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Dom Pedro e Dom Miguel/Capítulo 5

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CAPITULO V


As atribulações e ambições de Dona Izabel Maria


Logo que El-Rei expirou, no primeiro accesso da sua dor, ou pelo menos na primeira emoção, pois que o bondoso Dom João VI foi afinal defuncto sem choro, a infanta Izabel Maria fallou afogueada em escrever para Vienna ao mano Miguel para que voltasse sem tardança. Era seu mais vivo desejo vel-o ao pé de si, sem mesmo ter que lhe passar aquelle tão arduo encargo que as circumstancias faziam pesar sobre a sua fraqueza. O embaixador da Grã Bretanha e o encarregado de negocios d'Austria, n'este ponto de accordo, mostraram a Porto Santo quanto a execução d'esse pensamento encerrava de arriscado para o paiz e até de desagradavel para o banido, o qual se acharia na sua patria e na côrte sem uma situação definida, ou antes n'uma posição falsa, pois que a questão da successão não fora ainda regulada com os problemas annexos. Porto Santo abundou nas mesmas idéas[1] e apressou-se em expedir o assentimento que justamente Metternich solicitara para que Dom Miguel, virtualmente um prisioneiro d'Estado, pudesse emprehender n'essa primavera uma digressão pela Austria e pela Bohemia[2].

Ao mesmo tempo o ministro dos negocios estrangeiros da regencia escrevia a Villa Secca, ministro de Portugal em Vienna, no sentido de obstar ao regresso do infante. «O governo que acabava de estabelecer-se não tinha ordens que dar a S. A. Real, mas fiava-se no seu bom discernimento, aventando se não seria infinitamente mais prudente esperar até estar certo da sua verdadeira posição do que se precipitar para Lisboa quando tudo ainda ahi se achava tão embrulhado». Seus interesses particulares nada soffreriam com isso, pois que a Casa do Infantado que elle herdava e que era uma fundação creada em 1654 em beneficio dos filhos mais novos do soberano, já fôra collocada sob uma administração separada.

A infanta Izabel Maria aliás cedo tomou gosto pelo poder. Os funeraes do Rei tiveram lugar a 15 de Março: a 16 as princezas foram a Queluz passar o dia com a mãi e no dia immediato mandava a regente pedir a Sir William A' Court que viesse vel-a immediatamente, porque tinha muito para lhe dizer. Ao transmittir este desejo ao embaixador, Porto Santo adiantava que se tratava de um pedido de tropas inglezas.

Deplorando que a cordialidade se não restabelecesse entre os membros da familia real, o que podia vir a constituir uma ameaça para o socego publico, narrou o embaixador a Canning que encontrara a infanta muito inquieta e agitada. Sua entrevista na vespera com a Rainha, permitindo-lhe sondar a profundeza da ambição de sua mãi, lançara o alarme no seu espirito. Dona Carlota Joaquina nada lhe dissera de natureza a revelar despeito ou a despertar suspeitas; mas era justamente a affectação de humildade a proposito da sua exclusão forçada do governo que inspirava temores. Dona Izabel Maria já tinha 25 annos e conhecia em demasia a mãi para deixar-se embair pelos seus modos, dulcifluos em certas occasiões. A Rainha aspirava a afastar sua filha das funcções que lhe tinham sido confiadas e governar Portugal, quando não directamente, por intermedio do filho Dom Miguel, cuja volta devia ser urgentemente reclamada. Em Madrid o infante Dom Carlos, irmão de Dona Carlota Joaquina, mostrara-se exasperado ao saber da exclusão e solicitara a prompta invasão de Portugal afim de se endireitarem as cousas, sendo restabelecida a legalidade[3].

A Rainha sómente fallou á filha em fazer-se inserir na Gazeta de Lisboa um artigo eximindo-a de toda responsabilidade na eventualidade de uma revolução, que ella certamente estava preparando ou pela qual fazia votos. Tambem mencionou a vantagem de serem despedidos alguns dos ministros; mas a regente protestou não querer modificar o governo que fora o do pai e procurar conserval-o até a proclamação do novo soberano. O deposito que do defuncto Rei, recebera in articulo mortis era-lhe tão caro quanto sagrado, e seu dever consistia em corresponder aquella suprema confiança com toda sua lealdade e gratidão, aguardando o bel prazer do irmão Dom Pedro, a quem era sincera e ternamente dedicada.

As difficuldades contra as quaes tinha que luctar eram muito grandes, sobretudo a indisciplina e desorganização do exercito, que o interesse levaria a tudo (which might now be moved by interest to anything)[4]. E como a Rainha ia receber de herança a quantia consideravel de dous milhões e meio de cruzados (mil contos)[5], poderia dispor á vontade de dinheiro com que subornar as tropas e com ellas provocar uma revolta. Se as tropas inglezas não podiam acudir em protecção da regencia, faltando o motivo de um ataque estrangeiro, que ao menos — suggeria Dona Izabel Maria — viesse lord Beresford pôr os assumptos militares em bom feitio[6].

Segundo a infanta[7], Cadaval era um timido, Porto Santo um condescendente e Arcos apenas lhe prestava serviços. Ella transmittia estas impressões a Sir William A' Court — « com mais sagacidade e penetração do que prudencia », commentava este, ajuntando que a mesma falta de prudencia caracterizou a parte da conversa relativa ás suas relações de familia. As irmãs em Madrid não mais lhe escreviam e o que sobretudo a atormentava era a Rainha, decidida, segundo parecia, a mudar-se para o palacio da Ajuda e já tendo dado ordens para cerrar a pedra e cal a passagem que levava aos aposentos das infantas. Dona Carlota Joaquina gostava de estar á vontade e occultar, no dizer das más linguas, suas patusçadas, pelo menos das filhas. A imaginação da joven regente evocava porem perigos d'outra especie.

Porto Santo, que esperava na ante-camara o fim da entrevista com o embaixador, estava consternado (extremely low and out of spirits, escrevia Sir William) com o aspecto que tomavam as cousas e amargamente se queixou das intrigas que sobretudo fervilhavam na roda da regente e em que figurava como principal personagem o conselheiro Abrantes. Esses enredos, tudo adulterando e tudo aggravando, semeavam a desconfiança e abririam a discordia entre mãi e filha, arrastando o Estado sabe Deus para onde. O ministro sentia-se impotente para os desmanchar e fallava em demittir-se, procurando entretanto desculpar a Rainha, a qual não podia seguramente inspirar confiança, mas era forçada a moderar seus actos em vista do seu estado de saude, se bem que a infanta Izabel Maria pretendesse que ella exagerava a doença[8]. A medida que se restabelecesse poderia ir ficando menos razoavel ou então... quando o filho estivesse alli ao seu alcance como o instrumento de cevar seus rancores. Intelligente como era, Dona Carlota Joaquina sabia que esse instrumento lhe era indispensavel para chegar a seus fins: a primeira cousa para produzir uma explosão é a mecha.

As suspeitas da regente acalmaram-se um pouco pela continuação e, conforme sua confissão ao embaixador por occasião da audiencia para a apresentação official das condolencias de S. M. Britannica, ella adoptou um modus vivendi, entregando á mãi a plena direcção do paço, mas não transigindo quanto ás suas attribuições e reservando-se exclusivamente a decisão de tudo que se prendia com as questões politicas. A darmos fé ás queixas dos seus conselheiros, ella ia demasiado longe n'essa reserva, dando-se ares de soberana. O Dr. Aguiar partira para o Rio de Janeiro no intuito de persuadir Dom Pedro de renunciar em favor da irmã se sua resolução imperial fosse a de abdicar a coroa real. Wellesley soube d'este projecto em Vienna, onde era embaixador, transmittindo a informação a Canning a 12 de Maio, e Porto Santo teve que o declarar exacto, quando A' Court o interpellou a respeito.

Na verdade não só as facções extremas, mas todos os partidos pretendiam tirar proveito da situação confusa que se apresentava. Os liberaes preferiam muito naturalmente Dona Izabel Maria a Dom Miguel. Havia mesmo no seu numero os que a preferiam á princezinha do Grão-Pará, promettida ao tio já antes do fallecimento de Dom João VI, porque é preciso ter em mente que a iniciativa d'esse fallado matrimonio não coube a Metternich, o qual apenas fez adoptar uma idéa que encontrou formulada e assente. A esse tempo não se tratava absolutamente da abdicação de Dom Pedro, cujo ensejo ainda se não offerecia, e aquelle casamento de familia poderia não constituir mais do que uma solução eventual para o futuro. Com o designio persistente de arredar Dom Miguel do throno na cathegoria de consorte que fosse, surgiu um momento a idéa de dar por marido a Dona Maria da Gloria o infante Dom Sebastião, filho da princeza da Beira, viuva do infante hespanhol Dom Pedro Carlos, fallecido no Rio de Janeiro.

A realeza de Dona Izabel Maria simplificava as cousas do lado liberal, mesmo porque, como escrevia A' Court a Canning,[9] «o nascimento do herdeiro do imperio brazileiro (o futuro Dom Pedro II) era considerado em Lisboa como de natureza a facilitar os arranjos relativos á successão, suppondo-se que o Imperador não mais se opporia a mandar a primogenita ser educada em Lisboa como a futura esposa de Dom Miguel e succeder opportunamente na regencia ou na corôa consoante o caso (as may hereafter happen) ».

A regente entretanto queixava-se de que a queriam reduzir a zero, dissimulando-lhe os negocios de importancia e exigindo sua assignatura em papeis de que ella não approvava o theor. O proprio Arcos mudara depois que reconhecera certa inclinação das cortes européas continentaes por Dom Miguel que de começo apenas se podia presentir. De facto ao que A' Court relatava[10], a França a principio tendeu para a abdicação immediata do Imperador em favor de Dom Miguel, de preferencia a uma abdicação futura em favor de Dona Maria da Gloria, dando como razão o inconveniente e perigo d'uma regencia. É verdade que o encarregado de negocios d'Austria recebera instrucções para adherir em tudo e por tudo aos passos de A' Court (follow my stèps, escrevia este) no espirito de apoiar a regencia, declarando se viesse a dar-se sua queda (overthrow), que cessavam seus poderes e funcções uma vez que o embaixador britannico julgasse a proposito dar-lhe o exemplo.

Com vistas a agradar ao infante proscripto, o conde dos Arcos chegara até a propor no conselho de regencia que fosse levantada a pena de banimento decretada contra o marquez d'Abrantes — «o proprio que sem a menor duvida (beyond all doubt) assassinou o marquez de Loulé no palacio real de Salvaterra, quasi na presença d'El-Rei»[11]. Cadaval ia no encalço de Arcos e deixavam-na só — dizia Dona Izabel Maria ao embaixador britannico. Por seu lado o conselho queixava-se de que a infanta quizesse assumir as faculdades de unica encarregada da regencia, induzida a tanto por uma camarilha que lhe propinava idéas revolucionarias e azedava suas desconfianças de certas pessoas da familia, ao mesmo tempo que abusava da sua inexperiencia para extorquir dotações, quando a politica que se impunha era a das economias.

Era por taes meios, no dizer dos criticos da regencia, que a infanta merecera as sympathias dos ultra-liberaes e se tornara sua escolhida. Estaria ella porem de connivencia com elles? A' Court responde que «se bem não esteja de modo algum provados seu accordo com os enthusiastas da sua elevação ao throno e sua approvação d'este plano, difficil é de acreditar que o desconhecesse »[12]. O embaixador de resto envolveu-se no assumpto, ao que affirma para extirpar o mal. Decidiu Porto Santo a não abandonar suas funcções e auctorizou-o a communicar officiosamente (provately) ao conselho de regencia, em presença da infanta, que o governo britannico tivera conhecimento d'esses planos secretos, e mesmo do despacho para o Rio de Janeiro do emissario incumbido de intrigar Dom Miguel junto a Dom Pedro; mas que esperava que a regencia tomaria as providencias necessarias para impedir taes projectos de adquirirem consistencia[13].

Immediatamente depois[14] o diplomata inglez procurou desculpar a infanta innocentando-a mesmo de cumplicidade passiva: sua unica culpa teria sido não haver repellido com sufficiente indignação as allusões destacadas (loose hints) occasionalmente enunciadas pelos aduladores que a cercavam sobre a possibilidade de se produzirem circumstancias que teriam eventualmente trazido a corôa a pousar-se sobre a sua fronte. Teria pois havido exagero nos boatos, consequencia dos tempos turvos e das insidias que de todos os lados brotavam. O que se pode aventar sem recear desmentido e sem formular juizo temerario é que não teria desagradado á infanta ver realçada sua dignidade, o que é aliás naturalissimo, tanto mais quanto as cousas não podiam ficar assim. Nas palavras de Sir William A' Court[15], «será summamente difficil, quando não impossivel, conservar por mais tempo o infante Dom Miguel na inacção e exclusão a que se acha presentemente condemnado; mas a sua volta e a elevação ao poder que d'ahi resultará, na qualidade de regente ou na de Rei, não deixariam de ser acompanhadas de perigos ».

O embaixador de Inglaterra não era, como se lhe exprobrou em vida e como ficou a lenda, um franco partidario de Dom Miguel. Encarava a situação com bastante imparcialidade, moderação e bom senso, servindo do melhor modo possivel a politica do seu paiz, a qual com Canning ou outro qualquer nunca perdia de vista o lado utilitario, sacrificando-se no altar do altruismo internacional. Na sua correspondencia tratava apenas A' Court de persuadir seu chefe, se mistér era, da facilidade com que as facções oppostas ateariam o fogo em Portugal, e mostrava-se convencido de uma cousa que só peccava pela verdade e em que concordavam quantos observavam os negocios de Portugal, a saber, que era impossivel ahi estabelecer um governo estavel mediante uma regencia sem que Dom Miguel n'ella occupasse o primeiro posto.

Dona Izabel Maria deixou de pensar em ser rainha (se é exacto que d'isso tivesse jamais cuidado a serio) para pensar em continuar a exercer a regencia. A' Court acabou por admittir e transmittir que a considerava pessoalmente incapaz de acariciar um designio incompativel com os direitos dos que possuiam titulos legaes para terem sobre ella a precedencia em materia de successão. Por sua vez o conselho serenou-se e houve desde então nova razão de esperar que nada pelo menos perturbaria seriamente a nação até ser conhecida a deliberação de Dom Pedro.

Que esta deliberação reabriria o campo das intrigas e forneceria a cada partido o ensejo de experimentar suas forças era fatal. No decorrer da audiencia concedida ao embaixador britannico[16], na qual Dona Carlota Joaquina fallou pouco e vagamente na successão da coroa, deixando arteiramente pairar duvidas sobre suas verdadeiras intenções, observou ella incidentemente que a ausencia de tumultos era quasi um milagre, mas que elles estalariam quando a decisão do Imperador-Rei fosse promulgada, pois «o paiz estava cheio de mações e de pessoas de maus bofes (evil minded), ainda que o povo tivesse boa disposição e o exercito tambem, excepção feita d'alguns officiaes, o que a tranquillizava quanto ao resultado (she was not all uneasy about the result)». Poderia ter ajuntado que ella se encarregaria d'isso.


Esta obra entrou em domínio público no contexto da Lei 5988/1973, Art. 42, que esteve vigente até junho de 1998.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.
  1. Despacho de A' Court a Caming de 14 de Março de 1826. B. R. O., F. O.
  2. Despacho de A Court a Canning de 16 de Março de 1826, B. R. O., F. O.
  3. Despacho de A'Court a Canning de 27 de Março de 1826, B. R. O., F. O
  4. Despacho secretissimo e confidencial de A' Court a Canning de 19 de Março de 1820, B. R. O., F. O.
  5. No seu despacho de 8 de Jula de 1826 escrevia A' Court que o calculo da infanta era exagerado, não indo o acervo do fallecido Rei alem d'esta somma (1. 200,000). O conde da Povoa, um dos commissarios encarregados do inventario, asseguron ao embaixador, que acreditou a sua palavra, não haver mais do que 250 contos (L. 50,000) em moedas e barras d'ouro, muitas areas que se suppunha cheias estando de todo vazias. O valor das joias não estava ainda orçado.
  6. O conselho de regencia, consultado a respeito no mesmo dia, achou desejavel mas não urgente o regresso da antigo commandante em chefe do exercito portuguez, preferindo aguardar a decisão do soberano, a menos que outra resolução não fosse aconselhada pela apparição de circumstancias imprevistas.
  7. Despacho citado de 19 de Março de 1826.
  8. Despacho citado de 19 de Março de 1826.
  9. Despacho de 20 de Fevereiro de 1826, B. R. O., F. O.
  10. Despacho de 26 d'Abril de 1826, B. R. O., F. O.
  11. Despacho secreto e confidencial de 29 de Maio de 1826, B. R. O., F. O.
  12. «Tough it is by no means proved that she has given into the project it is difficult to believe that she can have been wholly unacquainted with it».
  13. Despacho citado de 27 de Maio de 1826.
  14. Despacho secreto e confidencial de 2 de Junho de 1826.
  15. Despacho citado de 2 de Junho de 1926.
  16. Despacho secreto e confidencial de 23 de Junho de 1826, B. R. O., F. O.