História do Brasil (Frei Vicente do Salvador)/IV/XXI
Alcançada a vitória, que temos dito no capítulo precedente, partiu-se o governador Cristóvão de Barros para a Bahia, e deixou Rodrigues Martins em Sergipe, para acabar de recolher o gentio, que da guerra havia fugido, dos quais se haviam passado muitos para a outra parte do rio de S. Francisco, que é da capitania de Pernambuco, donde também vieram logo muitos à caça deles: o primeiro foi Francisco Barbosa da Silva, do qual dissemos no capítulo vigésimo sexto do livro precedente, que veio desbaratado de outra entrada do sertão, e desta lhe sucedeu pior, porque lhe custou a vida, e a quantos com ele vinham, que não sofrendo os aflitos uma aflição sobre outra, e neles se vingaram. Outro foi Cristóvão da Rocha, que veio com quarenta homens em um caravelão, o qual com consentimento de Tomé da Rocha, capitão de Sergipe, se concertou com Rodrigo Martins para entrarem pelo sertão em busca deste gentio, e do mais que achasse.
Havendo andado alguns dias, e passado o sumidouro do rio de S. Francisco, se alojaram em casa de um selvagem chamado Tuman, onde começaram a ter dúvidas, dizendo Cristóvão da Rocha que ele vinha com licença dos Albuquerque de Pernambuco, sem a qual os moradores da Bahia não podiam conquistar nem fazer resgates naquele sertão, e assim haviam de melhorar nos quinhões por razão da licença os pernambucanos, posto que eram menos em número, no que Rodrigo Martins não quis consentir, e se tornou do caminho; mas aceitou o partido um Antônio Rodrigues de Andrade, que levava cem negros, e alguns outros brancos da Bahia, com os quais se partiu dali o capitão Cristóvão da Rocha, e por ter ouvido que a gente do Porquinho matara quatro ou cinco homens, que lá foram com dois padres da companhia, se foi direito às suas aldeias, onde chegando a primeira, entrou um mamaluco chamado Domingos Fernandes Nobre, pregando que iam tomar vingança da morte dos brancos, e isto bastou para os alborotar, e pôr a todos em fugida, o que também fizeram por verem no nosso exército cavalos, porque os temem muito.
Visto isto pelo capitão, mandou recado a outro gentio contrário, para que o viessem ajudar contra estoutro, como o fizeram; e não hei de deixar de contar aqui o que me contou um soldado desta companhia, que fez um principal destes que vieram, o qual diz-se foi à estrebaria onde estava um cavalo dos nossos, e assentando-se pôs-se a falar com ele, e dizer-lhe que o tomava por compadre, porque tinha ouvido dizer que os cavalos eram mui valentes na guerra, e um era tê-los homem por amigos, para que nela o conheçam, e lhe não façam mal. Estava ali um mamaluco, que tinha cuidado do cavalo, e quando o viu tão triste, porque lhe não respondia, se lhe ofereceu para intérprete, e fingindo que lhe falava à orelha, lhe tornou por resposta que folgava muito com sua amizade, e que ele o conheceria quando fosse tempo; com esta resposta se afeiçoou mais o rústico, e perguntou que comia seu compadre, ou o que desejava, porque de tudo o proveria.
Respondeu o mamaluco que o seu mantimento ordinário era erva e milho, mas que também comia carne, e peixe, e mel, e de tudo o mandou prover abundantemente, andando os seus uns a segar erva, outros a caçar, e pescar, e tirar mel dos paus, com que o intérprete se sustentava, e o cavalo engordou tanto, que abafou, e morreu de gordo, cuja morte o rústico muito sentiu, e o mandou prantear por sua mulher, e parentes, como costumam fazer aos defuntos que amam.
Este era um dos principais, que o capitão Cristóvão da Rocha convocou para dar caça aos do Porquinho, que pela pregação do outro mamaluco andavam fugidos com medo pelos matos.
Porém um veio falar secretamente a Diogo de Castro, soldado nosso, por ser seu amigo, e conhecido, e lhe disse que se espantava muito que vindo ele ali lhe quisessem fazer guerra, pois sabia quão amigos eram dos brancos, e se haviam mortos os que vieram com os padres da companhia, fora por eles dizerem mal dos mesmos padres, que não ouvissem sua pregação, porque os vinham enganar, nem esses foram todos, senão alguns, e não era bem que todos pagassem.
Respondeu-lhe Diogo de Castro que bem inteirado estava da sua amizade, e paz antiga, nem eles vinham a quebrá-la, como o mamaluco mal dissera, mas que só vinham em seguimento dos que lhes haviam fugido da guerra de Sergipe, e assim lhes aconselhava que tornassem para suas aldeias, que ele os segurava de lhes não fazerem agravo; contudo não se deu o índio por seguro sem que o pusesse com o capitão, e lho prometesse de sua boca. E com isto foi pregar aos seus, e os reduziu em poucos dias.
Vinha entre eles o Porquinho, já muito velho, e enfermo, pediu o Sacramento do Batismo, e Diogo de Castro o catequizou, e batizou, pondo-lhe por nome Manuel. Nem eu sei outro bem que se tirasse desta jornada, posto que, morto ele, se contrataram os contrários de vender os mais aos brancos, e eles lhos compraram a troco dos resgates, que levavam, e os trouxeram amarrados até certa paragem do rio de S. Francisco, onde fizeram deles partilha, levando o capitão Cristóvão da Rocha com os pernambucanos uma parte, e Antônio Rodrigues de Andrade com os da Bahia outra.
Estes fizeram seu caminho pela serra do Salitre, e trouxeram algum em cabaços para mostra, dizendo que era muito em quantidade, mas havia naquele tempo ali muito gentio, e tinham mortos atraiçoadamente a Manuel de Padilha com 40 homens, que iam desta Bahia para a serra, e por outra vez a Braz Pires Meira com 70, que foram por mandado do governador Manuel Teles Barreto, e o mesmo quiseram fazer a estes, que vinham, se lhes não valera a grande vigilância com que passaram.
N. B. — Este capítulo vigésimo primeiro foi copiado dos aditamentos, e emendas a esta História do Brasil, que existem neste Real Arquivo da Torre do Tombo.