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História do Brasil (Frei Vicente do Salvador)/V/XXII

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Informado o governador geral Mathias de Albuquerque em Pernambuco de algumas dúvidas, e diferenças, que havia entre o bispo e o ouvidor-geral Antão de Mesquita de Oliveira sobre o governo do arraial, e da mais gente da Bahia, porque também haviam para isto eleito o mesmo ouvidor-geral, antes que elegessem, e aclamassem o bispo, para atalhar a estas dúvidas, e diferenças, mandou que viesse por capitão-mor Francisco Nunes Marinho, que o havia já sido na Paraíba, e servido a el-rei na Índia e em outras partes com muita satisfação, e para isto lhe deu dois caravelões, de um dos quais veio ele por capitão, e de outro Antônio Carneiro Falcato com trinta soldados, pólvora, munições, e vitualhas de vinho, azeite, e outras coisas, que se lhe puderam dar em tempo tão necessitado delas.

No mar tiveram uma grande tormenta, que os obrigou a entrar no rio de Sergipe del-rei com vergas e mastros quebrados, donde depois que os refez, para seguirem sua viagem, e ele se foi com alguns soldados por terra, e chegou a muito bom tempo, porque daí a poucos dias adoeceu o bispo da doença, de que morreu aos 8 de outubro da dita era, deixando a todos assaz saudosos, e desconsolados com a falta de sua presença, por ser ela tal, que ainda a natural agradava a todos, sem as muitas graças sobrenaturais, que Deus a esmaltou, porque era mui esmoler, e liberal, devotíssimo do Santíssimo Sacramento, o qual levava ele próprio aos enfermos, ou ao menos o acompanhava com um brandão aceso, todas as vezes que o levavam fora de dia, ou de noite. Celebrava cada dia derramando na missa muitas lagrimas de devoção.

Pregava sem ser teólogo, posto que grande canonista, melhor que muitos teólogos, com muito zelo da salvação das almas: enfim dele se podia dizer aquilo do sábio Sapientiae, que o levou Deus deste mundo, e em tão pouca idade, que ainda não chegava a 50 anos, porque não era o mundo digno de tanto bem, e se isto se pode dizer dos seus merecimentos para com Deus, não menos para com el-rei, como bem se viu nesta ocasião, em que o serviu de capitão-mor e governador depois da Bahia tomada; porque ele foi o que andando os homens espalhados pelos matos morrendo de fome, e nem eles se tendo por seguros, os fez ajuntar em um arraial, como já dissemos, e ali deu ordem a que se levassem mantimentos de todas as partes a vender, sustentando ele os pobres à sua custa, que o não podiam comprar.

Dali ordenou os capitães e companhias para os assaltos, em que reprimiu a insolência dos holandeses, que se isto não fora houveram de assolar todas as fazendas de fora, e quando iam aos assaltos os animava, e exortava de modo que até os gentios selvagens, que de princípio andavam alguns nestas companhias, obrigava a irem com muita vontade, e esforço; logo se punha em oração pedindo a Deus lhe desse vitória, e quando com ela tornavam lhe dava graças, abraçava os soldados, e gratificava-lhes não só com palavras, mas com dádivas, com que todos andavam à porfia a quem melhor havia de pelejar; e assim puseram sem o ter sitiado em tanto aperto, que não se atreviam a sair 50 passos da cidade a buscar um limão, senão com muita gente, e ordem, e nem essa bastava, o que tudo se pode atribuir também às orações do santo bispo, que não só governava estas guerras com sua indústria, conselho, e agencia, como Josué, e outros famosos capitães, mas com lágrimas e orações como Moisés: e entendendo que a tomada da cidade fora castigo do céu por vícios, e pecados, depois se castigava a si mesmo, e fazia tão áspera penitência, que nunca mais fez a barba, nem vestiu camisa, senão uma sotaina de burel, dormia mui pouco, e jejuava muito, pregava e exortava a todos à emenda de suas culpas, para que aplacassem a divina ira, até que destes trabalhos o tirou Deus para o descanso da bem-aventurança, como se pode confiar em sua divina misericórdia.