Fantina/XXV
A tarde cahia tristonha, e o ar doente da luz que morria despertava desejos de festas, de dansas, de pandegas.
D. Luzia antes queria ter acompanhado Frederico á cidade.
O latido preguiçoso de um cão perto da porteira annunciou a chegada de Daniel. Fantina sentada no angulo da varanda levantou-se logo que o vio. Estava com saudades delle e recordava-se dos sonhos que tivera durante as longas noites em que suas companheiras cabeceiavam fallando dos caxeiros e do Antonico. Quando Daniel subia a escada D. Luzia disse :
— Pode entrar, seu ingrato. Por onde tem andado tão somido que ninguém lhe põe a pista ?
— Por ahi mesmo, madrinha.
Sob os olhares de D. Luzia nem a mão Daniel dava á Fantina.
— Adeus Fantina, adeus seu Daniel, nisso cifravamse as saudações.
— Vindo da cidade, madrinha, o Zé de Deus entregou-me esta carta para lhe dar.
D. Luzia admirou-se do compadre escrever-lhe depois das scenas passadas, mas foi logo rasgando o papel para ver o conteudo.
Emquanto D. Luzia decifrava os hieroglyphos do compadre, Daniel com olhos de coelho adormecido interrogava o semblante de Fantina que sorria-lhe.
Para Fantina o olhar de Daniel tinha um fluido doce que a punha n'um estado morbido. Suas vistas desconfiadas de ciume interrogavam os ricos contornos de Fantina acerca de Frederico. Procurava ler nas veiasinhas da mão delia quantas palpitações aquelle coração que considerava feito de amor, alvorada e leite, tivera por elle, que a adorava com os ardores viris do sentimento acrisolado, e com os impetos celeres de uma carnalidade selvagem.
— O compadre Zé de Deus é um patusco ;— disse D. Luzia rindo e pondo a carta sobre os joelhos.
Daniel achou prudente concordar, por isso, meneou a cabeça affirmativameate. O Zé de Deus derreteu-se na carta em pieguices de um sentimentalismo tolo ; tinha porventura esperanças de supprir alguma falta.
Estava D. Luzia, pois, resolvida á convida-lo. Queria ve-lo dançando o fandango na sala grande da fazenda em voltas bruscas como o cão envenenado com o pello da taquara quicé.
Sabendo que Daniel ia no dia seguinte ao Ribeirão, ella levantou-se e foi responder a carta. Fantina fez o mesmo ; mas Daniel lançou-lhe um olhar tão magnetico e supplicante que da porta, ella prometteu voltar.
Uns desejos dengues, cheios de calor, de beiços rubros, queriam juncto de si a carinha fresca e tenra de Fantina.
Havia agora em Daniel uns presentimentos vagos como os vôos da gaivota por cima de um lago.Grande era o desejo|de abraça-la, beija-la,e muito e todos os dias.
Logo que D. Luzia começou de escrever, Fantina, do vão da porta da sala, fez signal para elle espera-la na porta do quarto de Frederico. Assim como o gavião paira nas nuvens, desviando-se das fumaradas da queimada, e, tremente, colhe as azas e sibilla no ar como uma bala, e vae alevantar nas unhas a magnetisada jararaca que fugia das chammas crepitantes, Daniel correu para o logar indicado. Não tardou muito, Fantina appareceu toda medo, com o coração batendo muito, e cahiu nos braços delle que cingiu-a ao peito como a giboia que prende o inexperto novilho á beira das lagòas.
— Oh ! Daniel, assim não ! podem nos ver. Deixa-me por amor de Deus, e empurrava-o.
Mas elle refreando-se, atando ao rochedo da razão os desejos doidos que o feriam, soltou-a, pedindo-lhe que abrisse os olhos com Frederico, que era homem perigoso. Um barulho de chaves lá dentro separou-os como ura tiro n'um bando de pombos torcaes.
Já fei com a claridade da lua que se mostrava muito pallida, muito anemica, que Daniel cavalgou pela estrada de sua casa.
D. Luzia voltou á varanda e distrahida contemplava uma porção de creoulinhos que brincavam no terreiro. Com o pensamento concentrado naquelles animaes domesticos, ella considerava a sua fortuna crescente, mas logo uma sombra negra como a desgraça a enlutava.
O nome de Rio Branco passou-lhe pela mente como um condemnado de Dante. Tremia, fazia promessas ao Senhor Bom Jesus de Mattosinhos de Congonhas do Campo, para que Rio Branco nunca realizasse sua idéa. Concorreria com vinte contos se alguém pudesse burlar o plano gigante.
D. Luzia foi educada no collegio de irmans, mas não primava pela caridade ; pois não se compadecia dos miseros párias condemnados do berço ao supplicio dos ganxos e das algemas.
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