História do Brasil (Frei Vicente do Salvador)/V/XII
Sabendo Sua Majestade da morte de Jerônimo de Albuquerque, capitão-mor do Maranhão, proveu na capitania com título de governador, independente do governador do Brasil, a d. Diogo de Carcome, espanhol, casado em Lisboa, o qual se deteve tanto tempo em seus requerimentos, e pretensões, ou os ministros de el-rei no despachar, que primeiro o despachou a morte, e morreu em sua casa antes que de Lisboa se partisse. Pelo que o governador determinou prover a serventia, enquanto el-rei não mandava outro, e porque Sua Majestade tinha dado a provedoria-mor de sua fazenda a Antônio Barreiros por seis anos, com condição que se dentro neles fizesse dois engenhos de açúcar no Maranhão lhe faria mercê do ofício por toda a vida; proveu o governador na capitania do dito Maranhão a Antônio Moniz Barreiros, filho do dito provedor, para com o poder do seu cargo melhor poder fazer os engenhos.
Também proveu na do rio das Amazonas a Bento Maciel Parente, por ser morto Jerônimo Fragoso de Albuquerque, que o servia como fica dito, e neste mesmo tempo, que foi no ano do Senhor de mil seiscentos e vinte e três, mandou Sua Majestade o capitão Luiz Aranha de Vasconcelos em uma caravela de Lisboa a descobrir e sondar o dito rio pelo cabo do Norte, por dizerem que por ali podia tirar a sua prata do Potuci, com menos gasto, e para este efeito lhe deu provisão para os capitães de Pernambuco, Rio Grande, Maranhão, e Pará lhe darem tudo o que fosse necessário; em virtude das quais lhe deu Mathias de Albuquerque em Pernambuco uma lancha com 17 soldados, e o piloto Antônio Vicente, mui experimentado naquela navegação, e lhe carregou na caravela oito mil cruzados de diversas sortes de fazendas por conta de Sua Majestade para a fortaleza do Pará, que havia dois anos se não provia com pagas, nem algum socorro, pelo que estava mui necessitada, e André Pereira Timudo, capitão-mor do Rio Grande, lhe deu quatro soldados, dos quais era um Pero Gomes de Gouvea seu alferes, que o capitão Luiz Aranha fez capitão da lancha.
Os outros eram o sargento Sebastião Pereira, Pero Fernandes Godinho, e um carpinteiro, que também foi importante à jornada. Antônio Moniz Barreiros no Maranhão lhe deu quinze soldados, em que entrava um flamengo chamado Nicolau, que os índios haviam tomado no Pará saindo-se de um forte que os holandeses lá tinham, com outros dois, e sete negros de Guiné, a uma roça a plantar tabaco, e era prático naquele grande Rio.
Para o qual se partiram os nossos do Maranhão, e chegaram à fortaleza a 14 de maio da dita era de 1623, onde o capitão dela Bento Maciel, por dizerem que a caravela não poderia navegar contra a corrente do rio, lhes deu outra lancha, e algumas canoas de índios, e lhes dava também trinta soldados brancos com seu capitão sinalado, que Luiz Aranha não quis aceitar, por querer ser ele o que lho sinalasse, dizendo que Sua Majestade lhe mandava dar soldados, e não capitães; mas contentou-se com os índios, e com o comissário que ali estava da nossa ordem e província frei Antônio da Merciana lhe dar o irmão frei Cristóvão de São José por capelão desta jornada, o qual era tão respeitado dos índios, que em poucos dias de navegação pelo rio acima lhe ajuntou quarenta canoas com mais de mil flecheiros amigos, que de boa vontade seguiram ao capitão, movidos também das muitas dádivas, que ele dava aos principais, e a outros, que lhe traziam suas ofertas de caça, frutas, e legumes, as quais não aceitava sem pagar-lhes com ferramentas, velório, pentes, espelhos, anzóis, e outras coisas, dizendo que assim lho mandava el-rei.
Com esta multidão de índios, e os poucos soldados brancos, que havia trazido das outras capitanias, seguiu sua viagem, nem sem algumas grandes tormentas, principalmente uma com que lhe quebrou o leme da lancha maior, e os obrigou a tomar terra, onde o carpinteiro, que havia trazido do Rio Grande, fez outro de um madeiro, que cortaram, com o qual, posto que as fêmeas eram de cordas, e era necessário renová-las cada três dias, todavia governava muito bem, e assim foram todos navegando até certa paragem, onde o flamengo Nicolau, que traziam do Maranhão, lhes disse que estava perto um forte de holandeses, os quais não esperando que os nossos chegassem, mandaram mais de setecentos índios seus confederados a salteá-los no rio, como fizeram à meia-noite, e se travou entre uns e outros uma batalha, que durou duas horas, mas foi Deus servido de dar aos nossos vitória com morte de 200 contrários, fora 30 que tomaram vivos em duas canoas, dos quais se soube haver seis ou sete que eram amigos, e compadres dos holandeses por dádivas, que deles recebiam, quando vinham navios de Holanda, mas que naquela ocasião nenhum estava no porto, nem havia na fortaleza mais de trinta soldados, e alguns escravos de Guiné, com quem lavravam tabaco.
Ouvido isto pelo capitão mandou remar até se porém leste a oeste com o forte, e em amanhecendo mandou lá um soldado em uma canoa pequena, que remavam quatro remeiros, e sua bandeira branca, a dizer que se entregassem dentro de uma hora primeira, senão que os poria todos a cutelo, porque assim lho mandava o seu rei de Espanha, cujas eram aquelas terras e conquistas.
Ao que responderam que aquela fortaleza era, e se sustentava pelo conde Maurício, pelo que se não podiam entregar sem ordem sua, e para esta vir era pouco tempo o que lhes dava.
Mas depois se soube que o seu intento não era este, senão esperar que lhe viesse socorro de outra fortaleza, que distava desta 10 léguas, do que tudo se desenganaram com lhe responder Luiz Aranha que ele tinha já ordem, que havia de seguir, e não tinha que aguardar outra, e mais quando a vantagem dos seus soldados era tão conhecida, e porque assim o cuidassem mandou pôr entre os brancos, assim nas lanchas como nas canoas, muitos índios com roupetas, chapéus, ou carapuças, com que ao longe pareciam todos brancos, e bastou este ardil, e outros de que usou, para que logo levantassem bandeira de paz, e se entregassem com a artilharia, mosquetes, arcabuzes, munições, escravos, e fazendas, que tinham na fortaleza, a qual os nossos queimaram, e arrasaram; e o dia seguinte, querendo ir dar em outra fortaleza, mandou uma canoa com 40 romeiros todos índios flecheiros, e três homens brancos muito animosos, que eram Pero da Costa, Jerônimo Correa de Sequeira, e Antônio Teixeira, a descobrir o caminho, aos quais saíram 12 canoas de gentio contrário, chamados Haruans, e tomando a nossa em meio sem quererem admitir a paz, e amizade, que lhes denunciavam, começaram a disparar muita flecharia, os nossos já como desesperados da vida, porque não podiam ser socorridos tão bem depressa dos mais, que ficavam longe, encomendando-se a Deus, se defenderam, e pelejaram tão animosamente, que já quando chegaram os companheiros tinham mortos muitos, e muitos mais se mataram depois da sua chegada, e socorro, e se tomaram quatro canoas de cativos, sem dos nossos morrerem mais de sete, mas ficaram 25 feridos, e Jerônimo Correa de Sequeira com duas flechadas, uma no peito, outra em uma perna, de que esteve mal, e ficou assim ele, como os dois companheiros, que iam na primeira canoa, com as mãos tão empoladas da quentura dos canos dos arcabuzes, que mais de 20 dias não puderam pegar em coisa alguma, porque cada um deles disparou mais de 40 tiros.
Curados os feridos, e descansando do trabalho da peleja aquela noite, na manhã seguinte mandou um capitão um cabo de esquadra com recado aos holandeses que se entregassem, porque assim o haviam feito os da outra fortaleza de Muturu / que era o nome do primeiro sítio /, e ali os traziam consigo, do que certificados por um que lá lhe mandou, se vieram a entregar assim as pessoas, que eram 35, como toda a fábrica da fortaleza, artilharia, escravos, e o mais que nela tinham.
Aqui perguntou o capitão aos holandeses se havia mais alguma fortaleza, ou estância de gente da sua nação naquele rio, e certificado que não, senão duas de ingleses, e essas lhe ficavam já abaixo, se tornou à nossa fortaleza do Pará; e não achando nela o capitão Bento Maciel, que o havia ido buscar para o ajudar, se embarcou em sua caravela, e foi pela banda do norte da Barra Grande outra vez ao rio arriba até o achar, depois de ter navegado um mês por entre um labirinto de ilhas, e ao dia seguinte, depois de estarem juntos, viram vir um nau, e surgir uma légua donde estavam, à qual foi Bento Maciel com quatro canoas ao socairo da caravela em que ia Luiz Aranha, para remeterem à nau, e pondo-se debaixo dela a desfazerem, o que se não pôde fazer com tanta presteza, que primeiro não alcançassem da nau com um pelouro de oito libras a uma canoa, com que nos mataram sete homens brancos, e feriram 20 negros, porém as outras se meteram debaixo do bojo da nau, e vendo que a não queriam dar a furaram ao lume da água com machados, com que se foi a pique, e sobre isto puseram os inimigos ainda fogo à pólvora, para que nenhuma coisa escapasse, e contudo escaparam algumas pipas de vinho, e cerveja, barris de queijos, e manteiga, e uma caixa grande de botica, de que os nossos se aproveitaram; porém os holandeses, que eram cento e vinte cinco, todos foram mortos a fogo e a ferro.
Com estas vitórias e boas informações do grande rio das Amazonas, que sempre o piloto Antônio Vicente foi sondando, se partiu Luiz Aranha de Vasconcelos, na sua caravela, a dar a nova a el-rei, levando por testemunhas quatro dos holandeses, que havia tomado, e um índio principal, que o havia guiado, e também alguns escravos, para de caminho vender nas Índias, donde se partiu em companhia da frota da prata, mas apartando-se dela junto a Belmuda (sic), daí a 15 dias foi tomado dos corsários holandeses, os quais por irem muitos doentes das gengivas, a que chamam mal de Luanda, o lançaram em um pequeno bote com quatro marinheiros portugueses na Iliceira, para que lhe fossem buscar alguns limões, e outra embarcação mais capaz em que levassem os companheiros, e por não tornarem / coisa mui ordinária de quem se vê livre / levaram os mais cativos a Salé, donde saíram por resgate, exceto o índio, e os quatro holandeses, que levaram livres à Holanda.