Fantina/XX

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Estavam os dous á mesa do almoço quando Fantina entrou com a carta do Zé de Deus. Mastigando um pedacinho de frango, ella foi abrindo a carta e começou a ler. A paixão pelo rapaz que lhe caiu d'olho fazia-a descrente ; por isso dando uma risada frescalhona disse a Frederico :

— Já viu o que aquelle compadre das duzias falla do senhor ?

— Não ; disse Frederico, percebendo a enleada.

— Eu leio. Vejam só até onde vai a insolencia. E começou a leitura da carta nos seguintes termos :

« Illustrissima minha respeitavel comadre, senhora D. Luiza Ferreira da Silva.»

« Que minha comadre e toda família que habita o Ingaseiro tenham passado bem, é o que de coração desejo.

« Minha comadre, o negocio cuja importancia me obrigou a dizer-lhe a presente, é magno ! isso juro pelas cinzas do mestre que me ensinou a ler e escrever, sem o que seria um burro.» Frederico ria torcendo o bigode violentamente e cravava os olhos no semblante de D. Luzia.

« Como minha comadre sabe, eu quando vinha de Sorocaba com a mulada, encontrei no arraial do Rabicho um homem que me fez certo serviço, que não posso deixar de reconhecer ; mas esse mesmo homem é o Sr. Frederico que mora em sua fazenda. Eu não sou homem interesseiro. Quero é fazer com que a comadre fique com a pulga atraz da orelha ; porque outro dia nada lhe convenceu. Hoje, porem, em vista do que vou contar, ninguém duvidará da verdade. A comadre me refusou para marido—o que nunca esperei—porque sou um homem solteiro. E isto só para gostar do Sr. Frederico, que não tem haveres, como eu, e é um desconhecido. Este Sr. Frederico é jogador e barganhista ; aqui mesmo elle já passou uma manta no José da Trindade, ficando com quatro éguas por um burro velho e manhoso, e também já ganhou ciucoenta mil réis do Sancho da venda.

« Na noite da festa do Divino esse senhor pintou o sete e rebocou e Simão ! « Fugiu de sua casa, minha comadre, lá pelos fundos, de noite, e esteve n'um catereté á rua do Carvão com umas perdidas. Tocou viola como um bebado, deu muitas umbigadas e cantou coisas porcas. O Chico Valamier sahiu furioso porque elle botou uns versos sujos n'uma mulher casada de poucos dias. Sapateou na sala com muito barulho, dando castanholas e berrando :

Caxorrinho está latindo
Lá atraz do limoeiro ;
Cala a boca, caxorrinho,
Não sejas mexeriqueiro

D. Luzia parou um pouco, vermelha e despeitada ; olhou para Frederico que estava desapontado e com um sorriso estupido morrendo no canto da bocca.

—Está vendo que homem ?

Elle é um doido, minha senhora ; estava ebrio quando escreveu.

O diabo suppoz os outros por si, mas tudo eu deixo para a senhora julgar.

—Ah ! fez D. Luzia perturbada ;— eu não faço essa idéa do senhor, Deos me livre ; tudo é falso. Elle teve o desaforo de pedir-me a mim em casamento e eu respondi-lhe com uma risada, por isso enfureceu-se. Esta é a causa.

— Inda bem que com a senhora os intrigantes não tiram palhinha.

— De certo.

E limpando muito a garganta continuou a leitura :

« Deu bordoadas em muitos, escararauçou o resto ; apagou as velas de cebo e ficou no escuro com as quatro marchadeiras daquella rua.

Um homem deste jaez não lhe serve porque desmoralisou-se em poucos dias.»

D . Luzia esteve um pouco no ar ; mas os desejos, o amor que sentia pela musculatura athletica de Frederico faziam com que pendesse o seu animo para o amante accusado e se enraivecesse contra o Zé de Deos.

Depois chamou Fantina e perguntou quem fora o portador da carta. D. Luzia sabendo ser Daniel ordenou a Fantina que o mandasse entrar.

—Nhé-nhá está chamando, Daniel.

—Para que Diabo será ?

—Não sei ; ella perguntou-me quem era o portador e eu disse.

—Estão com muita raiva do Zé de Deus ?

—Não. Leram a carta e até riram.

— Pois olha que aquella carta tem coisa !

E entraram.

D. Luzia palitando os dentes mostrou a Daniel uma cadeira.

— Então, que foi que entrou na cabeça daquelle homem, Daniel ?

— Eu nada sei, madrinha ; fui o portador porque vinha para aqui.

Daniel interiormente gostava dos ataques contra Frederico ; mas era vista das risadinhas de D. Luzia e das chalaças de Frederico, descoroçoou.

D. Luzia nada deixou de dizer, e mostrou que o compadre era um grande miseravel. Um homem barbaro para os escravos, que viviam famintos, leprosos e mulambentos. Prendia-as no tronco por furtarem uma rapadura. Punha gancho nelles, algemas e batia muito.

Chegava a pontos, dizia D. Luzia admirada, de mandar amarrar uma creoula no cabeçalho de um carro, pô-la deitada de bruços, com as pernas unidas e presas; os braços passados por baixo e núa. Ainda mais, á vista dos negros mandava o feitor dar com um molho de taquara quiçè nas nadegas que em poucos minutos dissolviam-se. Alliviada esta scena, ouviamse outros gritos. Era o Zé de Deus, em pessoa que un'm canto do terreiro mexia em um formigueiro de ava pés e fazia uma creoulinha, ás vezes de quartoze annos, sentar cora as saias levantadas sobre o formigueiro assanhado.

— E' um monstro, D. Luzia ; fallava Frederico muito convicto.

D. Luzia continuando a narrativa sobre o Zé de Deus, disse, que elle possuía dois munjolos que socavam sabugos de milho ; e que tendo grande laranjal, alimentava os negros tres, quatro mezes com angú e laranjas.

O próprio Zé de Deus é que tomava conta das chaves, e recebendo o fubá do milho e do sabugo, fazia angu deste e vendia aquelle.

— De um homem que lambe o beiço das negras em dias de moagem para ver si ellas chuparam cannas, nada merece credito.

— De certo, concluia Frederico.

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