Galeria dos Brasileiros Ilustres/José Maria da Silva Bitancourt
A melhor biografia de um general é a sua fé de ofício.
Homem de abnegação, cidadão dos sacrifícios, o militar, desde que assenta praça, constitui-se ipso facto o agente moral e ativo da mais gloriosa missão humana — a do severo cumprimento do dever.
Ora, no cumprimento do dever é que reside a força, a nobreza e a glória da personalidade humana.
Le seul grand homme ici bas, diz um distinto escritor francês, c'est l'honnête homme.
Se, pois, o homem honesto é aquele que, através de todas as vicissitudes da vida, acata a religião do dever e cumpre à risca as prescrições de seu destino social, onde ir buscar melhor tipo para a dignidade humana, melhor exemplo da supremacia individual do que no soldado disciplinado e nobre que na sua fé de ofício tem o atestado oficial, e por assim dizer diário, de todos os atos de sua vida concernentes à prática do seu dever?
Demais, no mundo da justiça social, as glórias não se repartem na proporção das forças. O maior prêmio deve sem dúvida corresponder ao maior esforço, mas este está ou deve estar menos na razão direta da capacidade do que na dos sacrifícios.
Fazer, custa pouco a quem o pode. Fazer, porém, contrariando os instintos naturais, e subordinando as leis gerais da natureza ao poder da vontade, à pura ação da consciência, violentando a própria fraqueza, martirizando o coração em honra de um princípio abstrato, nisso, sim, há grandeza, há mérito individual superior.
Ainda sob este ponto de vista, que esforço há aí comparável a do militar brioso, que desde os cômodos domésticos até à própria conservação, desde a família e as mais caras e poderosas afeições humanas até à renúncia voluntária da existência, tudo, tudo sacrifica à religião do patriotismo, à fidelidade do dever?
O tenente-general Bitancourt está neste caso. Sua vida tem sido uma cadeia ininterrompida de serviços, trabalhos, e dedicação. Cinqüenta e três anos de continuado labor, atesta-no de sobejo. E essa prova material de sua importância desaparece ante a magnitude das variadas comissões científicas e militares de que há sido sempre encarregado.
Filho legítimo do tenente-coronel Elesbão José da Silva Bitancourt e de D. Teresa José da Silva Bitancourt, desde tenra idade deliberou-se a seguir a árdua carreira de seu digno progenitor, sentando praça a 13 de janeiro de 1808, e tendo apenas de idade 13 anos. Sua primeira comissão foi marchar para as fortificações e defesa da 2ª linha da barra desta capital, quando se fecharam os portos aos ingleses. Foi ao regressar dessa comissão que o jovem cadete, desejoso de instruir-se, matriculou-se na escola militar, encetando o curso completo de sua arma e das ciências naturais e matemáticas de que mais tarde, em 1859, lhe foi conferido o grau de bacharel.
Infatigável de braço como de pensamento, mesmo durante o curso da escola, continuou a servir como soldado de seu país. Foi daí, e sempre como um estímulo à sua vocação, e um prêmio a seus serviços, que sucessivamente galgou os postos superiores.
Cadete de 1ª classe em 1808; 2º tenente em 1813; 1º tenente em 1818; capitão em 1820; major graduado em 1822 e efetivo em 1824; tenente-coronel em 1827; coronel graduado em 1829 e efetivo em 1830; brigadeiro graduado em 1839 e efetivo em 1842; marechal-de-campo graduado em 1849 e efetivo em 1852; tenente-general graduado em 1858 e, finalmente, integrado na efetividade desse alto posto em 1860, durante esse longo período de tempo grandes serviços e graves responsabilidades foram pelo tenente-general Bitancourt realizados e assumidos com dedicação e êxito.
Forte de corpo como de espírito, ao general Bitancourt não houve nunca empresa que o fatigasse ou comissão que o quebrantasse de ânimo. O Rio de Janeiro, o Pará, Pernambuco, Ceará e Rio Grande do Sul são testemunhas de seus esforços. Mais ou menos, poucos palmos do solo pátrio deixaram de ter pegadas do militar distinto cujos serviços rememoramos aqui. Onde houve necessidade de um sacrifício, precisão de um esforço, direção de engenho e ação de soldado, lá se achou sempre o general Bitancourt com o compasso ou com a espada, com o plano ou com a execução, auxiliando, promovendo, dirigindo e realizando as obras requeridas pela defesa da pátria ou pela exigência dos superiores, e sempre merecendo destes a estima e os louvores de que fazem dignas as individualidades notáveis. A independência nacional; a instrução do exército, como disciplina ou como ciência; a artilharia de terra e mar; as fortificações permanentes e volantes; os trens bélicos; o fabrico da pólvora; o arquivo geográfico; a estatística; as escolas militares; a engenharia; a administração civil e militar; finalmente instituições de beneficência e socorro à pobreza devem-lhe grandes serviços.
Sua inteligência e sua espada alternaram sempre no trabalho. Importantes relatórios sobre todas as especialidades que acima indicamos atestam suficientemente o alto mérito do general Bitancourt. Nem de seus serviços foi o menor aquele que prestou como lente de matemática e artilharia do 1º corpo da artilharia de posição.
No entanto, todos esses longos serviços, todo esse período glorioso de alternativas de perigos e privações, de trabalhos e de aplicação, foram em um dia postos à prova do sofrimento e da amargura. Uma hora de indiscrição ou de má-fé pôde, para punição da fraqueza humana, levantar sobre tantos troféus de dedicação e probidade o crepe de uma suspeita indigna.
Diretor do arsenal de guerra da corte durante o Ministério de 19 de setembro e acusado o ministro da repartição da guerra nesse tempo, o Sr. conselheiro Manuel Felizardo, por alguns deputados da oposição parlamentar, o chefe que não soube, ou não quis defender-se como um ministro constitucional das prevaricações e dilapidações de que acusavam o seu ministério, entendeu achar mais fácil evasão fazendo recair o peso das censuras sobre os inferiores que foram assim vítimas expiatórias de erros ou de crimes que não cometeram.
Entre essas vítimas achou-se o general Bitancourt. Demitido do melindroso cargo que ocupava, primeiro passo do militar brioso, ofendido em seus créditos de homem, de cidadão e de empregado público, foi requerer imediatamente conselho de investigação e de guerra para justificar sua conduta e confirmar o inabalável conceito em que sempre fora tido pelo país.
A opinião pública não precisava dessa investigação, mas os escrúpulos da consciência pura prevaleceram justamente sobre o legítimo orgulho da inocência. O general Bitancourt defendeu-se brilhantemente, e uma sentença unânime declarou-o inculpado das faltas que lhe atribuíam. Costumado a baratear seu sangue e sua vida, doía ao general Bitancourt ver baratearem-lhe os créditos. Repeliu, pois, a injúria da suspeita esmagando coma a sentença de um tribunal solene a calúnia que tentara manchá-lo em sua honra.
O general Bitancourt ficou, pois, o que sempre fora; um homem probo e pronto para dedicar-se ao serviço de seu país, ainda com sacrifício. O mais notável desse episódio é que o próprio diretor do arsenal de guerra, demitido e caluniado, foi o incumbido, pouco tempo depois, pelo governo imperial de ir ele próprio ao arsenal instaurar processo de verificação sobre abusos dessa repartição!
Terminaremos esta notícia com mais alguns leves detalhes.
Como homem particular, o general Bitancourt é um cavalheiro completo. Nobres qualidades o recomendam à estima de que goza.
Foi casado com a Sra. D. Maria Joana de Gusmão Bitancourt, filha legítima do major Manuel Álvares de Gusmão e de D. Francisca Rosa de Gusmão. Deste consórcio teve 12 filhos, dos quais vivem 4 que são Eles-bão Maria da Silva Bitancourt, capitão do estado-maior da 1ª classe, Conrado Maria da Silva Bitancourt, capitão de artilharia do exército, D. Maria Teresa da Silva Bitancourt e D. Maria Amália da Silva Bitancourt. Estes filhos formam hoje a maior ventura do general Bitancourt. Todos eles dignos e estimáveis, em nada desmentiram a origem que tiveram.
Chefe de numerosa família, seu exemplo é uma virtude prática e inspiradora.
Entendimento claro; inteligência cultivada; idéias adiantadas e generosas; espírito vivo e animado: conversação amena, trato urbano, sisudez de caráter, familiaridade não hipócrita, gênio bilioso, mas re-fletido, ardente e impetuoso no entusiasmo ou na cólera, lhano e cortês sempre, são os dotes principais, as mais salientes qualidades da sua fisionomia moral.
Bem que pertencente, pelo nascimento, aos fins do século passado, pela juvenilidade de seu espírito e de seu corpo facilmente o acreditará um moço encanecido pelas fadigas rudes do serviço militar.
Bravo como soldado; prudente como general; hábil como administrador, nos diferentes cargos que tem ocupado, já como comandante de armas em várias províncias, já como presidente noutras e já como general-em-chefe do exército do Sul em operações de campanha, o general Bitancourt deu sempre de si grandes provas.
Eleito deputado à Assembléia Geral Legislativa pela província do Ceará em 1844, deixou de tomar assento na câmara por se haverem anulado as respectivas eleições, a capricho da política de então. Fez parte das câmaras municipais da Estrela e de Magé em 1840 e 1849, onde prestou bons serviços como vereador, e quando estava encarregado da dire-toria da fábrica da pólvora da Estrela.
Foi membro da assembléia provincial do Rio de Janeiro em 1848; é conselheiro de guerra, vogal do Supremo Conselho Militar, fidalgo cavaleiro da Casa Imperial, comendador e cavaleiro da Ordem de São Bento da Aviz, da do Cruzeiro e da Rosa, e membro de várias corporações científicas e humanitárias.