Filomena Borges/XVIII
Filomena não se enganara quanto à previsão do entusiasmo que havia de causar no Rio de Janeiro. Bastou constar que vinha aí a famosa cancionista, tão apreciada de Paris, para que toda a cidade se mostrasse tomada de uma loucura instantânea.
E desde então até a sua chegada foi ela a ordem do dia; não se falava noutra coisa. Esperavam-na contando os minutos; um sussurro uníssono de elogios evolava-se da opinião pública, sem que ninguém pudesse explicar a causa de semelhante alacridade.
Afinal chegou.
Que frenesi! Todos queriam ser o primeiro a vê-la. O cais Pharoux parecia diminuir sob a multidão que o coalhava. Viam-se enormes grupos, esparsos, por aqui e por ali, galgando a muralha, invadindo as lanchas e os escaleres. Nas ruas faziam-se comentários a respeito da baronesa de Itassu; os jornais pregavam na parede notícias a respeito dela; vendia-se o seu retrato em todas as proporções; inventavam-se biografias.
Uns afirmavam que Filomena Borges era um modelo de virtudes; outros que era uma grande velhaca. Este jurava que a vira já muito por baixo, num hotel; aquele dizia que ela fora sempre riquíssima, e que só trabalhava em público por amor à arte. Aqui afiançavam have-la visto, em tal época dançar uma habanera em casa de tal figurão; logo, ali, negavam: — Que não! que essa Filomena era outra, falecida havia já coisa de cinco anos, e que esta, a nova, a do teatro, não tinha absolutamente nada de comum com a outra, com a tal Filomena, cujos bailes, por tão luxuosos e originais, ainda se conservavam na memória de toda a gente!
E as discussões reproduziam-se, cada qual mais disparatada.
Entretanto, no meio desse burburinho, que se fazia no cais, dois homens, depois de se abalroarem, soltaram exclamações de reconhecimento,
— Olá! Você também por aqui, Sr. Barroso?...
— É verdade. Como vai o amigo Guterres?
Guterres ia bem, muito agradecido, mas sempre apoquentado. O outro, ao contrário, dizia-se feliz. Graças a Deus continuava às mil maravilhas com a sua cara mulherzinha e com o seu pequerrucho. Ah! a mulher e o filho eram a sua preocupação, eram o seu enlevo!
— O senhor é quem goza esta vida! considerou o outro.
— É. Deus louvado não tenho de que me queixar! — sustentou o Barroso. Sou feliz, não nego! Coube-me por sorte uma esposa que é um anjo, um verdadeiro anjo da bondade! Também, meu amigo, olhe que lhe pago na mesma moeda... trato-a como vossemecê não imagina!
— Mas faço uma idéia! faço uma idéia! respondeu o Guterres, cheio de acordo.
E mudando de tom e chegando-se mais perto do outro:
— Ora, diga-me cá uma coisa, seu Barroso: tire-me de uma dúvida: — quem vem a ser esta Filomena Borges?... Dir-se-ia a mulher do João Touro!
— Pelo menos, o nome é o mesmo e foi justamente essa dúvida o que me trouxe por cá!
— O nome e o titulo! acudiu o outro, que ela se anuncia como baronesa de Itassu. Afianço-lhe, porque vi!
— Então não é outra com certeza! disse o Barroso — e se duvido, quero que me rachem de meio a meio!
— Ora o diabo!
— Nem era de esperar outra coisa de semelhante doida! Uma sujeita toda cheia de caprichos e de fantasias!
— Mas, tornou o Guterres, como consente aquele homem que a mulher levante um espalhafato desta ordem?... Isto até faz desconfiar!
— Pois então você não sabe que o Borges sempre foi um barão pela mulher?... Ela faz dele o que bem entende!
— Sim, mas segundo me consta, o João Touro não saiu lá muito recheado aqui do Rio! ... considerou o Guterres.
— Recheado saiu ele, mas foi de dívidas!
O Barroso ia responder, mas interrompeu-se:
— Olhe! Aí chegam eles! São os mesmos — é a Filomena e o pancada do marido!
— Ora, para que havia de dar aquele maluco! exclamou Guterres, considerando o casal que o outro lhe mostrava.
— E como vêem tão esquisitos! Parecem dois estrangeiros! Ora o Borges!
Filomena, com efeito, vinha tão à européia pelo braço do marido, que não parecia a mesma.
E como estava formosa! como estava cada vez mais linda!
A quantidade de curiosos que os cercavam era tão grande, que os dois mal podiam caminhar.
Nunca o entusiasmo brutal do povo chegou àquele auge. As ruas, por onde seguia a desejada bailarina, ficavam completamente cheias. As janelas transbordavam. De todos os lados choviam versos; duas sociedades filarmônicas acudiram com a pancadaria de sua música. Um verdadeiro delírio!
Começaram a surgir as ovações.
Do dia seguinte à chegada em diante, Filomena Borges transformou-se no alvo de mil protestos de amor, de presentes e oferecimentos, propostas de todos os sentidos. Os apaixonados caíam-lhe em redor aos bandos, como pássaros prostrados pelo calor.
E a sedutora, sem desenganar a nenhum deles, nem lhes dar mais nada além de vagas esperanças, governava com o macio e delicioso cabresto de seus sorrisos e de seus olhares de ternura, toda aquela imensa matilha de namorados.
Na primeira noite em que ela se mostrou no Pedro II, o teatro foi pequeno para a concorrência que havia. As senhas atingiram o valor de jóias. Viam-se casacas nas torrinhas. E todos aplaudiam, todos se entusiasmavam, não pela arte, nem pelo talento de Filomena, mas pelo gracioso de seus gestos, pela originalidade de sua beleza, pelo satanismo de sua faceirice, que iam maravilhosamente com os requebros dos tangos e das modinhas.
— Não há francesa! não há nada que se compare a isto!... dizia-se.
Um mandarim, que por esse tempo estava no Rio de Janeiro, encarregado de uma comissão diplomática, mandou-lhe no dia seguinte ao primeiro espetáculo, por quatro dos seus criados de rabicho, uma bela urna de sândalo, incrustada de ouro e repleta de coisas preciosas, entre as quais havia um bilhete de papel de arroz, escrito a pincel, que no melhor francês, punha à disposição de Filomena os sete aposentos que ocupava o chim no Hotel dos Estrangeiros.
Logo em seguida, um lord viajante, cuja fragata havia três semanas estava ancorada no porto do Rio de Janeiro, apresentou-se-lhe em casa, oferecendo-lhe um dote de meio milhão de libras esterlinas, se ela quisesse abandonar o marido e acompanhar o sedutor à Inglaterra, onde se casariam sob a religião protestante.
E, como esses, outros, e mais outros oferecimentos vinham amontoar-se-lhe defronte dos olhos; e ela sempre meiga, sempre amável, nunca dizia que "não" e também nunca dizia que "sim", justamente como em pequena lhe ensinara a velha D. Clementina.
O Borges, coitado! é que já não podia agüentar com aquele demônio de vida.
Quando não era o teatro, eram as visitas, os jantares, as repetidas festas — um nunca acabar de maçadas! é certo que já não pisava no palco, mas em compensação as suas lides de empresário, de secretário, de caixa e de gerente, absorviam-lhe todos os instantes. Tinha de atender para a direita e para a esquerda, pagar contas, contratar empregados, administrar o serviço do teatro, escriturar a receita dos espetáculos — um inferno de preocupações.
E quando afinal, pela manhã, ganhava a cama, moído e prostrado, lá estava a mulher para perguntar-lhe pela "idéia", para perguntar-lhe como iam "as suas ambições políticas". Se o Borges havia já deliberado alguma coisa a esse respeito; se aprontara o seu primeiro artigo para a imprensa. — Que fizera, afinal, depois que estavam na corte.
— Matar-me! É o que tenho feito! respondia o infeliz, gemendo no seu cansaço. — Esta vida dá-me cabo da pele! Não sirvo para isto!... Como queres tu que eu pense, que eu escreva, se não tenho um momento de repouso, se todas as minhas horas são poucas para o tal teatro?!
— Entretanto, é mister que te resolvas a principiar! ... Não podes de forma alguma permanecer no estado em que te achas!
— Sim, sim, resmungava o Borges, entre bocejos. — Hei de dar um jeito...
— Tenho uma idéia! exclamou a mulher de uma dessas vezes — tenho uma excelente idéia! — Está a chegar o verão; iremos passá-lo em Petrópolis e, durante esse tempo de completo repouso, tu farás o que já combinamos. Hein? que tal te parece?
— Bom, parece-me bom, respondeu o infeliz, mais animado com a idéia daquele descanso. — Irei para Petrópolis, irei de muito boa vontade, mas hás de afiançar primeiro que não voltaremos antes do inverno e que durante todo esse tempo nem sequer pensaremos em teatro!
— Podes ficar descansado! prometeu a mulher.
O Guterres, apesar daquela conversa com o Barroso, foi um dos primeiros que, à chegada do Borges, o procurou.
Apresentou-se muito comovido, disposto a perdoar generosamente as afrontas que recebera do amigo.
E, desde essa visita, não lhe deixou mais a casa. Jantava lá quase todos os dias e à noite era infalível no teatro.
Borges apenas conseguiu suportá-lo mas Filomena tinha-o em certa estima. Guterres não se cansava de elogiá-lo; ao lado dela só falava nos sucessos extraordinários que a formosa bailarina obtinha todas as noites. E a vaidosa experimentava certo gostinho em sentir a seus pés aquele constante incensador, aquele louvaminheiro incansável, que a glorificava sempre no mesmo diapasão, como uma caixa de música que não precisasse de corda, mas que só tivesse uma peça.
Todavia, o Guterres, pronto sempre a obsequiar lá a seu modo, fazia-se muito solícito com o Borges, dava-lhe conselhos, mostrava-se interessado por ele. Passava os dias no teatro, querendo ajudá-lo em tudo e não fazendo coisa alguma; assentando-se familiarmente ao lado do bilheteiro, examinando a receita e a despesa, interrogando os trabalhadores, consultando os músicos, tomando contas às costureiras, repreendendo os que conversavam em voz alta nos ensaios, apaixonando-se nas discussões a respeito de Filomena ou do Borges, pedindo desculpa aos espectadores que por ventura ficavam mal acomodados na platéia, e indo e vindo, da caixa para os corredores, a fiscalizar, a saber como corria o negócio.
Quem o visse ali, tão inquieto, tão empenhado, tão comprometido com aquele serviço, ficava supondo que o Guterres tinha parte na empresa.
Quando ele se referia ao Borges, dizia sempre:
"O João, o nosso amigo João". Mas se estivesse presente algum estranho, acrescentava logo, com respeito, como para justificar aquela amizade: "O barão de Itassu".
Borges no fim de contas já não o achava tão ruim, e aos poucos o ia admitindo nos seus particulares. Um dia de mais expansão, chegou a falar-lhe muito em segredo, nos projetos políticos, que ultimamente o preocupavam.
— Não é coisa minha! disse, justificando-se.
— São histórias lá de minha mulher! Deu-lhe praí. Acha que devo meter-me na política!
O outro recebeu a notícia com um acolhimento cheio de assombro.
— E por que não?!
— Achas então que a coisa é exeqüível? perguntou o Borges.
— Mas certamente! Dessa massa é que eles se fazem! Nas condições em que estás e dispondo da influência de tua mulher, seria um crime até não cuidares do futuro! Olha...
E chegando-se misteriosamente ao ouvido do outro: — Eu estou aqui para te ajudar! Descansa!
Mas o Borges não podia descansar; as palavras do Guterres inspiravam-lhe muito pouca confiança, continuava a ver nele o mesmo preguiçoso vulgar, o mesmo "pobre diabo", o mesmo parasita incorrigível.
— Então é certo que vais para Petrópolis? perguntou-lhe o amigo na véspera da viagem...
— É, respondeu o marido de Filomena; — sigo amanhã.
— Diabo, antes fosses mais tarde! Não me convinha sair daqui sem acabar o mês...
— Mas que necessidade tens tu de sair? ponderou o Borges, temendo que o outro lhe quisesse duplicar as despesas do passeio.
— Pois eu havia lá de consentir que partisses sem levar um amigo em tua companhia!
— Não, não! não te incomodes por minha causa! apressou-se a dizer o Borges. Agradeço-te do fundo do coração a boa vontade; mas acredita que não há a menor necessidade de...
— Ora, deixa-te dessas coisas! Queres romper cedo comigo, João?!... Bem sei que és escrupuloso, que tens receio de me importunares, aceitando estes pequenos obséquios; eu, porém, julgo-me no dever de cumpri-los, mesmo contra o que disseres.
— Mas, filho, dou-te a minha palavra de honra, que fico muito mais agradecido se não fores! oh!
— E eu dou-te também a minha palavra que nem a tiro conseguirás que eu mude de resolução!
— Nesse caso é birra! exclamou o Borges, sem poder disfarçar a impaciência.
— Será o que tu quiseres! bradou o teimoso. — Mas eu considero do meu dever não te deixar ir só!
E com orgulho:
— Não! Que não sou desses amigos que só aparecem pelo bom tempo!... Não senhor!... Sei que vais doente, cansado, prostrado... sei que hás de precisar de um bom amigo ao pé de ti, que te dê coragem, que te anime! Sei que levas projetos de escrever artigos políticos, de lutar, de resistir, e sei que te faltarão as forças para tanto! E pensares que eu seria capaz de te deixar ir só. Oh! não te mereço semelhante injustiça! Eu supunha, João, que fizesses de mim um melhor juízo!
— Ora essa!
— Não! não! Seria cometer a mais revoltante indignidade, se eu não te acompanhasse!
Borges ainda protestou, não, porém, com o mesmo ardor; as palavras do amigo a respeito dos tais projetos políticos o interessaram sobremaneira. O Guterres gozava de certa fama de homem fino, perspicaz e muito inteligente.
Verdade é que seria difícil citar-lhe as obras; Borges não se lembrava de haver posto os olhos em alguma coisa escrita por ele; nunca lhe descobrira o menor trabalho de imprensa, mas, por várias vezes ouvira conversar a respeito do talento do Guterres:
— Se não fosse tão preguiçoso, diziam, seria a nossa primeira pena!"
— Bem podia ser que o demônio do homem entendesse deveras do riscado e viesse a prestar-lhe muito bons serviços!... Em tricas de política, pelo menos, ninguém lhe podia negar competência.
Borges ainda se lembrava perfeitamente das formidáveis discussões, em que o vira por inúmeras vezes empenhado com os grandes da matéria. — Ora, se assim era, valia a pena abrir mão de umas certas coisas e aceitar abertamente o auxilio que lhe oferecia o tipo! ...
— O diabo seriam as despesas!
Borges já não era o mesmo algibeiras rotas em questões de dinheiro: depois das suas adversidades, ficara econômico e desconfiado. — Mas enfim! ora adeus!... Quem precisa tem que puxar pela bolsa!
E resolveu agüentar a carga.