Felicidade pelo casamento/V
Entrando para o meu quarto levava o espírito ocupado de reflexões contrárias, umas suaves, outras aflitivas.
Ao mesmo tempo que me parecia poder assenhorear-me do coração de Ângela, dizia-me, não sei que demônio invisível, que ela não podia ser minha porque já era de outro.
Esta dúvida era pior que a certeza.
Se eu estivesse certo de que Ângela amava Azevedinho, sentiria, de certo; mas o amor, apenas começado, devia ceder ao orgulho; e a idéia de que não devia lutar com um homem que eu julgava moralmente inferior a mim, acabaria por triunfar em meu espírito.
Deste modo uma paixão má, um defeito moral, traria a antiga fé ao meu coração.
Mas a incerteza, não; desde que eu entrevia uma probabilidade, uma esperança, acendia-se a paixão cada vez mais; e eu acabava por dispor-me a entrar nessa luta tenaz entre o homem e a fatalidade dos sentimentos.
Mas poderia Ângela adivinhá-lo? Aquela moça, filha de um homem sisudo, educada aos cuidados dele, mostrando ela própria certa elevação de sentimentos, e, até certo ponto, uma discrição de espírito, poderia amar a um rapazola vulgar, sem alma nem coração, frívolo como os divertimentos em que ele se comprazia?
Se por um lado isto me parecia impossível, por outro eu me recordava do muito que era e do pouco que vira; recordava-me do que comigo mesmo sucedera e desanimava com a idéia de que tão boa pérola fosse engastada em cobre azinhavrado e vulgar.
Nesta incerteza deitei-me e levei parte da noite sem poder conciliar o sono.
Uma coisa aumentou ainda a minha dúvida: era a inicial bordada no lenço e a resposta que Ângela dera à pergunta que lhe fiz a meu respeito. Duas horas bastariam para que ela se deixasse impressionar por mim? Se assim fosse, temia que o sentimento que eu lhe tivesse inspirado fosse menos involuntário do que convinha, e doía-me não ter nela uma soma igual ao amor que eu já sentia.
Resolvi todas as suspeitas, todas as dúvidas, todas as reflexões tristes ou agradáveis que me inspirava a situação, e dormi sobre a madrugada.
Dois dias depois fui à cidade.
João deu-me conta dos papéis e recados que lá tinham levado. Tomei um tílburi e andei dando as convenientes ordens para se ultimarem os negócios, visto que eram essas as ordens que eu recebera de minha mãe.
De volta a Andaraí, entrando no meu quarto, mudei de roupa e dispunha-me a escrever uma carta para o norte.
Abri a carteira e aí encontrei um lenço e o seguinte bilhete escrito em letra trêmula e incorreta:
Vai partir. Esta lembrança é... de uma amiga. Guarde-a e lembre-se eternamente de quem nunca o riscará da lembrança.
Ângela
Lendo esta carta senti palpitar-me o coração com força. Parecia querer saltar do peito onde não cabia. Era aquilo claro ou não? Ângela amava-me, Ângela era minha. Estas palavras não sei que anjo invisível mas dizia ao ouvido e ao coração.
Li e reli o bilhete; beijei-o; guardava-o, e ao mesmo tempo tornava a tirá-lo para ter o prazer de lê-lo de novo.
Finalmente, passada a primeira comoção, nasceu o desejo de ver e falar a Ângela. Saí; era hora do jantar.
Era impossível falar a sós com Ângela. Meus olhos, porém, falaram por mim, como os dela falaram por ela.
Em toda a noite não houve ocasião de falar-lhe. O doutor, sempre amigo, cada vez mais amigo, empenhou-se comigo em uma daquelas práticas cordiais em que o coração e o espírito trazem entre si os sentimentos sinceros e as idéias puras.
No dia seguinte tive ocasião de falar a Ângela. Quando nos vimos a sós, um acanhamento invencível apoderou-se de nós ambos. Depois de alguns minutos de silêncio Ângela perguntou-me timidamente:
— Que achou no seu quarto?
— Oh! a felicidade! respondi eu.
E pegando na mão da moça que tremia, disse-lhe com voz igualmente trêmula:
— Ângela, creio que me amas; eu também te amo, e como creio que se pode amar no... Diga-me? É certo que sou feliz? Sou amado?
— É... murmurou a moça deixando cair a cabeça sobre o meu ombro e ocultando assim o rosto corado pela comoção.