História do Brasil (Frei Vicente do Salvador)/V/XIII
Era o governador Diogo de Mendonça Furtado, liberal, e gastava muito em esmolas. Acrescentou a igreja de S. Bento, que lhe custou dois mil cruzados, e a todos os mais mosteiros ajudou, e fez as esmolas que pôde. Fortificou a cidade, cercando-a pela parte da terra de vala de torrões; e porque a casa que servia de armazém, junto a da alfândega, estava caída, começou a fazer outra no cabo da sua, para que o alto lhe ficasse servindo de galeria, e o baixo de armazém, como tudo se fez com muita perfeição, posto que a outros não pareceu bem depois o armazém, por não ser boa tanta vizinhança com a pólvora.
Também começou a fazer a fortaleza do porto em um recife, que fica um pouco apartado da praia, havendo provisão de Sua Majestade para se fazer não só da imposição do vinho, que estava posta nesta Bahia, mas também da de Pernambuco, e Rio de Janeiro, e que do dinheiro que recebem os mestres, não dos fretes, senão de outro, que eles introduziram chamado de avarias, que ordinariamente são duas patacas por caixa, desse quatro vinténs cada um para a obra da fortaleza, que não deixou de ser contrariada de alguns, porém realmente era mui necessária para defensão do porto, e dos navios que ali surgem à sombra dela, e de que não se pôde tirar o louvor também ao arquiteto Francisco de Frias, que a traçou.
Um dos contraditores, que houve da fortaleza sobredita, foi o bispo d. Marcos Teixeira, o qual sendo rogado que quisesse ir benzer a primeira pedra, que se lançou no cimento do forte, não quis ir, dizendo que se lá fosse seria antes amaldiçoá-la, pois fazendo-se o dito forte cessaria a obra da Sé, que se fazia do dinheiro da imposição; mas não foi este o mal, que o governador lhe reservou seis mil cruzados para correr a obra da Sé, senão que do dia, que chegou o bispo a esta cidade, que foi a 8 de dezembro de 1622, desconcordaram estas cabeças, não querendo o governador achar-se no ato do recebimento, e entrada do bispo, senão se houvesse de ir debaixo do pálio praticando com ele, no que o bispo não quis consentir, dizendo que havia de ir revestido da capa de asperges, mitra e báculo, lançando bênçãos ao povo, como manda o cerimonial romano, e não era decente ir praticando.
Por isto não foi o governador, mas mandou o chanceler, e desembargadores, e depois o foi visitar à casa, e se visitaram pessoalmente, e de presentes muitas vezes. Logo se levantou outra dúvida acerca dos lugares da igreja, querendo o governador que também se assentassem ambos de uma parte, e ali estivessem ambos conversando, ao que o bispo respondeu não podia ser conforme ao mesmo cerimonial, por razão dos círculos e outras cerimônias, que mandam se façam com ele nas missas solenes; e nem isto bastou, nem uma sentença, e provisão de el-rei, que lhe mandou mostrar, em que por evitar dúvidas / quais as houve entre o governador e bispo de Cabo Verde / declara para os do Brasil, e todos os mais, que o governador se assente à parte da epístola, e primeiro se incensasse o bispo, e depois o governador.
Nem isto bastou, antes respondeu que se ele se achasse em alguma igreja com o bispo, se cumprisse o que o cerimonial, e el-rei manda, fundado em que nunca iria onde o outro fosse, e assim o cumpriu.
Os desembargadores, que não podiam contender com ele sobre o lugar material da igreja, contenderam sobre o espiritual, e jurisdição que tem para a correição dos vícios, e neste tempo mais que em nenhum outro, porque lhe tiraram de um navio dois homens casados, que mandou fazer vida com suas mulheres a Portugal, por estarem cá abarregados com outras havia muito tempo, e isto sem os homens agravarem, antes requerendo que os deixassem ir, pois já estavam embarcados; pelo que o bispo excomungou o procurador da Coroa, que foi o autor disto, e houve sobre o caso muitos debates, enfim estas eram as guerras civis, que havia entre as cabeças, e não eram menos as que havia entre os cidadãos, prognóstico certo da dissolução da cidade, pois o disse a suma verdade, Cristo Senhor Nosso, que todo o reino onde as houvesse, entre os naturais e moradores, seria assolado e destruído.
Outro prognóstico houve também, que foi arruinarem-se as casas de el-rei, em que o governador morava, de tal maneira, que se as não sustentaram com espeques, se vieram todas ao chão, sendo assim que eram de pedra e cal, fortes, e antigas, sem nunca até este tempo fazerem alguma ruína.