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História do Brasil (Frei Vicente do Salvador)/V/IV

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Ao dia seguinte mandou o general dos franceses outra carta a Jerônimo de Albuquerque, em que lhe fazia cargo do mal que havia guardado as leis da guerra em lha dar sem primeiro responder à outra sua carta, antes lhe prender o portador, ameaçando-o que se lho não mandava com os mais que lá tinha, havia de enforcar a sua vista os portugueses que tinha na ilha, que haviam levado com os navios, e não se enganasse pela vitória alcançada, cuidando alcançaria outra, porque lhe haviam ficado ainda muitos e bons soldados, fora outros que esperava de França, e muitos milhares de gentios, com que lhes havia fazer cruel guerra, e tomar vingança das crueldades, que haviam usado com os seus, e assinou-se ao pé da carta “Este seu mortal inimigo de Reverdière.” A esta respondeu Jerônimo de Albuquerque que ele senhor de Reverdière fora o que quebrara as leis, e prática da guerra, mandando-lhe tomar os navios, que estavam com quatro pobres marinheiros, desarmados no porto da conquista de Sua Majestade, sem lhe escrever primeiro, senão depois de ter lançado em terra junto ao seu forte trezentos franceses, e três mil índios armados, que se começavam a fortificar donde já não havia outra resposta senão a que dá o direito, que é com uma força desfazer outra, e que se ele lá enforcasse os portugueses cativos, mal seria, que faria aos seus, que cá tinham; estas, e outras razões continha a carta, a que logo o francês respondeu com outra já mais branda e cortês, e assim foram as que dali por diante se escreveram de parte a parte, e por fim sucedeu como a jogadores de cartas, que depois de grandes invites e revides, de restos vieram a partido, e concerto, sobre o qual (havido salvo-conduto dos generais) vieram ao nosso forte de Santa Maria o capitão Malharte, e um cavaleiro da ordem de S. João, e foi aos seus navios, onde o general então estava, Diogo de Campos Moreno, colega do capitão-mor, e o capitão Gregório Fragoso de Albuquerque, seu sobrinho, e depois de declararem uns e outros o que queriam, e assentarem que o general francês, pois cometia as pazes, fizesse os capítulos delas, se vieram os nossos mensageiros, e se foram os seus, e ao dia seguinte tornou o capitão Malharte com os capítulos por escrito, que eram os seguintes:

FORMA DAS TRÉGUAS

Artigos acordados entre os senhores Daniel de Lancé (La Touché), senhor de lá Raverdière, Lugar tenente general do Brasil pelo cristianíssimo rei de França e de Navarra, agente de Micer Nicolas de Harley, senhor de Sansy, do Conselho de Estado do dito senhor rei, e do Conselho Privado, barão de Molé, e Grosbués; e por Micer de Rasilli, entre ambos lugar tenentes generais por el-rei cristianíssimo nas terras do Brasil com cem (sic) léguas de costa com todos os meridianos nelas inclusos; e Jerônimo de Albuquerque, capitão mor pela Majestade de el-rei Filipe Segundo da jornada do Maranhão, e assim o capitão e sargento-mor de todo o estado do Brasil, Diogo de Campos, colega, e colateral do dito capitão-mor, et cetera.

Item — Primeiramente a paz se acordou entre os ditos senhores do dia de hoje até o fim de novembro (sic) do ano de mil seiscentos e quinze, durante o qual tempo cessaram entre eles todos os atos de inimizade, que hão durado de 28 (sic) de outubro até hoje, por falta de saber as tenções de uns e outros, donde se seguia grande perda do sangue cristão de ambas as partes, e grandes desgostos entre os ditos senhores.

Item — Se acorda entre os ditos senhores que enviaram às Suas Majestades Cristianíssima, e Católica, dois fidalgos para saber suas vontades tocantes a quem deve ficar nestas terras do Maranhão.

Item — Durante o tempo que os ditos mensageiros tardarem em tornar da Europa e trazer de Suas Majestades o acordo, e ordem do que se deve seguir, nenhum português passará a ilha, nem francês a terra firme de leste sem passaporte dos senhores generais, exceto eles e seus criados somente, que puderam ir, e vir aos fortes da ilha, e terra firme todas as vezes que lhes parecer.

Item — Que os portugueses não trataram coisa alguma com os índios do Maranhão, a qual não seja tratada pelos línguas do senhor Reverdière, e nem eles consentiram pôr os pés em terra a menos de duas léguas de suas fortalezas, nem de seus portos, sem permissão do dito senhor.

Item — Que tanto que o recado vier de Suas Majestades, a nação que se mandar ir se aprestará dentro de três meses para deixar ao outro a terra.

Item — Se acorda que os prisioneiros, que foram tomados de uma parte, e da outra, assim cristãos como gentios, fiquem livres, e sem alguma lesão; mas se alguns deles por algum tempo quiserem ficar na parte que se acham, lhes será permitido.

Item — Que o senhor de Reverdière deixara o mar livre aos senhores Albuquerque e Campos, para que possam nos seus navios fazer vir todas as sortes de vitualhas, que houverem mister, com toda a seguridade, e se suceder que lhes venha socorro de gente de guerra, nem por isso haverá alteração alguma enquanto durar o tempo da paz, da maneira que está assentado.

Item — Que nenhum acidente em controvérsia do que está assentado por estes senhores terá capacidade de fazer romper este contrato de paz, a causa das grandes alianças, que hoje há entre Suas Majestades, e o prejuízo que pode vir em alterar-se; e se suceder algum caso de agravo entre os cristãos ou gentios de uma e outra parte, a nação agravada fará a sua queixa ao seu general para lhe dar remédio, e quanto a outras coisas de menos importância os ditos senhores não as especificam, porque se confiam em suas palavras, nas quais não faltaram jamais, como gente de honra, e para seguridade, e firmeza de tudo o atrás declarado mandaram fazer estas, em que todos três os ditos senhores se assinaram, e selaram com os selos de suas armas, feita em armada francesa, diante o forte dos portugueses no rio Maranhão, 27 de novembro de 1614 anos.»

Depois de apresentados estes capítulos, e vistos pelos nossos capitães, ao dia seguinte vieram monsieur de Reverdière, e monsieur del Prate (du Prat), e frei Angelo, comissário dos Capuchinhos, com três frades companheiros, e outros fidalgos franceses com mostras de muita alegria, a que da nossa parte se respondeu com a mesma, e se assinaram as pazes no nosso forte de Santa Maria, onde estiveram todo o dia, e à tarde se embarcaram com grande salva de artilharia, e se foram para a ilha.

Os que levaram esta embaixada a Espanha foram o sargento-mor Diogo de Campos, e com ele como em reféns o capitão Malharte francês, e da mesma maneira foi como embaixador francês o capitão Gregório Fragoso de Albuquerque, que lá morreu, e também se foram logo os frades franceses, vendo o pouco fruto que faziam na doutrina dos gentios, por lhe não saberem a língua, deixando aos dois da nossa custódia, que a entendiam, e sabiam seus modos, e não foram pouco admirados de ver que nestas partes tão remotas houvesse religiosos tão observantes da regra do nosso seráfico padre S. Francisco, não menos o ficaram os nossos de ver que religiosos de tanta virtude, e autoridade viessem em companhia de hereges, posto que nem todos o eram, que muitos eram católicos romanos, que ouviam missa, confessavam-se, e comungavam-se; também se partiu Manuel de Souza de Sá em um caravelão com a nova ao governador geral Gaspar de Souza, mas arribou às Índias, e de lá a Lisboa, donde com a nova lhe trouxe juntamente cartas de Sua Majestade, e ordem do que havia de fazer.