Galeria dos Brasileiros Ilustres/Visconde de S. Leopoldo

Wikisource, a biblioteca livre

José Feliciano Fernandes Pinheiro, depois visconde S. Leopoldo, nasceu na antiga vila, hoje cidade de Santos, província de S. Paulo, aos 9 de maio de 1774, sendo seus pais o coronel de milícias José Fernandes Martins, e sua mulher D. Teresa de Jesus Pinheiro. Concluída a instrução primária, passou ao estudo da língua latina sob a direção do hábil professor régio José Luís de Melo, que distinguia o jovem estudante pela perseverança com que buscava superar as dificuldades do idioma de Virgílio, ganhando em aplicação o que lhe faltava em brilhantismo de talento. Sempre ávido de saber, alcançou de seu padrinho de crisma, o Dr. José Xavier de Toledo, vigário de Santos, que lhe desse algumas noções do francês, cujo conhecimento era sumamente raro nessa época: e com esse cabedal literário dirigiu-se à Universidade de Coimbra, na idade de dezoito anos. Em 1798 recebeu o grau de bacharel em cânones, cujo curso seguira por aquiescência aos desejos de sua piedosa mãe, sem que por forma alguma chamasse-o a sua vocação para o estado eclesiástico. Habilitando-o a formatura em cânones para seguir a carreira da magistratura preferiu José Feliciano tomar essa direção, obtida a necessária vênia paterna, e havendo cessado pe lo falecimento de su a mãe os motivos que o haviam encaminhado para o santuário.

Por largo tempo ficaria o moço bacharel confundido na turba dos pretendentes que afluíam às audiências do ministro do Ultramar sem a valiosa intervenção de seu parente Diogo de Toledo Lara Ordonhes, que gozava da privança de D. Rodrigo de Sousa Coutinho. Apresentado a este ilustrado estadista, foi José Feliciano despachado para o estabelecimento literário do Arco do Cego, dirigido pelo sábio autor da Flora Fluminense, Fr. José Mariano da Conceição Veloso. Durante três anos que aí esteve empregado deu exuberantes provas de sua capacidade, em várias traduções da língua inglesa, de que fora incumbido, bem como numa ótima compilação que apareceu com o título História Nova e Completa d'América.

Feito o seu tirocínio, muito a aprazimento do governo, recebeu em recompensa a nomeação de juiz das alfândegas do Rio Grande do Sul, por carta régia de 15 de julho de 1800, fazendo-se depender a elevação à capitania geral dos rendimentos das referidas alfândegas. De tal modo desempenhou o seu honroso e difícil encargo, que mereceu os elogios os mais unânimes e espontâneos do próprio corpo do comércio, cujos interesses eram lesados com a criação dessas repartições fiscais.

Passando pelo Rio de Janeiro, onde devera apresentar ao vice-rei, que então era D. Fernando José de Portugal (depois marquês d'Aguiar), a sua patente de auditor geral de todos os regimentos do Rio Grande do Sul, passada em 19 de setembro de 1801, foi nomeado para o laborioso cargo de auditor da esquadra encarregada da defesa do Brasil. Da maneira satisfatória por que desempenhou esta comissão dá testemunho o honroso atestado do vice-almirante Joaquim José Monteiro Torres, comandante da esquadra no impedimento do chefe de divisão Donald Campbell, datado de 5 de novembro de 1818.

Tornou nesse mesmo ano de 1801 ao seu país natal, e passando alguns meses no seio de sua família, de quem tão saudoso estava, embarcou-se para Porto Alegre, onde chegou em meados de 1802. Numerosos obstáculos impediram-lhe a imediata criação das alfândegas de que vinha incumbido, que só começaram a funcionar em 1804. Com a elevação à capitania geral gozou o Rio Grande das vantagens de que estavam de posse as suas co-irmãs, tendo por conseguinte uma junta da fazenda, onde José Feliciano serviu de procurador da Coroa, reunindo outrossim os cargos de juiz conservador dos contratos do quinto e dízimo ao inspetor do papel selado.

Com o título de governador administrava a capitania do Rio Grande do Sul o chefe de esquadra Paulo José da Silva Gama, condecorado mais tarde com o título de barão de Bagé, e tão estreitas relações travou com o moço juiz, e tão subido conceito formava de sua sisudez e inteligência que consultava-o nos negócios os mais árduos da governança, dizendo em um documento que temos presente com data de 30 de junho de 1805 "que pela sua prudência e acertadas medidas aplacara a fermentação com que a princípio pareceu estranhar o corpo do comércio a fundação das alfândegas."

Na qualidade de auditor geral prestou por espaço de vinte anos os mais relevantes serviços, merecendo por isso ser sucessivamente graduado nos postos de tenente-coronel por decreto de 13 de setembro de 1810, e no de coronel pelo de 19 de outubro de 1811, vencendo soldo dobrado de capitão de infantaria. Acompanhou em 1812 o exército pacificador em sua marcha até Montevidéu, e tão bom conceito dele fazia o austero d. Diogo de Sousa capitão-general do Rio Grande e comandante do mencionado exército pacificador, que propô-lo para vogal da comissão militar, instalada por carta régia de 17 de setembro de 1813, na qual deveriam ser julgados numa só instância os implicados nos crimes de deserção, sedição, etc. Tão proverbial tornou-se a sua retidão que por carta régia de 19 de junho de 1816 foi escolhido para vogal permanente da junta de justiça, mandada organizar na capitania do Rio Grande do Sul, para processar numerosos réus que apinhavam as prisões.

Receando Fernandes Pinheiro que as honrosas comissões de que era incumbido o desviassem inteiramente da sua carreira de magistrado, requereu ao governo uma compensação que lhe foi concedida por decreto de 29 de junho de 1808 com o predicamento da correição ordinária, e mais tarde pelo de 17 de dezembro de 1811, com as honras de desembargador, e o predicamento do primeiro banco.

Proclamado o governo representativo foi Fernandes Pinheiro eleito deputado ao congresso constituinte de Lisboa pela província de S. Paulo, donde, como vimos, se achava a muitos anos ausente, e onde não lhe restava influência de família. Correm pelas mãos de todos os Diários das Cortes, e fácil é averiguar qual a conduta do deputado paulistano, que se não desamparou o seu posto antes do tempo, como muitos de seus colegas, foi pela íntima convicção que o seu mandato não havia expirado, devendo, como rezavam as suas instruções, propugnar pela integridade e indivisibilidade do reino unido. Logo porém que, pela aclamação do primeiro Imperador, conhecida lhe foi a vontade dos seus constituintes, apressou-se a regressar ao Brasil dentro do prazo que lhe fora marcado.

De volta à pátria, achou-se eleito por duas províncias (a de S. Paulo e Rio Grande do Sul) para deputado à assembléia-geral legislativa constituinte, concorrendo com as suas luzes e experiência para elaboração de alguns projetos de máxima e pública utilidade.

Sendo dissolvida a primeira assembléia brasileira por causas que nos cumpre examinar, foi nomeado primeiro presidente da província do Rio Grande do Sul, por carta imperial de 25 de novembro de 1823. Em prol da sua administração falam altamente a criação da colônia de S. Leopoldo, fundada à margem do rio dos Sinos, e a cinco léguas de distância da capital, e ainda hoje o mais florescente dos nossos núcleos coloniais, a da primeira tipografia que possuiu a província, e a inauguração da casa de caridade, que com toda a pompa teve lugar no dia 1º de janeiro de 1825. "Toda a cidade de Porto Alegre (diz um ilustre poeta) o viu, cheio d'unção, com a sua farda doirada carregando às costas um doente deitado numa rede, e dando esse exemplo de humildade evangélica que foi por todos seguido."[1]

Apreciador do mérito, não podia o Sr. D. Pedro I deixar de remunerar os serviços que a bem do seu nascente império prestava Fernandes Pinheiro; assim pois galardoou-o com as honras de conselheiro por carta imperial de 13 de outubro de 1825, elevando-o a 21 de novembro desse mesmo ano ao subido cargo de ministro do império.

No Ministério, bem como na presidência de uma província, deu Fernandes Pinheiro infinitas provas do seu gênio criador, e a ele se deve o desenvolvimento da Academia das Belas-Artes, que se achava em embrião, a dos cursos jurídicos de S. Paulo e Olinda, cuja idéia iniciou na assembléia constituinte em sessão de 14 de junho de 1823, acompanhando-a em suas diversas peripécias até a final promulgação da lei de 11 de agosto de 1827, que teve a satisfação de referendar. Reformou a escola médico-cirúrgica dando-lhe melhor organização, e promoveu quanto em si coube o progresso das letras e artes no país. Na viagem que fez o primeiro Imperador ao teatro da guerra do sul foi Fernandes Pinheiro o ministro escolhido pra acompanhá-lo, acrescendo-se-lhe, como sói acontecer em tais ocasiões, o expediente de todas as secretarias.

Desenfreada oposição movia-se ao fundador do Império, e o espírito demagógico não poupava apodos aos conselheiros da Coroa. Fernandes Pinheiro, já então visconde de S. Leopoldo, des-gostou-se de ver-se alvo de calúnias, "não podendo, como ele próprio se expressa, continuar no ministério sem manifestar de uma maneira expressa que preferia os interesses e as honras do emprego à sua reputação e dignidade pessoal." Pediu e obteve a sua demissão, sendo-lhe no decreto de 20 de novembro de 1827 louvados o zelo e probidade com que havia desempenhado as funções desse emprego, e assegurando-lhe que ficavam na imperial lembrança as serviços nele prestados.

Na criação do Senado foi eleito pela província de seu nascimento, sendo pouco depois elevado à eminente dignidade de conselheiro de estado por decreto de 18 de maio de 1827, fazendo o Imperador seleção dele para secretário do conselho, lugar de imensa responsabilidade e grande ônus.

O zelo e conhecimentos do visconde de S. Leopoldo foram vantajosamente aproveitados no primeiro imperado, cabendo-lhe mui delicadas missões, como v.g. a de negociar a convenção de paz entre o Brasil e a República Argentina, datada de 24 de maio de 1827; o tratado de amizade, navegação e comércio entre o Brasil e a Grã-Bretanha de 17 de agosto do mesmo ano bem como idêntico tratado com a Prússia, baseado na mais perfeita igualdade.

Agravando-se as suas enfermidades com a longa residência na capital do Império, e saudoso do seu retiro, requereu dispensa do emprego de conselheiro de estado, que lhe foi concedida por decreto de 9 de março de 1830, sendo-lhe conservadas todas as honras e preeminências anexas ao referido cargo.

Gozava das doçuras do lar doméstico em companhia da Exmª Sra. D. Maria Elisa Júlia de Lima, com quem se ligara pelos vínculos matrimoniais desde o ano de 1819; esmerava-se na educação de seus filhos quando rebentou o furacão revolucionário de 1831, que abalou até os alicerces o nosso edifício social. Eram por todos conhecidos os princípios políticos do visconde de S. Leopoldo e sua inteira adesão à dinastia reinante, assim pois a revolução de 20 de setembro de 1835 não podia deixar de causar-lhe terrores e inquietação pela sorte da sua família. Cuidadosamente vigiado pelos rebeldes, viu-se recluso em sua casa durante os nove meses em que os republicanos de Piratinim dominaram na capital da província. Quando porém despontou a heróica reação de 15 de junho de 1836, foi o visconde lembrado para aconselhar e dirigir a contra-revolução. Temos presente os depoimentos que em uma justificação de seus serviços prestaram os dois marechais João de Deus Mena Barreto, Francisco das Chagas Santos, em que confessam que as razões do ilustrado visconde foram as que mais os demoveram a afrontar os riscos de uma reação para a qual mui poucos elementos haviam combinados. O que seria feito do velho monarquista se nos dois assaltos dados com forças combinadas de terra e mar conseguissem os rebeldes entrar na cidade, mal resguardada por um tapume de tábuas singelas, e por pouco mais de duzentos defensores entre velhos, paisanos e moços bisonhos?

Vindo ao Rio de Janeiro assistir à sessão legislativa de 1837, foi nomeado pelo então ministro dos Negócios Estrangeiros, o Sr. A. P. Maciel Monteiro, para presidente de uma comissão que devera determinar quais os limites que podem ser considerados como naturais com relação às localidades e topografia do país. De tal modo preencheu o visconde de S. Leopoldo o que dele se esperava, que o referido ministro declarou em uma das sessões da Câmara dos Deputados do ano de 1838 que os resultados dos trabalhos apresentados pelo benemérito estadista lhe haviam sido mui úteis e proveitosos.

Apenas de posse das suas funções majestáticas, quis o Sr. D. Pedro II dar um testemunho do apreço que lhe mereciam os serviços do antigo ministro de seu augus to pai, ligando-o mais inteiramente à sua família na qualidade de viador das sereníssimas princesas, lugar que desempenhou com zelo e dedicação que o caracterizava.

Já dissemos que o visconde de S. Leopoldo estreara a sua carreira como literato; resta-nos mostrar como jamais esqueceu-se ele dos seus princípios, nem renegou, como muitos outros, o culto da ciência

pelas fascinações da política e pela magia das grandezas humanas. Manuseando com suma despesa os importantes documentos depositados nos arquivos do Rio Grande do Sul, escreveu os Anais da dita província, cujo primeiro volume foi publicado nesta capital no ano de 1819, o segundo em Lisboa em 1822. Posteriores estudos fizeram-lhe modificar o primitivo plano da sua obra, e levaram-no a dar-lhe nova edição que saiu dos prelos de Paris em 1839. Julgada está pela posteridade semelhante obra, e todos os escritores nacionais e estrangeiros que se hão ocupado com a nossa história rendem homenagem à sua profunda erudição e justeza de raciocínios combinados com a mais pura e castiça linguagem. Devemos ainda à sua douta pena alguns outros trabalhos que, posto que de menores dimensões não são menos importantes: referimo-nos à sua Memória sobre os limites naturais, pactuados e necessários do Império do Brasil, lida na sessão do Instituto de 16 de fevereiro de 1839; a Vida e Feitos de Alexandre de Gusmão, e seu irmão Bartolomeu Lourenço de Gusmão, publicada em 1839 nas memórias do mesmo Instituto, assim como a Resposta às Breves Anotações que sobre a sua memória relativa aos limites do Brasil escrevera o conselheiro Manuel José Maria da Costa e Sá. Em desenvolvimento de um programa que fora dado para a discussão escreveu o visconde um erudito trabalho em que demonstrou que o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro era o representante das idéias de ilustração que em diferentes épocas se manifestaram em nosso continente, cujo trabalho se acha inserto no tomo 1º da Revista do mesmo Instituto.

A propósito de Instituto releva não esquecer que o visconde de S. Leopoldo com o marechal Raimundo José da Cunha Matos e o cônego Januário da Cunha Barbosa foram os videntes que no ano de 1838 previram que da fundação dessa associação proviria ao Brasil grande honra e proveito. Testemunhas seus consórcios do interesse que manifestava pelo desenvolvimento intelectual do país, e prestando preito à sua vastíssima ilustração, elevaram-no à cadeira presidencial enquanto vivo fosse. Sensível a todas essas demonstrações de estima e consideração, trabalhava o visconde na composição de uma História Geral do Brasil quando surpreendeu-o a morte no dia 6 de junho de 1847 na cidade de Porto Alegre, sendo sepultado no cemitério da Santa Casa de Misericórdia.

Era o visconde de S. Leopoldo de amenas e delicadas maneiras, instrutiva conversação, e de raríssima modéstia, que mais brilho dava ao seu reconhecido merecimento. Confessavam seus adversários políticos (únicos que em sua longa existência contou) que acorvadava-os a sua extrema polidez, fazendo-lhes perder terreno o seu finíssimo trato. Mais homem de gabinete do que de tribuna, melhor sabia servir-se da pena do que da palavra, e quando violentamente agredido preferia calar-se a repelir insulto por insulto.

Atravessou o oceano a fama das suas muitas luzes, e diversas academias e sociedades estrangeiras, como a Academia Real das Ciências de Lisboa, a dos Amigos Naturalistas de Berlim, o Instituto Histórico de França, a Sociedade de Agricultura de Carlsrue, a Filomática de Paris, lhe enviaram diplomas, e honraram-se de contá-lo no número de seus sócios.

Na vida particular era o visconde o complexo de todas as virtudes que se desejam encontrar num homem, e ainda hoje é sua memória abençoada por todos que tiveram a ventura de conhecê-lo.

Notas[editar]

  1. O Sr. M. de Araújo Porto Alegre, Elogio dos membros falecidos do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.