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História do Brasil (Frei Vicente do Salvador)/III/X

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Vendo-se os Tamoios já livres da guerra do governador Mem de Sá, se tornaram a fortificar no Rio de Janeiro, donde saíam a correr a costa toda até São Vicente, salteando os índios novos cristãos, prendendo, matando, e comendo a quantos podiam alcançar.

Durou esta moléstia dois anos, sem que força alguma pudesse reprimir o atrevimento dos bárbaros insolentes, que cada dia crescia com o favor, e ajuda dos franceses, com que já se não contentavam do mal que faziam aos outros índios, mas a todos os moradores de São Vicente ameaçavam com cruel guerra, e apresentavam uma armada de canoas para por mar, e por terra os combaterem.

Este mal tão grande quis remediar o padre Manuel da Nóbrega, primeiro provincial que havia sido da Ordem da Companhia de Jesus na província do Brasil, resolvendo-se a ir tentear os ânimos dos bárbaros para reduzi-los a condições de paz, ou dar a vida pela saúde comum.

Para isto tomou por seu companheiro o irmão José de Anchieta, e um Antônio Luiz, homem secular; com os quais se embarcou em uma nau de Francisco Adorno, ilustre genovês, homem naquela terra mui conhecido, rico, e devoto da companhia.

Os bárbaros, a notícia da nau portuguesa, cuidando que ia de guerra, acudiram a suas canoas, e lhe saíram ao encontro carregadas de flechas; porém o irmão José de Anchieta com uma breve, e amorosa prática, que lhes fez na sua língua, os quietou, e fez benévolos a sua chegada, e depois com outras muitas, e principalmente com suas devotas orações, e exemplo, que deu de sua vida em três meses, que ficou só entre eles, e dois que esteve com o padre Nóbrega, que se tornou para São Vicente, os reduziu a desejada paz, exceto alguns, que discordes dos mais, e fiados nas armas dos franceses, continuaram a guerra contra os portugueses.

Estes sucessos previu a rainha d. Catarina quando leu a carta do governador Mem de Sá, em que lhe dava conta da vitória, que alcançara no Rio de Janeiro, e assim, ainda que lhe agradeceu, e se houve por bem servida dele, todavia lhe estranhou muito o haver arrasado o forte, e não deixar quem defendesse, e povoasse a terra, e lhe mandou, que logo o fizesse, porque não tornasse o inimigo a fazer ali assento com perigo de todo o Brasil; o mesmo lhe escreveu o cardeal d. Henrique, que com ela governava o reino, e para este efeito lhe mandaram pelo próprio seu sobrinho Estácio de Sá, que levou a nova, uma armada de seis caravelas com o galeão S. João, e uma nau da carreira da Índia chamada Santa Maria, a Nova, a que ajuntou o governador os mais navios que pôde, e quisera ir em pessoa; mas por o povo lho não consentir mandou o dito seu sobrinho, no ano de mil quinhentos sessenta e três, a quem acompanhou o ouvidor-geral Braz Fragoso, e Paulo Dias Adorno, comendador de Santiago, em uma galeota sua, que remava dez remos por banda, e outros capitães, os quais chegando todos ao Rio de Janeiro acharam uma nau francesa, que lhe quis fugir pelo rio acima, mas os nossos lhe foram no alcance, e a primeira que lhe chegou foi a galé de Paulo Dias Adorno, em que também ia Duarte Martins Mourão, e Melchior de Azeredo, depois chegou Braz Fragoso, e outros, os quais entrando na nau, acharam muito pão, vinho, e carne, e assim a levaram para baixo onde ficava a Capitânia Santa Maria, a Nova, e o galeão, e o capitão-mor Estácio de Sá fez capitão dela a Antônio da Costa; mas como não há gosto nesta vida, que não seja aguado, indo uma madrugada três batéis nossos tomar água à ribeira da Carioca, deram com nove canoas de índios inimigos, que estavam aguardando em cilada, os quais repartindo-se três e três a cada batel, mataram no da capitânia o contramestre, o guardião, e outros dois marinheiros, e no do galeão feriram a Cristóvão d’Aguiar, o moço, com sete flechadas, e outros sete homens, e o levavam, mas Paulo Dias Adorno lhe acudiu à pressa na sua galé, e chegando a tiro mandou pôr fogo a um falcão, que os fez largar o batel.

Enterrados os mortos em uma ilha, chamou Estácio de Sá os capitães a conselho, e assentaram, que se fosse a S. Vicente buscar canoas, e gentio doméstico, e amigo, com que melhor se poderia fazer guerra àquele bárbaro inimigo.

Saíram uma madrugada, e a nau francesa, que haviam tomado, diante de todas as outras com um caravelão de Domingos Fernandes, dos Ilhéus, acharam na barra muitas canoas de inimigos índios, e franceses misturados, que chegando ao caravelão o furaram com machados, e o meteram no fundo, matando-lhe quatro homens, e ferindo a Domingos Fernandes de seis flechadas, com que se foi a nado para a nau, a qual também chegaram, e lhe fizeram um buraco; mas um índio da Índia de Praz Fragoso, que ali ia com seu senhor, se foi abaixo da coberta, e pelo mesmo buraco matou um francês, com o que eles, ou com o temor da armada, que vinha atrás, se foram embora, e a nau também, seguindo seu caminho para São Vicente, onde contaram ao capitão-mor, e aos mais o que lhes havia sucedido.

Neste tempo estava a povoação de São Paulo, que é da capitania de São Vicente, de guerra com o gentio, que a tinha posta em grande aperto, ao que acudiu Estácio de Sá com muita gente da que consigo levava, a cuja vista o gentio lhe veio logo pedir pazes, e ele lhas concedeu, e ficaram fixas.

Entretanto chegaram os capitães Jorge Ferreira, e Paulo Dias, com as canoas, e gentio, que tanto que chegou mandou buscar a Cananéia, e provida a armada de todo o necessário se partiu outra vez para o Rio de Janeiro no ano de mil quinhentos sessenta e quatro, dia de São Sebastião, a quem tomou por patrão da sua jornada, entrou pelo Rio em primeiro de março, e ancorando na enseada, saltaram em terra, e feitos tujupares, que são umas tendas ou choupanas de palha, para morarem, onde agora chamam a Cidade Velha, ao pé de um penedo, que se vai às nuvens, chamado o Pão de Açúcar, se fortificaram com baluarte, e trincheiras de madeira, e terra, o melhor que puderam, donde saíam a fazer guerra aos bárbaros, ajudando-os Deus por espaço de dois anos que ali estiveram, de modo que em encontros quase sempre saíam vitoriosos, e os feridos de mortais feridas das flechas inimigas brevemente saravam: outros feridos nos peitos nus com pelouros dos arcabuzes franceses, não sentiam mais o golpe que se estiveram armados de peitos de prova, e aos pés lhes caíam os pelouros.

Cansados já os Tamoios de tão prolixa guerra, e enfados de ruins sucessos, porque ordinariamente nos encontros saíam escalavrados, determinaram lançar o resto de seu poder, e de sua ventura em uma batalha industriados pelos franceses, e sem dúvida a coisa ia traçada para conseguirem seu intento. Porém a Divina Providência se acostou à parte mais justificada.

Haviam os Tamoios ajuntado ao número ordinário de suas canoas outras novas, que chegaram a cento e oitenta, fabricadas secretamente longe do posto donde estavam os navios dos portugueses.

Toda esta armada de canoas puseram em cilada, escondida em uma volta que fazia o mar, daqui saiu um pequeno número delas, contra as quais mandou o general cinco das nove que trouxe de S. Vicente, porque os índios amigos, enfadados da guerra, se haviam já ido com as quatro.

Os Tamoios, não ainda bem começada a batalha, viraram as costas, que assim o haviam traçado, e meteram os nossos, que atrevidamente os iam seguindo na cilada, donde saíram as mais canoas inimigas, e subitamente as cercaram por todas as partes; mas nem por isso perderam o ânimo os portugueses, antes resistiram valorosamente ajudados do Divino favor, o qual ainda das coisas que parecem adversas sabe tirar prósperos sucessos, como aqui se viu que acaso ascendendo-se a pólvora em uma das nossas canoas chamuscou a alguns dos inimigos, que a tinham abordada, com o que, e com a chama que levantou a pólvora se alterou tanto a mulher do general, Tamoia, que dando gritos e vozes espantosas atemorizou a todos, e sendo seu marido o primeiro que fugiu com ela, os seguiram os mais, deixando livres os nossos, os quais tornando às suas fronteiras deram graças a Deus por tão grande benefício, e por os haver livres de perigo tão grande pela voz e assombro de uma fraca mulher, ainda que depois declararam os mesmos inimigos que não fora por isto, senão por haverem visto um combatente estranho, de notável postura, e beleza, que saltando atrevidamente nas suas canoas os enchera de medo; donde creram os portugueses que era o bem-aventurado S. Sebastião, a quem haviam tomado por padroeiro desta guerra.