Dom Pedro e Dom Miguel/Capítulo 4

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CAPITULO IV


Abdicaria Dom Pedro?


Não se tinha plena certeza em Lisboa do que Dom Pedro decidiria fazer : o que era positivo é que a enorme maioria do paiz era hostil á reunião das duas corôas, implicando a subordinação de Portugal ao Brazil. Os numerosos partidarios de Dom Miguel esperavam que os brazileiros obrigassem o seu Imperador a abdicar, fosse em favor do irmão, fosse em favor da filha, a quem o tio desposaria, ficando assim Rei como fôra Dom Pedro III casado com a sobrinha Dona Maria I. O conde dos Arcos, que passava por ser o confidente do principe de quem fora no Rio de Janeiro o conselheiro e o amigo, estava pelo contrario convencido de que o soberano brazileiro não desistiria da herança paterna.

A regencia entrementes procurava mais que tudo não mẹlindrar o sentimento geral, anti-brazileiro mais ainda do que anti-constitucional, com receio do partido militar, ou melhor dito, das tropas. Agia com tamanha prudencia que se não afoitava sequer a mencionar o nome de Dom Pedro IV nos documentos officiaes que se publicavam, de accordo aliás n'este ponto com o decreto assignado realmente ou não, conscientemente ou não, pelo defuncto Rei, e que dizia textualmente que aquella deliberação real serviria igualmente de norma para o caso em que aprouvesse a Deus convocal-o perante a sua santa gloria, até que providenciasse a respeito o legitimo herdeiro e successor da corôa».

Na sua intencional finura a phrase prestava-se senão a todas as interpretações, pelo menos a um duplo sentido e, considerada sob este aspecto ambiguo, levava com effeito a fazer crer que El-Rei não sabia mais muito bem o que fazia, pois que, se estivesse no pleno goso das suas faculdades, como hesitaria, quando estava prestes o fim e o temor da morte tinha dissipado todos os outros temores, pronunciar-se sobre um assumpto ácerca do qual nunca tivera em vida duas opiniões?

O ponto de vista do conselho de regencia era diverso e tendia a alcançar a meta da viagem navegando cautelosamente entre os baixios. O que lhe convinha era prolongar o seu termo de poder com as redeas em mãos de uma princeza de 25 annos, sem experiencia dos negocios publicos. A regencia, e n'isto se comprehendia quem a presidia, nenhuma pressa tinha em eclipsar-se e não quizera de modo algum proclamar Rei o successor legitimo antes de verificar se este se achava disposto a abdicar, como era por um motivo ou outro o voto geral do paiz.

A nota do duque do Infantado, ministro dos negocios estrangeiros da Hespanha, a J. Severino Gomes, representante diplomatico de Portugal, datada de Aranjuez a 2 de Maio de 1826, declarava que a Hespanha não intentava acto algum de hostilidade contra a regencia, limitando-se a aguardar o seguimento dos acontecimentos n'um fito de tranquillidade internacional ; ponderava porem com malicia que S. M. Catholica não podia observar as praxes de uma resposta sem que fosse mencionado o nome de Dom Pedro como o do Rei Fidelissimo. A ausencia d'esse nome, substituído pela designação imprecisa de legitimo herdeiro, não parecia a Fernando VII estar de accordo com o uso commummente adoptado para o reconhecimento de um novo soberano e principalmente de um governo provisorio que não podia nem devia agir sempre senão no nome do mesmo soberano. As credenciaes do conde de Casa Flores, enviado hespanhol em Lisboa[1], chegaram-lhe pelo meado de Junho e eram dirigidas a Dom Pedro como Rei de Portugal, Brazil e Algarves — o imperio independente do Brazil continuando assim a ser ignorado pela Hespanha, pouco inclinada a reconhecer a independencia das suas proprias colonias americanas.

Houve um curto periodo durante o qual, na phrase de Sir William A' Court, à coroa de Portugal esteve verdadeiramente sem titular (The crown is for the moment in abeyance). O embaixador contava a Canning que o general Lobo, feito conde de Alhandra, governador da cidade de Lisboa, respondera ao ministro da guerra que lhe transmittia instrucções: « Podeis contar commigo para tudo excepto para ajudar a fazer do meu paiz uma colonia do Brazil, ao que me opponho formalmente». A' Court observava que em qualquer outro paiz um representante da auctoridade que fizesse uso de tal linguagem teria sido preso ou pelo menos destituido das suas importantes funcções. «Aqui nada lhe aconteceu», e pela simples razão que aquelle era o pensar de quasi toda a gente. Nem possivel era que Dom Pedro não fosse impopular. O proprio embaixador britannico estava persuadido que, cedo ou tarde, Dom Miguel subiria ao throno independente de qualquer resolução de Dom Pedro. A seu juizo Portugal nunca se submetteria a receber ordens do Brazil, embora fosse por uma curta phase de tempo, assim como seria de todo impossivel que Portugal governasse de novo o Brazil como até 1808.

Poucos dias antes de cahir enfermo, Dom João VI recebera do Rio de Janeiro novas hem desagradaveis sobre o assumpto que tão intensamente o preoccupava ao ponto de converter-se n'uma obsessão. O Brazil tomara a mal o seu titulo imperial e a sua Carta Regia. A impressão fôra mesmo deploravel para a dynastia e o descontentamento produzido pela imprudente publicação em Lisboa do documento official que pretendia alforriar uma nação que por si mesma se havia libertado, proclamando altivamente a sua independencia, parecia dever compellir o Imperador a renunciar publica e explicitamente a corôa portugueza afim de fornecer uma prova indubitavel dos seus sentimentos brazileiros. O embaixador britannico inclinava-se a pensar que não seria isso um mal e queria parecer-lhe[2] que o governo de Lisboa «cada dia se chegava mais para aquella solução». El-Rei era o unico a persistir na sua idéa com toda sua obstinação mansa. Seus dias porem estavam contados, mas na vespera de accommettel-o a doença que o victimou ainda conversara a respeito com Sir William A' Court, a quem Porto Santo declarava por sua vez considerar em pleno vigor o tratado de 1807 e achar dispensavel qualquer appello á nação no sentido de sanccionar a ordem da successão que se não achava alterada.

O fallecimento de Dom João VI determinou o advento do regimen constitucional, o qual no seu reinado nunca teria sahido do estado nebuloso, ainda que elle responsabilizasse os alliados pela falta de cumprimento da sua promessa de uma Carta, não podendo contar com o apoio da. Inglaterra contra a opposição estrangeira porque n'esse caso se tratava da execução de um plano domestico, se bem que concernente ao bem estar e felicidade dos seus subditos, envolvendo portanto um interesse de ordem internacional e até humana. Era assim natural que o sustentasse o governo britannico, de cuja benevolencia tinha elle, no seu dizer, provas manifestas e perfeita consciencia. Não lhe convinha entretanto estar a cada passo a reclamar assistencia e ao expandir-se com o embaixador nas vesperas já de desapparecer: « Podeis certificar o vosso governo que fui sempre em favor d'algumas concessões no sentido constitucional e que persisto n'estes sentimentos. Se meus compromissos para com o meu povo não foram ainda levados a effeito, é simplesmente porque ainda não enxerguei até agora o momento propicio para satisfazel-os sem perigo »[3].

É verdade que um subdito inglez escreveu não muito depois[4] que foi por haver resistido aos que queriam iniciar o periodo das perseguições sangrentas contra os liberaes que Dom João VI foi votado á morte. Teria assim pago com a vida um acto de firmeza que estava pouco no seu caracter e que é tanto mais louvavel quanto elle não nutria grande affecto pelos processos constitucionaes, nem estimava seus principios mesmo no estado embryonario, cordialmente detestando toda e qualquer restricção da sua auctoridade patriarchal.

O plano dilecto d'El-Rei, de uma reunião de Portugal e Brazil, é que naufragou para sempre. Até nas idéas politicas havia antagonismo. O Brazil tendia a uma democracia dispersiva sob uma forma republicana federal. A nação portugueza era cohesa e, na phrase de Oliveira Martins[5], fundamentalmente realista. Não podia sel-o de uma forma aggressiva como a Hespanha, porque temia as complicações domesticas e estrangeiras que já havia entrevisto, e alem d'isso a nação estava esgotada e tinha fome. Ninguem por isso se ergueu no primeiro momento para combater a solução politica que fora preparada e apresentada como natural e logica. Todos de resto julgavam tirar d'ella proveito pelo gradual desenvolvimento das cousas.

A situação estava n'essa occasião em mãos dos liberaes moderados de que Palmella nos fornece o typo, e outros ainda mais moderados, os quaes esperavam do Imperador constitucional do Brazil uma Carta como a que á França tinham outorgado os Bourbons na volta do exilio. Os jacobinos, como eram conhecidos os revolucionarios de 1820, contavam á sombra d'aquella concessão do throno ás idéas novas, levar as cousas tão longe quanto então e acabar por estabelecer uma transacção formal entre a monarchia e a democracia. Os amigos do antigo regimen que constituiam a grande maioria, suppunham e não sem razão que o desfecho da abdicação de Dom Pedro seria a subida de Dom Miguel ao throno, reunindo-se os Trez Estados do Reino em vez d'essas Camaras de sabor cosmopolita, e providenciando sobre a manutenção das instituições tradicionaes e da religião na sua integridade e pureza que juntas compunham, esta e aquellas, o arcabouço nacional.

Quanto a Dom Pedro, tinha a sua idéa occulta: doar aos portuguezes as franquias politicas, essas liberdades de que elle começava pessoalmente a desilludir-se e afastar-se, para em troca obter o seu concurso positivo para a campanha do Sul, que tinha por premio a posse da Cisplatina e que o espirito pouco militarista dos brazileiros entretinha sem fervor. Quem sabe se de tal fraternidade d'armas, gerando glorias communs, não resultaria de uma maneira suave a restauração da federação luso-brazileira de 1816, sob a forma do dualismo devaneado pelo defuncto Rei?

O fito era desproporcionado ao esforço que seria ainda assim mistér empregar para attingil-o: era mesmo uma impossibilidade. Havia certamente liberaes que no Imperador descortinavam a realização do seu ideal politico, mas estes mesmos eram antes de tudo portuguezes e não podiam nutrir enthusiasmo pessoal por um soberano que deliberadamente desligara o Brazil da mãi patria. A' Court apreciava lucidamente a situação no seu despacho a Canning de 16 de Março de 1826[6]: «Se Dom Pedro cingir a corôa e por essa occasião, como é provavel, outorgar uma Carta á nação, congregará com certeza em redor de si temporariamente um partido muito poderoso, mas este partido mesmo, apoz grangear por elle a dadiva constitucional, terá a maior pressa em arrefecer a sua dedicação ao ponto de extinguil-a; sem contar que suscitará a inimizade da Rainha e dos seus partidarios, apoiados pela côrte de Madrid e muito provavelmente tambem das outras côrtes alliadas. O resultado definitivo da lucta, seja que a victoria caiba aos constitucionaes, seja que caiba aos absolutistas, não poderá ser senão a separação e a independencia[7]. Se a Dom Miguel tivesse a natureza dado menos violencia, não tenho duvida alguma de que seria agora mesmo proclamado Rei, apezar de todos os esforços contrarios do governo. Acontece porem que a recordação do seu comportamento apoz o 30 d'Abril de 1824 inspira receios a muitos que não são aliás em favor do regimen constitucional».

Urgia entretanto informar o Imperador do Brazil sobre as verdadeiras disposições do povo portuguez a seu respeito. Á delegação dos Trez Estados do Reino despachada para o Rio de Janeiro com o fim de notificar ao novo soberano sua subida ao throno cumpria desempenhar essa tarefa; mas não se sabia bem como fazel-o. A' Court admittia que «a necessidade manifesta de prescrever condições ao soberano ausente seria provavelmente uma fonte de grande embaraço para gente que até então não havia querido tentar sequer a mais ligeira diminuição da auctoridade real»[8].

A delegação embarcou com effeito sem que a sua missão tivesse sido delineada com precisão: levou comtudo instrucções para a hypothese de uma acceitação com a qual de antemão so contava. N'este caso deviam fazer-se os arranjos necessarios para a installação de uma administração inteiramente distincta para os dous paizes e para a preservação na sua plena integridade das leis fundamentaes da monarchia [9]. Isto equivalia quasi á abdicação, que se impunha, mas suscitava outros problemas de difficil solução, a começar pelo modus faciendi da transmissão do poder.

Porto Santo, por exemplo, já mudara de linguagem. A sancção das Côrtes parecia-lhe agora absolutamente necessaria, tratando-se de um salto na linha de successão. A ordem regular, de pai a filho, ia ser alterada e tornava-se precisa a approvação formal dos Trez Estados do Reino para que a mudança pudesse ser considerada valida e legal: sem fallar d'outra consideração que dava ao appello á nação um caracter imperioso e mesmo imprescindivel, a saber, o perigo de um pretendente que de futuro poderia invocar em beneficio dos seus titulos a omissão d'essa formalidade indispensavel[10]. Membro do conselho de regencia, Porto Santo estava convencido de que ella sossobraria inevitavelmente se Dom Miguel reapparecesse, pois, nas suas palavras a A' Court, pode ser que haja officiaes fieis a este estado de cousas, mas não existe no paiz um só soldado que não corresse immédiatamente a alistar-se sob a bandeira do infante[11].



Chegou a Vienna o rumor d'essas conversas diplomaticas ou adivinharam-nas. O facto é que Metternich recommendou ao encarregado de negocios da Austria em Lisboa, barão Pflügel, que se esforçasse por demonstrar ao embaixador britannico, a quem suspeitava de fazer para tal fim pressão sobre o governo provisorio de Portugal, a inconveniencia (A' Court escreve inexpediency) de uma reunião das Cortes em semelhante occasião. Acontecia porem que A' Court pensava exactamente não ser o momento conveniente para sua convocação, não possuindo sequer aquelle governo pelo seu caracter temporario as faculdades necessarias para levar a bom termo uma reunião «á qual faltaria a personagem principal[12], quer dizer o soberano. É este, ou seu representante, quem deve auctorizar e presidir a assembléa chamada a sanccionar as suas deliberações. Os poderes da regencia eram para conservar, não para innovar, ou alterar... »[13].

Ora, a antiga Constituição portugueza carecia de ser eliminada para assegurar a successão á filha de Dom Pedro, fundando uma nova legitimidade constitucional á sombra de uma Carta livremente outorgada pelo monarcha, o qual, forte do seu direito de primogenitura, mas disposto a transigir, cedendo do seu direito divino, chamaria a nação a partilhar da sua soberania. Essa transacção entre as idéas adiantadas e os sentimentos tradicionaes, sobre a base de uma monarchia representativa, fôra urdida no seio da franco-maçonaria, mas Dom Pedro não renunciava á gloria que lhe pertencia pelo papel desempenhado n'esse salvamento do throno, antes fazia absolutamente questão de ser acclamado como salvador das instituições e dispensador de franquias politicas.

Taes franquias não podiam ser por mais tempo postergadas. Dom Miguel não ficaria indefinidamente em Vienna e, ao lado do partido que lhe era abertamente hostil, composto sobretudo de gente culta, havia aquelle partido mais numeroso, formado de elementos neutros, que tinha medo d'elle e tinha principalmente medo dos methodos dos seus adeptos. O embaixador britannico calculava ser inevitavel um levantamento se antes da chegada do infante não tivessem sido concedidas algumas garantias, tanto ás liberdades da nação como á segurança pessoal dos nacionaes. A Dom Pedro cabia conceder taes garantias, e o meio que parecia mais simples e melhor indicado era o de servir-se do instrumento das antigas Côrtes do reino, cahidas em desuso mas não extinctas. Era portanto a desejar, no juizo do diplomata inglez, que, qualquer que viesse a ser sua decisão final, o Imperador conservasse a corôa tempo bastante para permittir aos Trez Estados que se reunissem sob sua auctoridade (in his name), não sómente para ratificar os arranjos relativos á successão da coroa como para introduzir as reformas e, uma vez concordadas, modelar as novas instituições ás quaes tinha que se adaptar o futuro governo do paiz. «Se se não offerecer um penhor qualquer d'esta especie em opposição ao temperamento violento e aos principios arbitrarios do infante Dom Miguel, receio que o seu regresso, quer como membro da regencia, como regente ou como rei, seja o signal de perturbações e de tumultos. Sua exclusão por mais tempo de toda participação no governo, determinaria provavelmente o mesmo resultado, se bem que n'este ultimo caso fossem outros os agentes da desordem»[14].

Em 1824, depois da Abrilada, fallara-se em Lisboa em solicitar das Côrtes uma lei de exclusão de Dom Miguel da successão da corôa, a que nem a Inglaterra assentiu, embora olhando de esguelha para a conferencia dos embaixadores em Pariz, na qual Pozzo di Borgo, despeitado com a possibilidade de instituições representativas em Portugal, argumentou que «a ordem estabelecida da successão n'um Estado monarchico não podia ser mudada sem offensa ao direito publico da Europa». Nem a Austria apoiou este modo de ver, mas pelo facto da revolta de Dom Pedro contra a mãi patria, Dom Miguel era n'esse momento considerado o herdeiro do throno portuguez[15].

Dom Pedro quereria bem dar arrhas do seu liberalismo, mas queria agir por si, sem o concurso das Côrtes. A opportunidade do seu acto não reuniu porem todos os suffragios. José Liberato Freire de Carvalho, cujo ardor constitucional não pode ser posto em duvida, pensa que se o Imperador não houvesse outorgado a Carta de 1826, o partido absolutista não teria tido a coragem de levantar a cabeça e contestar sua legitimidade. Dom Pedro andou pois mal porque se enganou. Apenas aquelle veterano da imprensa politica, monge transformado em revolucionario, esquecia na sua minguada sympathia por Dom Pedro e pelo seu gesto, preferindo a este a iniciativa popular, que toda a familia se julgava com titulos á corôa, mesmo a infanta regente.

O que Dom Pedro sempre mais acariciara era o plano de se não deixar atar as mãos. Já antes do fallecimento de Dom João VI o ministro d'Austria no Rio de Janeiro, barão de Mareschal, escrevia a Metternich[16] que «S. A. Real (a Austria ainda não reconhecera o Imperio) preferirá conservar Portugal para si emquanto puder; mas como procura dissimular este desejo, fará crer que apoia os direitos de sua mãi e de seu irmão, como meio seguro de trazer a questão suspensa sem ser forçado a manifestar-se». Logo porem que recebeu a noticia do obito d'El-Rei, a 24 d'Abril de 1826, entrou a desmascarar as baterias.

Mareschal correu de seguida ao paço de São Christovão. O marquez de Paranaguá, que lá se achava e era bom aulico, era de parecer que Dom Pedro não podia lesar os direitos dos seus filhos. Quanto ao Imperador, tomou Mareschal por testemunha de que sempre quizera renunciar a tal successão, mas que sua posição se tornara extremamente difficil, porque de um lado os brazileiros o incriminariam se tal não fizesse, ao passo que do outro lado, se o fizesse, se veria abandonado pelos portuguezes que tinham até então acompanhado sua fortuna na esperança de vel-o um dia cingir a corôa dos seus maiores. É verdade que a Constituição brazileira vedava toda união ou federação de paizes, mas o caso ahi era diverso, tratando-se de duas corôas a serem reunidas sobre a mesma fronte. Imperador e ministro pareciam portanto avessos a qualquer recusa e Mareschal informa que foi a seu conselho que Dom Pedro não mandou publicar na Gazeta official, juntamente com o necrologio paterno, uma exposição dos direitos do soberano do Brazil ao throno de Portugal.

No conselho d'Estado, a 25 d'Abril, discutiram-se os meios da preservação, se possivel, das duas corôas. Dom Pedro estava decidido a tanto, outorgando a Carta e mantendo a independencia reciproca das duas nações. Paranaguá achava que o Brazil andava por tal forma agitado que o Imperador poderia perdel-o e que n'esta eventualidade lhe ficaria Portugal: Mareschal julgava o marquez « um homem muito honrado», mas tão possuido de imaginação, o poeta primando o mathematico, que não se podia a gente fiar muito n'elle como politico. O marquez de Barbacena, como de costume, via as cousas mais claro e apontava para os inconvenientes e perigos da união, em flagrante contraste com as proprias declarações anteriores do soberano. Foi esta opinião precavida a que prevaleceu no conselho d'Estado de 28 do mesmo mez, cuja reunião foi tumultuaria, escreve o ministro d'Austria, conformando-se Dom Pedro em parte graças á então « viscondessa de Santos, que n'este negocio se mostrou uma brazileira muito decidida (très emportée) »[17].

Para amaciar o austriaco, o Imperador fallava no veto absoluto que a sua Carta comportaria, mas o diplomata arreceava-se da sua versatilidade de idéas e de vistas, assim como da de alguns dos seus ministros: o marquez de Caravellas, por exemplo, era nas suas palavras, « um jacobino de marca». Jacobino no seu conceito seria todo e qualquer liberal.

A abdicação appareceu logo depois e a Mareschal se afigurou que com grande aprazimento de Dom Pedro. «Não é possivel, escrevia elle ao chanceller, fazer mais graciosamente um maior sacrificio... Não voltei ainda a mim do espanto de ver a facilidade com que S. M. (Mareschal já muito protocollarmente lhe dava o tratamento de Magestade porque Dom Pedro era Rei demissionario) tornou atraz da sua primeira deliberação, que era absolutamente a de ficar com tudo. O que o levou a recuar foi o raciocinio externado pelo partido brazileiro de que, acceitando, viraria contra si todos os argumentos de que ha trez annos se servia. Com effeito, tendo mesmo em vista suas ultimas proclamações da Bahia, se sente toda a difficuldade em que o collocou a linguagem pouco commedida dos seus actos e proclamações. Como quer que seja, todos parecem satisfeitos e eu não penso aventurar muito ao dizer que por meio d'este acto a posição de S. M. na America se robusteceu e ficou mais estavel. Se era pois desejavel o estabelecimento de uma grande monarchia no Novo Mundo, não pode senão ser approvado aquillo que encerra a vantagem de consolidal-a. Tal é pelo menos, meu principe, a opinião muito geral aqui, mesmo entre o partido portuguez, o qual sente commummente que a sua situação se tornou mais assegnrada».

Mareschal julgava que a abdicação imperial dera o derradeiro golpe no partido republicano brazileiro.
D. Miguel I

Esta obra entrou em domínio público no contexto da Lei 5988/1973, Art. 42, que esteve vigente até junho de 1998.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.
  1. O governo hespanhol quizera dar por successor a Casa Flores o general Auduaga, de quem A'Court escrevia, em despacho a Canning de 10 de Julho de 1826, que «era em demasia conhecido para que lhe fosse mistér dizer algo a respeito. Tinham-no evidentemente escolhido como pessoa capaz de emprehender qualquer cousa, não tendo nem credito nem reputação que perder. Estava talhado de feição a ser posto para a frente n'uma occasião semelhante se a Hespanha realmente nutria o projecto de tentar provocar a resistencia ás ordens do Imperador». O governo portuguez protestou contra a nomeação de Anduaga, o que levou o gabinete de Madrid a mudar de parecer.
  2. Despacho de 27 de Fevereiro de 1826, B. R. O., F. O.
  3. Despacho de 4 de Março de 1826, B. R. O., F. O.
  4. Narrative of the persecution and imprisonment in Portugal of William Young Esq. Londres, 2. ed., 1833.
  5. Portugal Contemporaneo, vol. I.
  6. B. R. O., F. O.
  7. O embaixador queria certamente dizer a consagração da independencia.
  8. Despacho a Canning de 21 de Março de 1826, B. R. O., F. O.
  9. Despacho de A'Court a Canning de 28 de Março de 1826, B. R. O., F. O.
  10. Despacho de A'Court a Canning de 7 d'Abril de 1826, R. R. O., F. O.
  11. Despacho citado de 7 d'Abril de 1826.
  12. Sir William escrevia feature (traço).
  13. Despacho de 26 d'Abril de 1826, B. R. O., F. O.
  14. Despacho de A' Cort a Canning de 2 de Junho de 1826, B. R. O., F. O.
  15. Harold Temperley, Canning and the Conferences of the Four Allied Governments at Paris, 1823-1826, na American Historical Review de Outubro de 1921.
  16. Despacho de 13 de Fevereiro de 1820, no K, a. K. Hans., Hof, und Staatsarchiv de Vienna.
  17. Despacho de Mareschal a Metternich de 4 de Maio de 1826, no Archivo de Vienna.