviço de Dom Miguel. O marquez de Vallada não passava em rigor de um cortezão ; mas era honesto e bem intencionado, o que já não é pouco. Finalmente — o resto do conselho era constituido pelo ministerio — o conde dos Arcos, veterano da administração brazileira, era dotado de talento e de energia e seria porventura o unico capaz de fazer frente á Rainha em caso de necessidade. O embaixador escrevia porventura, porque no seu fôro intimo duvidava que houvesse alguem vivo com semelhante ousadia.

Sir William A' Court n'ella enxergava o grande, o unico perigo, e escrevia a Canning que «a regencia derivará do facto de haver sido installada em vida do monarcha uma força e uma estabilidade immensas e talvez d'ahi lhe provenham valor e animo bastantes para resistir a qualquer tentativa da Rainha para apoderar-se do poder se por acaso ella n'isso pensar apoz a morte do marido »[3]. Dona Carlota Joaquina, procedendo com tino e com tacto, não se queixou todavia da sua exclusão humilhante, declarando-se antes satisfeita: parecia n'isto sincera e dizia-se de resto tão combalida que era facil acreditar que o seu temperamento buliçoso tivesse com isto soffrido na sua vivacidade. Sua calma forçada era uma garantia da do partido liberal adverso, na capital sobretudo, onde este tinha maior numero de adeptos.

Dona Carlota Joaquina tomou aliás como pretexto o ar vivo de Lisboa, sempre batida de ventos, para expressar depois de viuva o desejo de permanecer em Queluz, onde nos ultimos tempos a tinham de quarentena e sob vigia. Na sua companhia tinha a mais nova das filhas, a infanta Dona Anna de Jesus Maria, que Don Juan Valera conheceu em 1850 e a quem qualifica de «muy alegrita pero ya jamona »[4]; mas queria tambem ter comsigo as duas outras, o que não era comtudo possivel, pelo menos a regente, a quem suas funcções officiaes prendiam ao lado dos seus ministros e dos seus conselheiros. Não deu porem á filha de começo senão conselhos excellentes: não fazer mudanças de sopetão, desvanecer toda inquietação do espirito publico, extender sua protecção mesmo aquelles que a Rainha considerava seus maiores inimigos. Jogava a partida com a sua costumada intelligencia, reservando dentro d'alma para o filho idolatrado, cujo regresso não poderia ser muito postergado, a faina da limpeza que seria tambem a obra da vingança.

O embaixador britannico não podia acreditar no que via, maravilhado ante o espectaculo de tanta virtude, sempre pensando que a enfermidade era a razão da conversão, e tambem o abandono dos partidarios, pois, escrevia elle a Canning[5], não é do caracter portuguez (melhor diria do caracter de povo algum) « arriscar o quer que seja em favor d'alguem que corra o perigo de não viver mais bastante para galardoar os serviços prestados ».

A situação offerecia pois, na superficie pelo menos, um aspecto animador, mostrando-se as circumstancias de todo favoraveis á manutenção da paz interna. Concorriam para isto o apontado calculo, mesquinho e egoista, dos aproveitadores de mercès, a quem o estado de cousas proporcionava as melhores opportunidades; a extrema debilidade physica da Rainha, forte embora no espirito que não alimentava respeito algum posthumo, quer pelo marido, quer pelos seus feitos; a ausencia do infante, idolo popular; a auctoridade que á regencia emprestava o facto de haver sido nomeada ainda em vida d'El-Rei, embora esta vida fosse para alguns apenas official n'esse momento ; a presença no porto de uma divisão naval ingleza ; por fim a fraqueza dos ultra-liberaes, renegados pelos seus proprios correligionarios moderados. Sir William A' Court não professava por elles uma mui alta estima, julgando de facto seu recato filho da impotencia. Se a força estivesse como em 1820, do seu lado, elles teriam com certeza sabido agir e derivar proveito das perplexidades da successão, que os absolutistas não podiam deixar de procurar os meios de utilizar em favor das suas idéas e de quem as encarnava.

Esta obra entrou em domínio público no contexto da Lei 5988/1973, Art. 42, que esteve vigente até junho de 1998.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.
  1. Du complot contre le prince D. Miguel, infant du Portugal, ou introduction a l'histoire secrète du cabinet de Lisbonne, par un loyal Portugais. Pariz, 1826.
  2. Despacho de 9 de Março de 1826, B. R. O., F. O.
  3. Despacho de 7 de Março de 1826, B. R. O., F. O.
  4. Correspondencia, 1 (1847-57). N'outra carta de Lisboa assim se refere á infanta, duqueza de Loulé: «Debe haber sido hermosisima mujer, pero ya está estropeada asaz y algo arrugadilla».
  5. Despacho de 14 de Março de 1826. B. R. O., F. O.