História do Brasil (Frei Vicente do Salvador)/III/VI

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A d. Duarte da Costa sucedeu o dr. Mem de Sá, que com razão pode ser espelho de governadores do Brasil; porque concorrendo nele letras, e esforço, se sinalou muito na guerra, e justiça.

Este, em pondo os pés no Brasil, que foi no ano de mil quinhentos cinqüenta e sete, nenhuma coisa do seu regimento executou primeiro que o que el-rei lhe mandava em favor da Religião Cristã; para isto mandou chamar os principais índios das aldeias vizinhas desta Bahia, e assentou com eles pazes com condição que se abstivessem de comer carne humana, ainda que fosse de inimigos presos, ou mortos em justa guerra, e que recebessem em suas terras os padres da companhia, e os outros mestres da fé, e lhes fizessem casas em suas aldeias, onde se recolhessem, e templos onde dissessem missa aos cristãos, doutrinassem os catecumenos, e pregassem o Evangelho livremente; e porque a cobiça os portugueses tinha dado em cativar quantos podiam colher, fosse justa ou injustamente, proibiu o governador isto com graves penas, e mandou dar liberdade a todos os que contra justiça eram tratados como escravos.

Acudiu depois a vingar as injúrias dos índios cristãos, que outros seus vizinhos pagãos lhe faziam até chegar a matar alguns.

Pediu que lhe entregassem os homicidas, e perdoaria aos mais, mas eles fiados na sua multidão zombaram da sua petição; pelo que o governador em pessoa os cometeu dentro de suas terras, e feita neles grande matança, e queimadas mais de setenta aldeias, os desfez, de sorte que lhes foi forçado pedirem a paz, a qual lhes concedeu com as mesmas condições, que havia posto aos outros.

O tempo que lhe vagava da guerra, gastava o bom governador na administração da justiça, porque além de ser em que consiste a honra dos que regem, e governam, como diz David: Honor Regis judicium diligit: a trazia ele particularmente a cargo por uma provisão del-rei, em que mandava que nenhuma ação nova se tomasse sem sua licença; o que mandou el-rei por ser informado das muitas usuras, que já naquele tempo cometiam os mercadores no que vendiam fiado, pelo que muitos, por se não descobrir a usura, que eles sempre costumam paliar, e por não perderem a dívida, e haver as mais penas que o direito põe, não levavam seus devedores a juízo, e lhes esperavam pela paga quanto tempo queriam; mas só punham ações por dívidas lícitas, que o governador logo mandava pagar, e se era o devedor pessoa pobre pagava por ele, ou fazia que o credor esperasse pela dívida, pois fiara de quem sabia que não tinha por onde lhe pagar; e assim cessaram as demandas, de modo que fazendo o dr. Pedro Borges, ouvidor-geral, uma vez audiência, não houve parte alguma requerente, do que levantando as mãos ao céu deu graças a Deus; mas durou pouco este bem, porque logo veio por ouvidor-geral o dr. Braz Fragoso com outra provisão em contrário à do governador, e tornaram a correr as demandas, e as usuras, não só paliadas, mas tanto de escancara, que se vale um escravo vinte mil-réis pago logo, o dão fiado por um ano por quarenta, e o que mais é, que por isso o não querem já vender a dinheiro de contado, senão fiado, e não há quem por isto olhe.