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História do Brasil (Frei Vicente do Salvador)/IV/XXX

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Não só por mar foi esta Bahia neste tempo contrastada de inimigo, mas também, e muito mais por terra dos gentios Aimorés, que são uns Tapuias selvagens, de que fizemos menção no capítulo décimo quinto do primeiro livro, os quais como não tenham casas nem lugar certo onde os busquem, nem saiam a pelejar em campo, mas andem como leões e tigres pelos matos, e dali saiam a saltear pelos caminhos, ou ainda sem sair detrás das árvores, empreguem suas flechas, poucos bastam para destruírem muitas terras; e assim havendo já destruído as de Porto Seguro, e dos Ilhéus, entraram nas da Bahia, e haviam feito despejar as do rio de Jaguaripe, e Paraguaçu, posto que não passaram este da parte do norte, que a passá-lo não ficara coisa, que não assolaram até a cidade, porque como até ela haja matos, e todos caminhos se façam entre eles, ninguém pudera entrar nem sair sem ser morto ou salteado por estes selvagens.

Desejosos d. Francisco e Álvaro de Carvalho de remediar este dano o consultaram com Manuel Mascarenhas, que aqui veio a tratar sobre as coisas do Rio Grande com o governador antes que se partisse, e todos acordaram que se não fossem com outro gentio, bicho-do-mato como eles, não se lhe poderia fazer guerra, para o que se ofereceu Manuel Mascarenhas a mandar-lhos do gentio Potiguar da Paraíba, que já estava de paz, e para que também divertidos com isto os Potiguares, e tirados da pátria, não tornassem a rebelar-se, e assim tanto que chegou a Pernambuco deu ordem a vir um grande golpe deles, e por seu principal, e guia um mais revoltoso, e de que havia mais suspeitas, chamado Darobabe, estes mandou Álvaro de Carvalho com o capitão Francisco da Costa aos Ilhéus, para que de lá viessem dando caça aos Aimorés, que assim se pode chamar a sua guerra, mas posto que os amedrontaram e fizeram muito, não ficou de todo o mal remediado, nem deixara de ir muito avante depois de tornados os Potiguares, que em breve tempo voltaram para a Paraíba se Deus não sem outro mais fácil, e eficaz remédio, por meio de uma fêmea Aimoré, que Álvaro Rodrigues da Cachoeira a tomou com o seu gentio em um assalto, à qual ensinou a língua dos nossos Tupinambás, e aprendeu, e fez a alguns nossos aprender a sua, fez-lhe bom tratamento, praticou-lhe os mistérios da nossa santa fé católica, que é necessário crer um cristão, batizou-a, e chamou-lhe Margarida, depois de bem instruída, e afeta a nós vestiu-a de sua camisa, ou saco de pano de algodão, que é o traje das nossas índias, deu-lhe rede em que dormisse, espelhos, pentes, facas, vinho, e o mais, que ela pôde carregar, e mandou-a que fosse desenganar os seus, como fez, mostrando-lhes que aquele era o vinho, que bebíamos, e não o seu sangue, como eles cuidavam, e a carne que comíamos era de vaca, e outros animais, e não humana, que não andávamos nus, nem dormíamos pela terra, como eles, senão naquelas redes, que logo armou em duas árvores, e nenhum ficou, que se não deitasse nela, e se não penteasse, e visse no espelho: com o que certificados que queríamos sua amizade, se atreveram alguns mancebos a vir com ela à casa do dito Álvaro Rodrigues na cachoeira do rio Paraguaçu, donde ele os trouxe a esta cidade ao capitão-mor Álvaro de Carvalho, que logo os mandou vestir de pano vermelho, e mostrar-lhes a cidade, onde não havia casa de venda ou taverna em que não os convidassem, e brindassem; com o que mui certificados foram acabar de desenganar os companheiros, e se fez com os Aimorés em toda esta costa, queira Nosso Senhor conservá-la, e que não demos ocasião a outra vez se rebelarem.