História do Brasil (Frei Vicente do Salvador)/III/IX
O governador se tornou do Rio de Janeiro para a Bahia, e chegou a ela no mês de junho do mesmo ano de mil quinhentos e sessenta, onde continuou com o governo da terra, na qual era tão necessária a sua assistência, e presença, que algumas poucas vezes, que ia ver um engenho que fez em Sergipe, ia de noite, e deixava um pajem na escada, que dissesse que estava ocupado a quem por ele perguntasse, o qual não mentia, porque onde quer que estava se ocupava; e isto fazia para que a notícia da sua ausência não fosse ocasião de alguma desordem, e assim, ainda que o engenho distava desta cidade oito léguas, fazia lá mui pouca detença.
Neste ano de mil quinhentos e sessenta arribou a esta Bahia a nau S. Paulo, como já outra vez havia arribado em tempo do governador d. Duarte da Costa, posto que então vinha nela por capitão Antônio Fernandes, como dissemos no capítulo quarto deste livro, e desta vez vinha Rui de Mello da Câmara, o qual vendo que para invernar aqui haviam de gastar sete ou oito meses, e que a água e gusano corrompem brevemente a madeira das naus, ajuntando-se com os pilotos, e da terra, diante do governador praticaram se haveria ainda tempo para seguirem viagem, e ir invernar à Índia? e de comum parecer assentaram que sim, se partissem daqui em setembro, e fossem por muita altura buscar a ilha de Sumatra, para dela em fevereiro voltarem com a monção com que vem as naus de Malaca e China, e tomando desta cidade tudo o que lhes foi necessário, partiram em 15 de setembro, achando os tempos prósperos foram a vista do cabo da Boa Esperança em fim de novembro, e assim foram seguindo sua viagem para a ilha de Sumatra com ventos brandos até vinte de janeiro, dia do bem-aventurado mártir São Sebastião à boca da noite, em que se acharam tão abordados com a terra por causa da grande corrente das águas, que por muito que trabalharam por se afastar foram varar nela, e quis Deus que foi em parte onde ficou a nau encalhada, e todos nela até pela manhã, que lançaram o batel ao mar, e se passaram a terra sem coisa alguma entender com eles, por ser a gente dali mesquinha, e tão doméstica, que acudiram logo a lhes vender algumas coisas posto que assim não fora, os da nau eram setecentos homens, todos bem dispostos, e armados, que puderam atravessar toda aquela ilha, e assim logo fizeram cabanas, para se agasalharem, e desembarcaram da nau mantimentos, vinhos, azeite, e tudo o mais, que puderam, e desfizeram a nau, e tiraram dela toda a pregadura, madeira, cordoalha, e tudo mais que lhe foi necessário, e armaram duas embarcações, e levantaram o batel, trabalhando todos com muito gosto, e presteza; servindo de ferreiros, serradores, carpinteiros, e de todos os mais ofícios, como se sempre o usaram; e assim em breve tempo as acabaram, e lançaram ao mar, e fizeram sua aguada em abastança, e recolheram nelas todas as armas, e alguns berços, e falcões, por não serem as vasilhas capazes de maiores peças, porque eram a modo de barcaças.
Uma delas se deu a Diogo Pereira de Vasconcelos, um fidalgo que ali levava sua mulher, que se chamava d. Francisca Sardinha, e era uma das mais formosas do seu tempo.
Outra tomou Rui de Mello, capitão da nau, e a terceira deram a Antônio de Refoios, um cavaleiro muito honrado, que ia despachado com a Capitânia de Coulão, e repartindo a gente por elas não coube em cada uma mais que cento e setenta homens, ficando cento e setenta, que por nenhum caso se puderam agasalhar: pelo que assentaram, que estes caminhassem por terra à vista dos batéis, para lhes socorrerem alguma necessidade, e repartindo por eles as espingardas, que havia, começaram a caminhar de longo do mar, e os batéis sempre à sua vista, e tanto que era noite escolhiam lugar para descansarem, e dormirem, e surgiam os batéis com as proas em terra; e o mesmo faziam a horas de jantar, em que tomavam a refeição ordinária, e assim foram caminhando nesta ordem sem lhes acontecer desastre algum, e havendo poucos dias que caminhavam houveram vista de quatro embarcações, a que foram correndo, e elas trabalhando tudo o que podiam por lhes fugir, e atirando-lhes de uma embarcação das nossas com um falcão, que lhes foi zunindo pelas orelhas, lhes pôs tão grande medo e espanto, que logo se lançaram a nado para a terra, e deixaram os navios carregados de farinhas de sagu / que é o principal mantimento de todas aquelas ilhas / de que os nossos se proveram em abastança /, e recolheram nestas embarcações toda a gente que ia por terra, com o que ficaram mais descansados, e sendo já em três graus da banda do sul, se recolheram a um formoso rio, que acharam, desembarcando todos em terra para se recrearem, e dormindo também nela algumas noites, com tanto descuido e segurança, como se a terra fosse sua, e até Diogo Pereira de Vasconcellos se desembarcou ali com sua mulher, a qual vista pelos Manancabos, que é a gente da terra, tão formosa, junto com estar ricamente vestida, desejaram levá-la ao seu rei, e assim deram uma noite nas suas estâncias, e mataram perto de sessenta pessoas, e levaram d. Francisca Sardinha, em cuja defensa fez o mestre da nau espantosas coisas até que o mataram. O Diogo Pereira salvou uma filha, que tinha, chamada d. Constança, que depois casou com Tomé de Mello de Castro, e outras mulheres, com que se recolheu à sua embarcação muito anojado desta desventura, que lhe aconteceu por sua sobeja confiança.
Dali se partiram de longo da costa, que era mui limpa, com muito mais tento, porque aquele desastre os espertou, e não se fiaram mais da gente da terra; e assim embocaram o boqueirão do Sonda, e foram tomar a cidade de Pata, onde acharam quatro naus portuguesas, de que era capitão-mor Pero Barreto Rollim, que ali estava carregando de pimenta, e recebeu toda esta gente, e a repartiu pelas naus, e proveu a todos bastantemente, e parte deles se passaram a China, para onde Pero Barreto Rollim ia por mandado do viso-rei d. Constantino.